CARREIROS DO PARAÍSO

FAZENDA BURACÃO

 João  do Custódio, depois que casou com Deusarina, foi morar na Fazenda  Buracão, de sua propriedade. Não era fazenda  não, seria mais apropriado chamar-se  apenas buracão, mas assim mesmo não é suficente para se ter uma idéia de como era o acidentado lugar.  Uma banda só ou a metade de um buracão era a pequena propriedade rural de João do Custódio, porque ficava numa ladeira  só do lado de cá do córrego Desconsolado. Usando uma comparação, as costas da mão da gente, só a parte dos dedos, juntados, pendendo as pontas para baixo, dão uma imagem como que era a ladeira, repartida com grotas, em gomos de campo de pedra, tudo se precipitando, pirambeira abaixo, para o Desconsolado.

                                 A casa da fazenda ficava num terreno esconso, dando a impressão de que se estava escorregando para um lado. Era atravessada, frente para cá, fundo para lá, subida para o lado assim  e descida até lá embaixo no pedregoso córrego Desconsolado. O curral tinha só duas divisões, a  menor dos bezerros e a outra das vacas. A cerca era feita, toda ela, de madeira roliça. Os paus eram postos horizontais, superpostas as extremidades de um lance  com o seguinte, de modo que separavam um pau horizontal do de cima e assim sucessivamente até à altura de se ter a cerca. Na junção das extremidades de um e outro lance, subiam, verticalmente, dois paus paralelos, prensando as emendas dos horizontais e três amarrilhos de arame farpado eram espaçados para a devida sustentação. O curral era escorrido, não ajuntava excrementos do gado. Na época das chuvas, não formava lama, o estrume descia. O único erro da engenharia foi que fizeram o curral do lado de cima e a enxurrada levava muito do esterco para dentro de casa, entrava mais pela porta da cozinha. O paiol ficava emendado na cerca do curral e no chiqueiro dos porcos. Era de pau a pique e muito pequeno, cabia no máximo uns dois carros de milho. Para trás da casa, lá embaixo é que passava o rego dágua. Dava conta de  tocar o monjolo. Demorava encher. As galinhas descobriram a lentidão dele e aproveitavam para comerem  do arroz  no pilão.

                               A VIDA NO BURACÃO

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 João do Custódio era da família dos Fonseca, dali mesmo,  do Paraíso Debaixo. Ficou conhecido por João do Custódio por causa do pai dele, o seu Custódio. Não herdou do pai a expansividade, o conversar de alto tom, João era humilde, tímido, acanhado, de uma natureza boa, não reinava mal de ninguém, era educado de nascença. O aspecto físico dele não era muito comum por lá. Tinha um tamanho médio, cabelos lisos,  grossos, castanhos sem  vida. A cor de João que era esquisita, era um moreno fosco, chegado assim para um cobre enzinabrado daqueles tachos que se compram dos ciganos e se  deixam pra lá.

                                 Passando privações, além das da vida de roceiro, João vivia ali, mal, mas vivia. A mulher era clara, mimosa e bonita, mas eram prendas que não o ajudavam no sustento da casa, era preciso trabalhar e ela trabalhava, era o dia inteirinho, sobrava ainda tempo para escaroçar algodão, cardá-lo e fiá-lo. Época de chuvas intermináveis é que ela ia ao tear e, às vezes, fazia um serãozinho, costurava numa máquina de mão que viera com o enxoval de casamento. João do Custódio, sem sair de casa por causa das chuvas, ficava fazendo os seus artefatos de couro cru. Eram grosseiros, mal acabados, mas tinham serventia.

                                  Depois de dois anos de casada, foi que Deusarina teve o primeiro filho. Botaram nome nele de Manoel, Manoel Fonseca e era chamado de Manezinho do João, individualizando-o, distinguia-se dos demais, como Manoel Vicente, Manoel do Orozimbo, Manezinho da Teresa, Mané do Horácio, estes eram mais próximos dali da redondeza. Já no rumo de  Ouvidor, havia Manoel Mendes, Mané do Orcalino, Mané Paroba, famoso Mané Paroba, lá da igrejinha das parobas. Parobas e não perobas. Para cima ali do Torquato, para o lado da Mata Preta, havia  o Manoel  Balbino, brabo, gostava duma tropa boa. Dentro de Ouvidor, na rua principal havia o Manoel Sena,  da Casa Sena. Da outra banda do rio São Marcos, só na família dos Gaudêncio, havia três, o mais falado era o Manoel das Éguas, agregado do Manoel Damas. Nas novenas lá da Igrejinha do Meio, não havia quem não falasse do finado  Mané do Leilão. Era animado e sabia fazer gracejos com os que davam lance nas prendas a serem arrematadas. Era peão da viúva do Mané da Fortunata. Mataram-no durante um leilão. Dizem que é porque ele comentou, leiloando um frango, que o Mané da Diolina não levaria o frango para casa dele. O Manelão do Gaudêncio é que iria levar e que  o Mané da Diolina que comesse era carne de seriema. O Mané da Diolina não tinha dinheiro que cobrisse o lance da prenda ali do leilão.Tinha sobejamente  ignorância. Foi num lance dela que a garrucha dele arrematou, de vez, o leiloeiro. Foi só um tirinho de nada, feio, murcho, meio esguichado. Foi no olho esquerdo do Mané do Leilão. Foi-se. Foi um Mané de menos.

                                   Manezinho do João, mais completo, Manezinho do João do Custódio, já com os seus seis anos de idade, teve a responsabilidade de levar o recado para o Negralfredo, o maior carreiro de que se tinha notícia. Era para ir buscar feijão e levar para a cidade. Recado simples nem precisava escrever. Só o Negralfredo é que iria entender. Deva ter havido acerto anterior. Era um carreto até Catalão, dois dias puxados. Não era viagem que poderia ser feita de imediato, carecia de muitos preparos, embora ninguém falasse em pressa. Época de chuvas, a carga de feijão iria coberta com a tolda de couro de boi. Mantimento para se cozinhar nos pontos de almoço e de pouso. Um pouco de lenha do puro cerne para, no caso de molhada,  poder pegar fogo.

                                  Deu certo, Negralfredo teve  condições de servir o amigo e companheiro de profissão. João do Custódio tinha sido carreiro até às vésperas do casamento. Vendeu para casar. Nunca se esquecera da paixão, a boiada toda aparelhada, mansinha, ajeitada. A junta de bois de guia era tão obediente que nem precisava  de ajudante, do candeeiro. Puxava macio, por igual, era uma beleza, era gostoso, entendiam até sem falar ou chamar, bastava levantar a vara meio horizontal, por cima assim e, para se fazer uma curva, falava: - Afasta, Amoroso, vem ,Sereno! Vem, Sereno! Vem!  E assim, João do Custódio se emocionava, a voz mudava. Era bom o tempo de carreiro!

                                      DUAS ALMAS AJOUJADAS

                                       João do Custódio e Negralfredo formavam uma junta, atrelados, jungidos um ao outro pelo mesmo propósito de carrear. Gostavam, por demais, de estarem envolvidos no que  de cuidar  do carro-de-bois e na camaradagem benfazeja de toda a boiada carreira. Era uma junta desaparelhada na aparência. Além do avolumado porte, Negralfredo assombrava com a força que tinha. Quando se falava em carro-de-bois, pulava dentro da cabeça de quem ouvia, a figura do carreiro Negralfredo. Fazia parte do carro, compunha a boiada. Era o jeito pesado e forçudo ali no meio dela. Quando fazia carreto para Pedro Liseu, Manoel Vicente, Laudelino, com a boiada e carro deles, aceitava candeeiro. Algumas pessoas, depois de madura, já bem sucedidas na vida, contavam como vantagem maior, numa alegria brilhosa, que tinham sido candeeiros de Negralfredo.

                                   A CHEGADA 

                                   Era de tardezinha, mês de março, João do Custódio ia saindo da casa e parou na porta. Ficou um  pouco ali, escorado no portal, esfregou as costas na quina, espreguiçou, querendo pôr as mãos na nuca, estava um pouco esmorecido, mole. É que, depois de buscar lenha, tinha entrado na cozinha e, ao passar pela sala com tantos sacos de feijão amontoados, resolvera deitar-se um pouquinho só, ajeitou-se na depressão de um e outro saco e cochilou. Antes de levantar-se, ficou olhando para o telhado. Entrava uma luz ali e mais lá, por entre  o encontro das telhas. Agora estava molenga ali no vão da porta de saída. A mulher fazia barulho na cozinha e o Manezinho tratava dos porcos, dava milho, o barulho era grande. João olhou a posição do sol. Quase se escondendo. Deu com uma poeira na estrada, era lá, lá no começo da descida, era ele, era sim, era Negralfredo, não podia ser outro, era ele. Chamou o Manezinho. Não escutou, os porcos quebravam milho nos dentes e ainda brigavam com os do lado. Chamou a Deusarina:

                               -  Deusa, vem cá, o Negralfredo envém vindo, tá lá na curva do baru.

                               - Será, João? Só vejo poêra.

                               - É  poêra do carro-de-boi. É muita poêra!

                               - Vou é dá um jeito no de cumê.

                               - É. Ocê já sabe que ele come. Sabe, Deusa, reconzinhá bem a cabeça do capado.

                               - Vai dá tempo, João, até chegá, até descangá os boi, apronto.

                               - Todo carreiro é lerdo, lento, sem pressa. Eu aprendi a sê devagá com os boi carreiro.

                               - Não vem com essa não, João, ocê sempre foi com esse lerdume todo!

                               - Ah, hum!

                               João do Custódio era outro, procurou  o Manezinho. Estava tomando banho na bica do monjolo. Saiu logo para escutar o pai. A água que caía  não o deixava escutar direito. Ficou alegre. De há  muito queria ir à cidade e iria com o Negralfredo, um homem superior, muito falado, tinha mais força que uma junta de bois de coice.

                              Estava quase escurecendo. Tudo estava alegre. Berrava o bezerro e a mãe respondia, os porcos, no linguajar deles, bendiziam a vida, estavam de barriga cheia e ainda havia os diferentes grunhidos, a juriti falava um obá longo e sonoro. Na mangueira da porta do quintal, os periquitos e as maritacas conversavam com animação, era um palrar contente. As galinhas angolas estalavam a notícia, de maneira apressada. Os joões-de-barro repicavam o cantar e se sacudiam de alegria. Aos poucos, as galinhas se recolhiam ao poleiro e a noite chegava menos devagar que o carro-de-bois do Negralfredo. O silêncio escuro veio, um pouco desrespeitado pela vaca e pelo filho dela. O Manezinho ficou sentado em cima da cerca do curral para ver por primeiro a chegada do Negralfredo. Estava escuro. A lua era uma tirinha de nada, baixinha lá, perto duma estrela grande. Muitas estrelas no céu. Muitas. Uma pessoa conversava grosso, compassado, num tom escuro, não dava para entender. Os vultos foram chegando muito devagar, passadas pesadas e apagadas. A voz grossa da conversa, conversa assim com uma palavra, pausa, depois mais um som, mais pausa, conversa só de um, era o Negralfredo com os seus bois. Passou pela porteira, deu a volta no terreiro, fazendo a curva, chamando os bois de guia. Ouviu-se: Ôoa! O carro parou, dando uma rangida nos cocões. Para o Manezinho, era um espetáculo. Assistia a tudo com sofreguidão, captando os mínimos movimentos. Qualquer gesto que o arquétipo fizesse, o Manezinho o assimilaria. A claridade era das estrelas. Os vultos dos bois davam como bois grandes por demais. O vulto do carreiro era grande também, impressionava a largura, era, pelo que parecia, pesadão. João do Custódio, avolumado pela emoção, foi logo ter-se com ele. Ficaram conversando e descangando os bois. Foi tudo no capricho, sem pressa. Depois de soltos os bois no pastinho, vieram os dois conversando e  Manezinho desceu da cerca e foi para a cozinha. Sentou-se num banco comprido e ficou a pensar. Um dia, seria carreiro, a boiada baia, todas as juntas aparelhadinhas, iria viver em camaradagem com todos os bois, seria um homem, respeitado por todos, seria carreiro, o canto do carro como um gemido só, comprido e rosnado, carro carregado, iria ficar emparelhado com as  juntas, do lado que o vento desse, levando a poeira para o outro lado. Um suspiro quente subiu-lhe peito acima, ao imaginar que seria Manoel Carreiro, grande no conceito, sabia que não seria espadaúdo, espaçoso como Negralfredo, mas seria um carreiro. Manoel Carreiro. Iria ficar encorpado, mãos grossas. No mexido de tanto acudir na vida de carreiro, a gente acaba sendo quase do tamanho de um boi. É a natureza do carrear que faz o boi carreiro ficar assim grandão. Boi que não é carreiro, não fica enorme assim. É igual a gente, quando se é carreiro, fica um homem bem maior que os que não são. Só de ter o nome carreiro, faz a pessoa ficar grande no meio dos que não dão conta de serem. 

                                   A JANTA 

                                   A cozinha estava clara. Uma candeia no canto e o fogo de  lenha ardia debaixo dum panelão.  Deusarina movimentava-se em torno do fogão. Chegaram os dois. Tinham ido tomar banho na bica dentro do calabouço escuro. Manezinho abandonou o banco e foi sentar-se num tamborete, forrado de couro cru.  João do Custódio falou alegre:

                                  - A Deusa preparou uma cabeça de poico do jeito que meu sôgo fala  cocê gosta. Tá cozinhada intêra, vá servindo.

                                  Manezinho esperava ver o jeito de conversar de Negralfredo. Pôs sentido. Negralfredo falou, assim que João do Custódio acabou de falar:

                                  - O seu Manoel Vicente, toda vez que mata um poico, guarda a cabeça pra mim.

                                  A voz soou macia, natural, normalmente, embora em tom grave, era diferente da voz com que falava com os bois. O Negralfredo deva ter achado os pratos pequenos, porque escolheu uma gamela de amassar bolo que estava debruçada ali perto e foi com ela na mão, foi servir nas panelas. O panelão da cabeça de porco ficou no buraco maior da chapa, embaixo, ardiam os tições ainda. Por causa do peso, a Deusarina deixou ali mesmo. O Manezinho fincou os olhos na gamela com tanta comida e aquela cabeça enorme, amassando tudo. O jeito de comer do Negralfredo era tranqüilo, sem parar, com uma ganância moderada, achando bom, ou a comida estava gostosa ou a fome ajudava no sabor. Já no final, tendo pelado a cabeça, corroída por derredor, tirou o facão da bainha e, num golpe só, abriu o crânio, jogou um caldo dentro, por cima no todo e baixou o queixo nos miolos, nada deixou nas cavidades, o que pôde sorver, sorvido foi com o ruído característico da sucção. Aceitou a sobremesa de rapadura com requeijão. 

                                  - Tá cum-a boiada boa, Negralfredo.

                                  - Já envém  uns tempo comigo. Erada.

                                  - Vendi a minha. Nunca pude comprá ôta, queixou-se magoado João do Custódio.

                                  - Sabe quem tá vendeno a dele, João?

                                  - Hum. Num faço idéia.

                                  - Zé Rosário.

                                  - Será que vai formá ôta? Não sabe mexê cum ôta coisa...

                                  - É. Num sabe não. É carreiro bão.

                                  - Isturdia, tive na rua e a Maria do Rosário num me falou nada não.

                                  - Pois tá, João. Ofreceu pru Diolino.

                                  - Bunita é.                                       

                                  - Apanha ela dele. Ele é bão de negoço.

                                  - Cuá.

                                  Houve uma pausa preguiçosa e cansada. Ninguém falava.  Deusarina e  Manezinho já tinham ido dormir. João se levantou, foi lá, mexeu no pavio da candeia. Voltou.  Negralfredo puxou. Puxou por puxar:

                                  - E a chuva, João, será que ainda vai vim?

                                  - Vem não, comecim de março e eu andei arreparando na pusição da lun-a.

                                  - Sei não, João, tenho duda. Os meus calo deu de doê. Vai chovê. E a enchente de São José taí. Essa estrada até Catalão  tem um trecho ruim ali na Mata Preta, na descida do Quebra-Bunda, ali encrava mêmo.

                                   - Eu também, Negralfredo, já sofri ali. Drumi uma noite atolado, uma roda no formigueiro. No meu tempo, era a estrada velha. Parecia que a terra era podre. Ocê parece que tá querendo cama, bamo drumi.

                                   - É. Primêro, vou dá uma chegada ali no terreiro.

                                   - Inhantes, vou mostrá adonde ocê vai drumi. É bem aqui na sala. Boa noite!

                                   - Boa noite!

                                   UMA NOITE ACESA

                                   João do Custódio não dormiu. No começo, foi a emoção de estar hospedando um amigo especial. Sempre o admirava. Pessoa, de um rumo só, afeita e dedicada ao trabalho, no sempre do dia-a-dia, às vezes, entrando noite e saindo madrugada, foi fazendo a imagem respeitosa, querida. Um homem incomum, honrado, cujo nome era falado no cantar do carro-de-bois. Quem o escutasse, dizia, com um jeito carinhoso e amável, que era o Negralfredo que lá vinha ou lá ia. A emoção de João do Custódio deixara-o aceso ali junto de Deusarina, virada para o canto,  encolhida. Não dava mais para ele dormir, o ronco do Negralfredo irrompeu, trepidando na escuridão da noite, como se fosse trovoada do mês de novembro. E João fez as suas reflexões, analisou a vida. Avaliou tudo o que tinha feito. Errou. Não deveria ter vendido seu carro-de-bois com a tão querida boiada carreira que tanto trabalho tinha dado para ficar tão boa como era. Vivia junto com todos os bois quase todos os dias, amava, não podia viver sem eles. Era bom ficar no meio deles, passar por eles, conversar com cada um de um jeito diferente. Eles retribuíam o amor da gente. Era tão bom! Eu era João Carreiro. Hoje, o que sou? Apenas um roceiro no meio de milhares. Antes, eu era mais que os outros, aliás, nós éramos pessoas de maestria, eu, Zé  Rosário, Sinhô do Torquato e Negralfredo. A minha vida era cheia. Sem carro-de-bois, a minha vida se foi esvaziando como que me sentindo ocado por dentro. A alma ficou chocha. Sou um fracassado, não fiz o de que gostava, ser carreiro. João Carreiro é o título maior que eu poderia ter, não trocaria por título nenhum neste mundo. Para ser carreiro precisa ser paciente, precisa saber lidar com dez bois, amá-los, poder cuidar deles, ensiná-los, conviver com eles o dia todo. Ser habilidoso, gozar os prazeres do entretenimento de tudo acudir, desde a brocha no canzil da junta de guia até o argolão da tiradeira sob a cheda, lá no recavém. Manter o azeiteiro nem cheio nem vazio. Engraxar bem a cantadeira, bem ajustada aos chumaços e aos cocões, saber lavrar um canzil, deixar firme a chavelha do cambão, a chave do cabeçalho, saber conversar diferenciado com cada boi, escolher, com mesmo feitio, os paus dos fueiros, trazer bem ensebados os tamoeiros, sempre na medida para que as chavelhas desçam nas cavidades dos cambões, por trás da cangas,  e saiam, do lado embaixo, pela frente. Na hora de fazer o carregamento, distribuir o peso na mesa do carro, fazer que os bois da mesma junta puxem  por igual, não deixar dar arrancos, evitar quebrar algum canzil ou mesmo canga, aprender a se posicionar sem ajoujos, enfim toda ação é um capricho gostoso da vida. Fiquei sem minha vida. Como poderei viver de novo junto de um carro-de-bois? Ser, um dia, chamado João Carreiro? Vendi a minha boiada carreira, eram cinco juntas. Puxavam macio, sereno, dando toada ao canto do carro. E o meu carro? Quem fez foi o Doroteu, carapina de renome lá do Paraíso de Cima. Fez no capricho para mim. Pôs ferragem, vinda de Uberlândia. Madeira de lei. Madeira mole só era  a cantadeira. Acabava, eu fazia outra, ia repondo. O dia em que conheci a Deusarina, fiquei só pensando nela e  descuidei, não untei direito a cantadeira, os chumaços andaram pegando fogo. E a tolda? Tampadinha, toda de couro. Couro comprado em Goiandira. Foi, quando fui à festa lá. Os catireiros. O safoneiro Adolfo Mariano. Como dói lembrar! Vivo apaixonado. Sofro calado. Ninguém me entende, ninguém sabe o quanto é bom ser um carreiro. O meu sogro tem grandes fazendas. Começou como carreiro. Pegava sal, arame em Sacramento, no Estado de Minas, trazia até Roncador, de cá do Corumbá. Passavam a mercadoria para o lado de lá e  outros carreiros levavam até Formosa. Um dos retornos eram as marmeladas que vinham de Santa Luzia. Depois, o porto de Roncador  fez passagem. Os carros já iam até Formosa dos Couros. Nunca saí longe com um carro-de-bois. O meu sogro ia a Campo Formoso, tinha um amigo lá, falava muito nele, era influente no lugar, era o Florentino. Outro amigo era o Olímpio Pereira. Falava muito nos dois. Ia mais além, ia  até  Bom Fim. Boiada feia. Era boi de todo jeito, roxo, branco, chita, fumaça. A minha era bonita e eu vim morar no Buracão.                                                                                                                             

                                  O galo cantou, João levantou-se, mijou no terreiro. Chegou a espumar, dava de  ver. As estrelas brilhavam muito naquela madrugada das reflexões sobre a frustrada vida. Voltou para a cama, a mulher que estava encolhidinha, virou para o canto. Tinha acordado com o barulho do colchão de palhas de milho. O ronco do Negralfredo, naquela hora da madrugada, era um gigante despertador. Disparava soprando um som grave, surdo, repuxando um assobiado espremido demoradamente, voltando a disparar um ruído muito parecido com engenho moendo cana. Um roncar num calibre assim, dentro duma mata, iria humilhar o mais  barulhento guariba.

                                   O sonho do Negralfredo foi um só a noite inteira, pelejava e pelejava e não conseguia botar uma enorme cabeça de porco dentro do seu carro-de-bois. Estava muito untada, ia entrando, escorregava. Usava a tiradeira, mas estava embebida na banha derretida da cabeça do porco. Geraldo Cateca ajudava. Apareceu João Canigunda. Não valeu de nada. A cabeça não cabia dentro.

                                   O galo voltou a cantar. Já era madrugadinha. A cama quente. Lá fora, frio. João já não podia dormir, havia algumas providencinhas ainda. Foi-se levantando com cuidado. O catre rangeu e as palhas do colchão ralharam um pouquinho com o jeito de assentar. Quando passou pela sala, viu a sacaria de feijão e a porta aberta. Foi dar com  Negralfredo mexendo no carro. Passou beirando a cerca e foi cuidar das criações. Deixou para conversar depois, mas é que depois que voltou, Negralfredo estava  quase com a metade da carga já arrumada. Cada saco pesava 80 quilos. Saco de arroz, 60. Saco de feijão, 80. Como era só feijão, cada volume era de 80 quilos. Precisava de duas pessoas para carregar um.  Negralfredo sozinho levava como se fosse um saco de algodão. Contrariando os princípios de carreiro,  Negralfredo estava sendo ligeiro. Era a prática. Os movimentos eram moderados, direcionados e eficientes.  João fez de conta que não viu e demonstrou estar com outra ocupação, inclusive foi acender o fogo, serviço que, em outras circunstâncias,  cabia à mulher.

                                 Feito o carregamento, era aguardar a partida. Deusarina ainda foi torrar café. O cheiro dominou o terreiro, foi longe. As ventas do Negralfredo abriram-se e fecharam-se por três vezes. Cheiro gostoso. O moinho gaguejou, gaguejou e o café foi moído. O café coado dentro do bule. Era um bule grande, esmaltado, azul, duas pintas vermelhas do lado de fora, eram dois coraçõezinhos, caprichos do enxoval de casamento. O requeijão, empalhado, não dava de ver a casca, se era novo ou se já fazia dias que tinha sido feito. Enquanto Deusarina reunia café, requeijão, canecas no rabo do fogão e Manezinho rapava a rapadura em cima da mesa, João chegou com leite espumado numa cuia de uns três litros:

                                 - O leite, Negralfredo.

                                 - Vou na cuaiada primêro, a num sê...

                                 - Tem, sim! Ó lá!

                                 O Manezinho foi lá na prateleira e trouxe a combuca. Estava pesada. Entregou-a nas mãos de Negralfredo e foi buscar o açúcar de forma. Trouxe uma lata de querozene, dentro,um pouco mais  da metade, estava o açúcar pardo, da mesma cor  da cumbuca. A hora em que Negralfredo destampou a cumbuca, estava amarela de nata, estava sopitando umas como bolhas como couro de jia, indicando  que não era de ontem a coalhada, era de muitos dias, era azeda, gostosa, no ponto. Foi nesse ritual de saborear a coalhada toda, pouco mais de três litros, que  Manezinho ficou pasmado, ficou com inveja. Para rebater, Negralfredo pegou o bule pesado de café, encheu uma caneca esmaltada, segurou com cuidado na asa para não derramar, pô-la no banco, pegou a faca, partiu o requeijão em duas partes visilvemente iguais, firmou o indicador e o polegar numa banda e com a mão direita foi pegou a caneca. A gangorra começou, subia o requeijão e descia o café, o café subia, descia o requeijão. No final, o café da caneca desceu e o requeijão também. A caneca foi colocada com cuidado em cima do banco, mas, assim mesmo, fez um ruído que denotava estar vazia. De pé, Negralfredo falou:

                                 - Tudo que fô de levá, ocês põe no carro. Eu ivô ino devagá, tem muita subida, vai demorá muito pra mode pegá o espigão.

                                 PEDAÇO DA VIAGEM

                                 João do Custódio, mulher e filho correram com o de levar e, apesar de o Nico do Coló ter ficado de dar uma olhada nas criações, era preciso cuidar dos preparativos da ausência. O Manezinho correu lá para ver se tinha pego alguma coisa na arapuca. Nada. Desarmou-a. Assim, tido tudo pronto, ainda ficaram por ali, mais de duas horas. Deu muito tempo de o carro se distanciar. Fizeram-se ao encalço dele. O sol estava às costas, já estava bem alto e fazia calor. Os dois sulcos paralelos das rodas pesadas do carro estavam ali no caminho. João bateu um pé, bateu outro, bateu mais outra vez em cima do rastro do carro. Queria gritar: É minha paixão!, mas foi só no pensamento. Muita alegria. Uma descidinha, depois uma subida tolerável, meio comprida. Manezinho, sobressaltado com as repreensões, resolveu falar:

                                 - O carro do Negralfredo num canta não?

                                 João não respondeu. Ficou calado.

                                 - Ein, mãe, o carro num vai cantá não?

                                 - Sei não, respondeu Deusarina, virando a cabeça para o lado de João como que lhe pedisse a ajuda para a interpelação, cuja resposta, fosse a que fosse, só seria de interesse do menino. Era o que João queria. Mostraria ali que entende de carro-de-bois e sabe até a hora que vai cantar. Era bom falar sobre carro-de-bois:

                                  - Nesta estrada aqui, num canta não. Carro canta, quando tá pesado e numa estrada que permite a mesma toada. Aqui, ó, ó aqui um buraco. Aqui precisa raiá com os boi de coice pra mode segurá prá não dá bacada. Desce a roda devagarinho. Lá no espigão, estrada real, cortada, aí o carro vai cantá .

                                  João foi quem avistou primeiro o Negralfredo. Estranhou. Era ele sem carro e sem boi. Desceram e começaram a chegar perto, foram subindo e aí foi que João entendeu. Os bois não deram conta de subir com o carro carregado. Negralfredo foi descarregando, pegava dois sacos de feijão duma vez, levava um debaixo do braço direito e outro debaixo do braço esquerdo e ia subindo com os braços curvos, cotovelos para fora, num galeio a cada passada, levava dois duma vez só, punha lá no alto, no plano, no fim da subida, vinha cá, pegava mais dois, um dum lado, outro do outro lado e subia lá e deixava, vinha de novo e de novo ia, deixando só meia carga dentro do carro. Xingou  os bois, picou alguns com a vara de ferrão, deu trabalho. A fileira de boi ia para um lado, para outro, nada, só amassava o capim, o carro nem aluía. O Rochedo, da junta de coice, caiu e estava enforcando, a língua retorcida para o lado. Não chegou a quebrar o canzil. O Negralfredo já ia cortar a brocha, quando o Pimpão,  companheiro de Rochedo, deu uma guinada, golpe na medida, e o  Rochedo se levantou meio prensado.

                                  Ouvia-se  a linguagem do carreiro. Conversou com  os bois e chamou.  O carro subiu, arrastado, resmungando nos cocões, até no topo da elevação. Os bois ficaram descansando e Negralfredo botou, no carro, a carga que ele transportara nos dois sovacos. Foi a vez de João ficar pasmado. Não acreditou no que viu. Balbuciava uma frase ininteligível, repetia.

                                    POUSO  COMPRIDO

                                   O pouso, nos cálculos de Negralfredo, seria na fazenda do Eustáquio. O sol já tinha virado. Não muito longe para as bandas do ocidente, escurecia de tanta armação de chuva. O sol, encoberto pela ameaça de chuva, fazia falta, esfriava e escurecia. Relâmpagos no azul negro das nuvens faziam coivaras de fogo. Os trovões ribombavam do meio para a esquerda e do meio para a direita. Manezinho pensava num couro de boi bem grande, do tamanho da metade do céu, bem seco e bem duro, sendo desdobrado ruidosamente pela amplidão, lá por cima das nuvens. 

                                   Caminhando, ao lado do pai, ia o menino, de braços cruzados, frio no vento. Olhava para o chão. É que ia triste. Não deu certo andar dentro do carro, debaixo da tolda. Deu de vomitar. Mesmo indisposto, não lhe saía da cabeça a imagem de Negralfredo. Homem grande. Grande não. Nele tudo é na medida. É muito largo, muito pesado, a cabeça não é comprida. É escuro  assim da cor de estaca de aroeira, exposta ao tempo, lá na cerca do pasto da fazenda do tio Nigrim. Negralfredo deva ser ele todo de cerne. Cabelo enroladinho. É todo pesado. Pesado até para conversar. Deva pesar mais que dois sacos de arroz.

                                 Deusarina, filha de carreiro, não sentia enjôo nenhum lá dentro do carro, em cima do feijão, debaixo da tolda de couro e lá ia, nem sabia do mundo do jeito que estava vindo do ocidente, para onde estava indo. João do Custódio ia sempre ao lado de Negralfredo. O carro cantava. Tirava a conversa deles. A poeira ia, levada pelo vento, para o lado. Com a ameaça do temporal, o vento empurrava a poeira, achatando-a na macega.    

                            - Nun dá de segui, essas última chuva costuma sê braba, disse Negralfredo, cheio de razão e de experiência, tinha dito que os calos doíam, era aviso de chuvas e elas ali vinham. Iria agora caçar um lugar para soltar os bois e parar o carro num lugar seguro e sem perigo de enxurrada, porque iria dormir no chão, debaixo da mesa do carro, em cima dormiriam João, mulher e filho, no aconchego espremido, entre sacos de feijão e a abóbada de couro. É que, quando Negralfredo voltou lá do ressaco, onde tinha deixados os bois,  os três já estavam deitados debaixo da mesa do carro. Não havia alternativa, era dormir no espremido, mais um peso em cima do carro. A chuva desabou grossa, contínua, escura, com lampejos rápidos e longos de relâmpagos. Era um despejar de cascalho em cima da tolda, tal era o barulho da chuva. Estremecia o mundo além com trovões pegando caminhos diferentes, indo longe, vindo perto. João do Custódio, ainda acordado, chegou a sorrir na escuridão, esta noite, o ronco do Negralfredo ficaria aquém dos trovões pançudões. 

                                  De madrugada, João acordou. Tinha sonhado com a chegada de uma boiada. O berrante tocava. O som ia morrendo. Ia, ia, ia morrendo. Começava forte, ia morrendo. Acordado, escutou o mesmo barulho do berrante. Soprava longo e morria, era o ronco do Negralfredo. A chuva engrossou. Um relâmpago vislumbrou o Manezinho deitado atravessado. O eixo do carro na barriga dele. Demorou um pouco, um relâmpago curto deu luz rápida. João, apavorado, chamou:

                                 - Manezinho! Manezinho!

                                 - Deusa! Oi, Deusa!

                                 - O que qué, João?

                                 - O Manezinho tá prensado no eixo do carro aqui, ó passa a mão.

                                 Deusarina esganiçou um grito de dor e pavor que todos acordaram. Ela não falava, gritava gemia, desesperava. Negralfredo falou:

                                 - A roda desceu. Tá espremeno o menino. Sai debaixo depressa, Manezinho!

                                 - Não dou conta, disse o menino choramingando. A mãe e o pai dele desatinados. Negralfredo rastejou ligeiro. O corpo não chegava lá, mas espremendo-se, a mão grossa beirou o menino e foi cavoucando com as unhas ao longo do corpo frágil e prensado. Conseguiu fazer uma valetinha e solapou por debaixo. O Manezinho cooperou e desceu o cavoucado e o lado da roda baixa ficou para lá e, com custo, foi saindo para o lado mais alto do eixo. A mão forçuda de Negralfredo estava ajudando. Manezinho se salvou e a roda do carro afundada com o eixo quase rente.

                                  Não houve pressa para desencravar. Assim que o dia amanheceu, Deusarina e Manezinho voltaram para a Fazenda Buracão. A chuva continuava. João e Negralfredo ficaram ainda dois dias ali, mas sem pressa. Deixaram o eixo encostar de vez no chão, andaram pela redondeza. A conversa era a chuva e a roda do carro afundada pelo traiçoeiro solo. A estiagem veio. Um sol claro. Parecia que a chuva tinha lavado a cara do dia. Todas as correias secaram e foram ensebadas. Os bois descansados estavam das subidas lá do Buracão. Negralfredo juntou  lenha para fogo ligeiro. Eram pés secos de lobeira. Serviriam para a feitura do próximo café.

                                   João do Custódio, longe da família, sentia-se mais à vontade, alegre, descontraído, era outro João junto de um carro-de-bois, chamava pelo nome os dez bois. No chapadão, antes da Mata Preta, Negralfredo deu-lhe a vara-de-ferrão, não falou nada, o carro cantava com a alma ferida e os bois, na toada, iam nas passadas medidas e ritmadas, par a par, na cadência do sublime amor do trabalho em grupo, dois a dois, de parelha, num conjunto harmônico, arrebatando a alma do carreiro, envolvendo-a num místico enlevo de mansidão, provindo das almas trabalhadoras dos bois carreiros. João era outro. O carro cantava e Negralfredo descansava dentro do carro. Era a cantiga de ninar, quase monótona, indolente e o carreiro dormia no colo do seu mundo de bondade, atravessando o sertão. Dormia na paz e mansidão, porque sabia que João do Custódio também tinha alma de boi.

                                O carro tinha deixado a região da Mata Preta, terra do valentão Lafaiete, homem respeitado, parecia ser mais macho que os outros. A travessia do Quebra-Bunda foi tranquila. É que houve muito preparo. A boiada descansou, bebeu água e a estrada não estava enxuta, mas permitiu a passagem. Foi demorada. Foi um alívio. 

                                  DUAS VEZES EM CATALÃO

                                  Foi  à noite que João do Custódio e Negralfredo chegaram ao PedroBibica. Pousaram junto do vau do córrego Água Limpa. Os bois foram soltos um pouco para baixo, num tipo de várzea. Aguada boa. Ao amanhecer, uma neblinazinha, cerração pouca, cobria a várzea. Os bois pareciam estar dispostos. Antes do almoço, já se avistou o Morro da Saudade, também chamado Morro da Igrejinha de São João. Cá embaixo, estaria Catalão. João já tinha dito que o destino do feijão seria no Mamédio. Era só descarregar e receber. Foi uma decepção. Mamédio recebeu João com pouco caso. Ficar, até que ficaria com o feijão, pagando  a dois a saca.  João queria seis. O sol quente demais, passada a hora do almoço, aquele ambiente de almas diferentes das almas dos bois, tudo ali foi dando um mal-estar, um suplício. Mamédio sabia muito bem que o carro estava carregado, os bois vindos de viagem, sem comer e sem beber. Sabia também que a gastura daquela poeira estava  ensebando a paciência dos dois carreiros. Aquela mercadoria, ali na porta, numa circunstância de desespero, botava ferrão no lombo da pressa de João do Custódio. Queria fechar negócio, acertar com Negralfredo, voltar para a fazenda Buracão, estar junto com o filho e a mulher. Não dava negócio. Um ano inteiro na peleja com o feijão para dar num quase nada! Eram muitas ilusões e planos que estavam no carreto da alma até ali! Resolveu ir até ao armazém do Farud. Iria dar certo, receberia em mercadoria de que precisava na fazenda Buracão. Era perto da estação da Estrada-de-Ferro. Farud não quis, não fez nenhuma oferta. Não comprava feijão com moinha.  Um atravessador andou beirando o carro e se prontificou de arrumar quem iria comprar por quatro, mas queria dois pela mediação. João disse para ele:

                                  - Ocê num plantou e qué ganhá dois?

                                  - Ocê num carreô, observou Negralfredo.

                                  O atravessador tinha sido mandado por Mamédio.  Estavam cansados, com fome e num lugar só de malandragem, gente diferente no vestir, no falar, a rua não era apropriada para ficar andando de carro-de-bois com a poeira engrossando o suor. João do Custódio, todo desajeitado, chegou perto do Negralfredo:

                                  - Rabeia o carro. Bamo vortá.

                                  - Nóis passa por Ouvidor, João. Quem sabe o Mané Sena...

                                  - É mesmo, Negralfredo, aqui tão proveitando de nóis.

                                  - Dá de pousá de novo no Pedro Bibica.

                                  Saíram da cidade, pegaram a estrada. O carro cantava triste. O atravessador apareceu:

                                 - Mamédio vai pagar o que  pediram.

                                 - Quem garante? - perguntou João, discrente e desconfiado.

                                 - Ele está vindo. Pediu para esperar.

                                 Não demorou muito, Mamédio chegou. Examinou demoradamente o feijão. Pechinchou um pouco, teve um abatimento por saca e o negócio foi fechado. João e Negralfredo foram outra vez ao comércio do Mamédio, onde deixaram a carga de feijão.

                                 Botaram o carro vazio na estrada. Estavam de volta. A toada dos bois era boa, era rumo de casa. Rumo do pouso. O vento, vindo do ocidente, baixava a poeira por sobre o campo ali perto da estrada. Nuvens bem encorpadas, escuras no horizonte lá longe. Magros relâmpagos por lá mesmo  corriam e se escondiam. Negralfredo  sentou-se na mesa do carro, virado para trás, as pernas caídas, balançando-se. Desistiu, pulou fora. Emparelhou-se com João que estava indo entretido com a viagem. Cabeça cansada de fazer negócio, fome, cansaço.

                             - João, animal pode sê bruto do tanto que fô,  é mais fáci lidá com ele do que cum  Mamédio. A gente da cidade cansa a gente, falou Negralfredo, tentando confortar o companheiro.

                             - A cantadeira, os chumaço, os cocão não sofre aperto como a idéia da gente, conversano com esses esperto e desumano da cidade.

                             - A marvadeza deles num dá com a gente, pega ruindade na gente.

                                - Tô moído, Negralfredo!

                                - Alma boa é de boi. A gente acha bão ficar junto. É mansidão. Conforta. Nóis num tamo só nóis dois neste chapadão, aí, tamo junto cum tanta alma boa! A gente sente bem. No meu enterro, quero o acompanhamento de uma boiada carreira, quero ir dentro dum carro-de-bois.

                                - Tá cunversano triste, Negralfredo.

                                - Não. Num é triste não ficá indo pro cemitero no meio de bois carreiro, de almas sem maldade,sem interesse de explorá.

                                - Num atino não.Tô assim sem...

                                - Pois já falei pru Laudelino e ele me falou se eu morrê primeiro, ele me leva pru cemitero de carro-de-boi.

                                - É. O Laudelino sabe carreá.

                                - Só já fez carreto ali pela porta dele memo. Nunca varou o mundo  como a gente, mas tamém num precisa. Carreia por gostá.

                                - Tem uma boiada roxa igualzinha como dez botão

duma camisa.

                                - Já tá descambano pra os Bibica.

                                - Vai dá de descansá, cumê, drumi.

                                Negralfredo passou a falar com os bois. Precisava. Era descida e a junta de coice tinha de segurar. Falava do mesmo jeito de mandar o carro de fasto: - Afasta Rochedo! Afasta Paredão! João do Custódio passou a reparar mais nos bois, era gostoso ficar junto deles, cada um com uma paz diferente, cada um com uma alma bondosa, sem malícia, calma benfazeja, aconchegante. Deixou Negralfredo atrás e foi ser candeeiro um pouco. Era para ajeitar o carro para pousar, quando à baixada chegasse. A junta de guia ficou encolhendo as outras. Era uma junta simpática - Amoroso e Sereno.

                                 Descida  pequena e foi, em muito, abrandada pela cava. Era a várzea do córrego Água Limpa. Mais para a esquerda, mais acima, era a sede da fazenda do Pedro Bibica. O sol estava ainda a uma boa altura. Soltaria a boiada. Água  boa no vau. Pastagem no ressaco, logo abaixo. Almoço e janta duma vez só. Seria um pouso cedo, caprichado no panelão suspenso na trempe. Não deu de pousar ali não. É que Pedro Bibica apareceu, tocando quatro bois carreiros dele. Tinha acabado de atravessar o vau.

                                 O CARRETÃO 

                                 Pedro Bibica conhecia Negralfredo. Admirava-o. Tinha respeito por ele como uma pessoa agigantada no porte e no habilidoso ofício de carrear. Era uma alma boa. Só se ouvia falar bem dele. As crianças, então, se acercavam dele. Penduravam até quatro em cada braço dele, querendo puxar para baixo, mas ele, em formato de cruz, retesava os músculos e sustinha as crianças no ar até que  se desprendessem por si, por exaustão. Com a agradável imagem de Negralfredo, foi que Pedro Bibica o saudou:

                                - Ocê num morre mais não. Envinha ali pensava nocê. Tá ino pra donde, Negralfredo?

                                - Paraíso de Baixo. Vim a Catalão trazê um feijão pro  João, apontando para o João do Custódio que estava de cócoras junto à roda  esquerda do carro.

                                - Bamo cabá de chegá, pousá, dispois ocês segue.

                                - Socê num simportá da gente ficá por aqui, nóis pósa aqui memo.

                                - Não, não! Bamo cabá de chegá. Ocê até que podia me ajudá fazê um carreto amanhã... Tô cuma boiada curta, só duas juntas, essa aqui cocê tá veno. Tô  precisano trazê, no carretão, umas tora pra o carapina fazê as moenda do engenho, tenho que trazê também  tora de angico, aroeira pra  esteio, pra moirão.

                                - Nos caso de precisá da gente, nóis caba de chegá e, virando para João do Custódio, acrescentou:

                                - Bamo pra lá dá uma demão pra ele, João?

                                - Bamo, concordou João, nóis precisa dunzozoto.

                                Foram. A acolhida aos dois carreiros foi boa. Um jantar pesado. Quatro bois de Pedro Bibica e só quatro de Negralfredo no carretão. Seria pela manhã. Antes de dormirem, Negralfredo e João do Custódio não participaram da lavação dos pés, tinham tomado banho. Não dispensaram o leite com farinha. Era bom para empanturrar o sono no comprido da noite.

                                Amanheceu chovendo. Carreiro não tem pressa. Esperaram a estiagem que veio depois do almoço. Botaram a boiada no carretão. Desceram, subiram, desceram. Estrada ruim. Impossível  para carro-de-bois. Caminho esquisito foi o que  achou o experiente carreiro. Foi beirando assim mesmo o mato, era um carretão, talvez desse, mas resolveu parar e ir ver onde as toras estariam. Pedro Bibica não tinha ido, quem foi, foi o Zé Firmino, carreiro sem dom para o ofício. Foram, como ajudantes de botarem a madeira no carretão, quatro peões do Cassiano. Zé Firmino ficou vigiando os bois. As duas juntas da fazenda se mostravam desobedientes a tal ponto que Negralfredo achou que foi precipitado o enxerto delas nas dele.Seguiram pela picada. Era suja, o chão meio preto, escorregadio e muito esconso para a esquerda, para o lado do mato. Deram com o jatobá deitado mata adentro. Era  grosso e separado em duas toras de comprimento igual, a mais do pé dava descrença de enfrentar, mas se entrasse no carretão, daria de ir. As outras madeiras, a de aroeira e as de angico, traria arrastadas até ali. Voltaram para buscarem o carretão. A junta de coice, Barroso e Barrado, era do Pedro Bibica e estavam dando trabalho para Zé Firmino. Desinquietos e insatisfeitos. Rumaram até ao jatobá para o embarque. A primeira tora, um homem não abarcaria, talvez dois. Passariam um pau meio grosso, tipo cambão, por baixo da parte mais grossa do tronco ali no chão úmido, afofado de folhas. Por idéia de Negralfredo, dois de cada lado do pau atravessado, portanto, quatro homens levantariam  a tora e, na parte mais fina, só Negralfredo daria conta sozinho de erguer até  entrar no carretão. Eles duvidaram. Impossível achavam. E como passar o pau atravessado por baixo do pé da tora? Não conseguiam. Negralfredo chegou no pé da tora, sem falar nada. Abaixou, enfiou as mãos no chão, firmou e sungou a tora. O estufamento dos músculos, das bochechas, da cara toda, do pescoço, os olhos estavam para pularem fora. Todos os quatro se assustaram e ficaram parados. Negralfredo soltou um gemidão: - Bota o pau! Pegaram todos duma vez só no pau de atravessar e andaram uns querendo tomar dos outros,  passaram por baixo e Negralfredo arreou, entendendo o espanto dos companheiros, porque não sabiam quem ele era.

                                                 CARRETO INTERROMPIDO

                                   Fez-se o embarque das duas toras do mesmo tronco do jatobá. Foram calçadas com duas toras de aroeira e uma de angico. As três não eram  grossas, mas chegaram até ali, arrastadas pelo Amoroso e o Sereno, a bem mandada junta de guia. O carretão ia indo. O trajeto inicial era plano. Quando ia começar a descida, uma descida curta, Negralfredo parou. Falou para o Zé Firmino:

                                   - Tô pensano em deixá aqui e amanhã a gente vem com a minha boiada inteira. Num tô gostano dessa junta. O Barroso até que escora, segura, mas o Barrado faz é atrapalhar. Desvia o cabeçalho aqui para a direita e, nesse esconso aqui, chegando ali embaixo, descontrolado, atravessar a estiva de pau amontoado e aquelas estaca, do lado aqui debaixo, desse lado do Barrado, meio curvano, pesado como tá, num sei não, Zé Firmino...

                                    - No meu modo de pensá, dá. Ocê desça o pé da vara na testa do Barrado. Ele tem de escorá.

                                    - O carretão tá muito pesado, essa junta num dá conta não, mas se a gente descê uma tora dessas e amarrá atrás e i de arrasto, pode  sê mais seguro. Mió se ficá pra manhã.

                                    - Não, Negralfredo, essa junta dá conta.

                                    - Tenho duda, Zé, sabe, Zé, não fosse carretão, fosse  carro, descia marrado, as roda fincano o chão, mas o carretão desce solto, essa junta de coice do Pedro Bibica não me agrada não.

                                    Zé Firmino olhou para os quatro peões do Cassiano. Estavam ali só dando uma demão. Pedro Bibica bem que poderia ter vindo para ajudar decicir. Não viera. O carapina estava esperando a madeira. Decidiu arriscar. Arriscaria.

                                    - Bamo tentá, Negralfredo, ocê é mais experiente, fica dano na testa do Barrado e eu vou bateno no Barroso.

                                    - Intão, os menino do Cassiano, vão pra frente dos boi, raiando com a junta de guia.

                                    O carretão se movimentou e a boiada se encolheu. Negralfredo, de fala compassada, passou a gritar ligeiro e o pé da vara de ferrão golpeava a testa do Barrado. Zé Firmino gritava com o Barroso e a pancada na testa dele era sem dó. Nada adiantou. O carretão desceu precipitado para cima da boiada encolhida, amontoando-a, deixando uma parte virada para o lado de cima, outra, arrastada foi pelo escorregão do peso  descendo.O carretão tombou. Uma parte do tronco e as pernas de Negralfredo ficaram debaixo do boi e a cabeça rompeu-se entre os raios da roda.

                                    Quando Zé Firmino, com a ajuda dos peões e das duas juntas de bois, retirou o corpo de Negralfredo, já era noite escura. 

                                     CARRETO PARA OUVIDOR

                                     João do Custódio entendeu que não podia fraquejar. Estava diante de uma surpresa destruída. Cangou os bois e rumou para ouvidor. Pouco mais da meia-noite, estava quase chegando à casa do Laudelino, lembrou-se do João Rosário, passou na casa dele.

                                     Já quase quatro horas da madrugada, toda a população de Ouvidor estava no velório de Negralfredo. É que Hélio Goulart, na época, prefeito, incumbira o jovem Ronaldo Torquato das providências todas de que o funeral precisasse. A primeira delas foi conseguir o salão da Câmara de Vereadores, julgando ser espaço suficiente  para todos que fossem prestar homenagens ao místico carreiro. Dona Cecília do Sinhô pediu as sandálias do finado. Era uma judiação usar umas sandálias de couro cru, feita por ele mesmo. Correia dura. Queria para lembrança, quem sabe dariam sorte. Coitado dele. Carreiro não ganha que dá para comprar calçado não.Quando foi de madrugadinha, havia muitas rodas de gente do lado de fora. O comentário eram casos relacionados à força física do finado. Certa vez, ganhou a aposta com o comerciante Moisés. Carregou 30 sacos de cimento, empilhados em cima das duas mãos, por detrás, dedos entrelaçados. As tampas de garrafas de cerveja. Ali, naquela esquina de lá, era a padaria do Sidraque, foi ali que, numa roda, uns cavaleiros do Paraíso de Cima estavam bebendo e amassavam as tampas de garrafas, davam uma dobra nelas, ficando uma meia lua. Provocaram o Negralfredo. Havia oito tampas em cima da mesa. Era a prova da força de dois da turma. Ajuntaram em um monte e indagaram do Negralfredo se daria conta de dobrar uma tampa assim. Ele enfiou as unhas numa e desamassou e rasgou como se fosse papel. Como ficaram espantados, ele  fez a mesma coisa com as oito tampas.

                                  Muitas pessoas conversavam  animadas. Tinham vindo carreiros de Goiandira. Quem os trouxe foi Adolfo Mariano, o maior sanfoneiro que existia na época. Lázaro Manteiga, de Campo alegre, muita gente lá dos Pires, da Mata Preta, do Paraíso de Baixo, do Paraíso do Meio, do Paraíso de Cima, daquelas beiradas por perto do Vau do Negralfredo. O doutor Frota, Miguel Pereira, Vasquetão faziam parte da comitiva de Três Ranchos.

                                  Pedro Bibica que tinha ido dar ocorrência em Catalão, chegou com o doutor Lamartine. Depois de muitos cumprimentos, assuntos e casos, o influente médico ajeitou os negócios do finado, ajeitando também os do João do Custódio. Ficaria com a fazenda Buracão. Entraria um barracão em Goiânia, no setor Norte Ferroviário. O resto, em dinheiro, daria para comprar o carro e a boiada. A família do morto ficaria com dinheiro vivo. Negócio fechado. No meio da tristeza, João do Custódio ficou alegre. Poderia ser carreiro. Iria para a Capital de carro-de-bois e, de lá, iria todo ano à Romaria de Trindade. Um carro sagrado com a santa boiada de Negralfredo. Chegaria à capital como carreiro. Ficaria conhecido por lá como João Carreiro. E vinha-lhe o medo de morrer. Agora que a vida de carreiro iria recomeçar. Dava gosto. Outro mundo. Cheio por dentro, saindo de dentro para fora uma vontade de viver. Dois suspiros repuxados.

                                 O RITUAL DA DESPEDIDA

                                  Laudelino fez questão de cumprir o prometido para Negralfredo. Até ao cemitério, queria ir de carro-de-bois. Era a vontade de quem viveu mundo, a vida toda de carreiro. O carro, os bois. Sempre fazia ir. Não pudesse, ido, ao menos, seria.

                                  Ronaldo Torquato mandou preparar o carro, removendo a tolda, a esteira. Deixou só um arco nos dois fueiros da frente, era para suportar o arranjo de flores, ofertado pelo candidato a prefeito, Marion Rosa.

                                  Era de tardezinha, o sol estava por cima da casa do Joaquim Pão, umas quatro braçadas. De início, o corpo de Negralfredo foi levado da Câmara de Vereadores  para a Igreja Santo Antônio. O carro-de-bois de Laudelino estava em frente. Esperava. Estava a traseira junto da porta da igreja. Naquela situação de ser o carreiro para o grande carreiro Negralfredo, Laudelino se sentia, deveras, feliz. Era uma honra. Faria o gosto do finado. Não foi fácil. Foi preciso botar meia carga de cimento no assoalho do carro. Forrar. Com o corpo de Negralfredo, o peso seria maior e o carro iria cantar. O do Negralfredo com a boiada dele, iria acompanhando atrás, com o arco de flores variegadas e todo vazio.

                                   Depois das rezas todas, puxadas pela Maria do Rosário, nora de Laudelino, o corpo de Negralfredo foi colocado em cima dos sacos de cimento, muito bem forrados. Flores de um lado e do outro. Os bois retesaram e, mansamente, começaram a pôr a carruagem fúnebre em movimento. O eixo do carro girou, espremeu a cantadeira entre os cocões e a cantiga saiu meio gemendo no lamento da tristeza. O carro, já de João do Custódio, também foi saindo atrás. Estava cheiinho de gente, ainda bem que os fueiros davam conta de suportar, os que não eram de tambu, eram da trançada merindiba. Não cantava. João Rosário chegou perto de João do Custódio, pegou a vara na mão, virou o lado do pé, meio horizontal, bateu firme na roda entre as ocas, vibrou-se um gemido trêmulo. Tornou a bater firme e o carro-de-bois com o peso de tanta gente, fisgou um cantar bonito. Era um choro dolorido. O professor Abílio não soube explicar por que tinha caído de joelhos, com lágrimas desinibidas, ali, no alpendre de sua própria casa, de cuja frente saía o enterro. Dois carros, duas cantigas e, às vezes, uma ajudando a outra como se fosse dupla sertaneja, na diferença de uma terça.

                                  O carro-de-bois de Laudelino rabeou em frente ao cemitério. Desceram com o corpo de Negralfredo e levaram-no até  à cova.

                                   Galeno e Horacinho estavam postos  bem à beira do caixão. Eram dois violeiros, ambos de família de cantadores. Galeno, nome conhecido dos antigos, era o Galeno Evangelista. Aquele que cantou uma vez e todo mundo guardou:

                                    Sou Galeno Evagelista,

                                    Morador do corgo fundo.

                                    Quem não namora Galeno,

                                     Não tem gosto neste mundo.

                                     Horacinho vinha da família Horácio. Herdara o dom de cantar e fazer versos. Durante o velório tinha feito uns versos, escrevera-os numa folha de papel de caderno e no pedaço de outro papel. Estava ali com os versos escritos na  mão. Galeno e Horacinho botaram a música e andaram ensaiando lá longe do velório. Deu certo, assim que o caixão desceu e parou lá no fundo, a dupla tiniu as suas violas, repicaram a toada e arrastaram a moda:

                                  Negralfredo chega ao céu

                                  e é recebido com festa.

                                  Os anjinhos dão-lhe abraços,

                                  muitos beijinhos na testa.

                                  Quem saúda primeiro,

                                   é São José, o carpinteiro.

                                   E um carro-de-bois lhe dá,

                                   os bois do mesmo tamanho,

                                   escolhidos no rebanho

                                   que Nosso Senhor tem lá.

 

                                   Uma atmosfera castanha

                                   envolve ali Negralfredo,

                                   deixa-o trêmulo de alegre,

                                    saudando-o meio em segredo.

                                    É São Francisco de Assis!

                                    Com mística voz lhe diz:

                                    - É um presente que lhe faço

                                    destas sandálias tecidas 

                                    com plumas de anjo perdidas

                                     na amplidão fofa do espaço.

 

                                    Um como vulto azul-claro

                                     sente-se que está chegando

                                     com pétalas perfumosas,

                                     trazidas por vento brando.

                                     Toda a multidão celeste

                                     de azul-claro se reveste,

                                     sublime surpresa vem.

                                     Eis que Negralfredo espia,

                                     é a Santa Virgem Maria,

                                     Mãe de Deus, dele também.

 

                                     Num gesto, Nossa Senhora

                                     faz uma estrada carreira

                                     pelos espaços adentro,

                                     com pastos e aguada à beira.

                                     - Agora, diz ela, vá,

                                     duma estrela a outra lá,

                                     carrear no Paraíso,

                                     no carro-de-bois da glória,

                                     sem porteira divisória,

                                     sem cerca de arame liso.

 

                                     Muita mansidão se sente,

                                     Nossa Senhora sorri.

                                     É a chegada de Jesus,

                                     fala a Negralfredo ali:

                                     - Pelo que você tem feito,

                                     merece muito respeito

                                     do Paraíso e de mim.

                                     Quero condecorá-lo,

                                     primeiro, com Pedro falo

                                     para ler o boletim.

 

                                     São Pedro folheia o livro,

                                     carrancudo e muito sério,

                                     no final, fecha-o e comenta:

                                     - Bom, não falta o batistério.

                                     Foi carreiro dedicado

                                     que nunca deixou de lado

                                     toda a obrigação que tinha,

                                     amou Deus, Nossa Senhora

                                     até na última hora

                                     da maneira que convinha.

 

                                     São Gabriel, comandante

                                     das milícias, faz sinal,

                                     Negralfredo se apresenta

                                     ante à Corte Celestial,

                                     comendas de Grão-Carreiro

                                     recebe ali no terreiro

                                     perante Nossa Senhora

                                     e seu filho Jesus Cristo.

                                     São Gabriel, sem ser visto,

                                     tem emoção, quase chora.

 

                                     Negralfredo suspira fundo,

                                     por que é que não morreu antes?

                                     Prestem atenção agora,

                                     nestes exatos instantes,

                                     ele vira para cá,

                                     a sua bênção nos dá

                                     e acena-nos com sorriso.

                                     A viagem já começa, 

                                     sempre sem nenhuma pressa,

                                    ter pressa não é preciso.

 

                                     Lá vai o carro-de-bois

                                     na estrada da eternidade.

                                     Lá vai, sem pressa, cantando,

                                     cheio de felicidade.

                                     Vai, sem poeira nenhuma,

                                      vai deixando atrás a bruma

                                      das saudades de ouvidor.

                                      Negralfredo foi-se embora,

                                      só vai carrear agora

                                      para Deus, Nosso Senhor.

 

                                      Goiânia, 09 de abril de 2001.

                                       Manoel Vicente Filho

                                

                                 DIONÍSIO

                         Dionísio tinha vindo trabalhar para mim, quarta feira agora, a última  deste mês de fevereiro de 2001. Tive sorte, porque, apesar de ele precisar, fala que vem, trata, mas não vem. É trabalhador braçal. Seu serviço, nesta época de muitas chuvas, é importante para quem vive em casa de chão. O mato vem, a grama cresce, o capim invade. É o momento em que se depende da dispoição de trabalhar de  Dionísio. Se não estiver disposto, não comparece. A lei da ressaca é que o ampara. Dá-lhe o direito de se atrelarem o sábado e domingo com a segunda feira. Quer lá ele saber ou não se a família dele está precisando do ganho do serviço ou se o patrão está precisando do serviço executado, não se preocupa não, porque é obreiro importante,  especializado, ninguém quer tomar o seu lugar,`ninguém cobiça-lhe a tarefa. Agüentar  ali, o dia inteiro, uma enxada pouco amável, debaixo de qualquer condição do clima e por cima dum sempre irregular chão sujo, qualquer enxadeiro, por mais exercitado que seja, sofre.

                      Fui para frente ali da casa e pedi para o Dionísio ir limpando do outro lado da rua. Fiquei olhando. É bom ver os outros trabalhando. A maestria de um enxadeiro, o cavoucar de um tratorista, o desenhar de um artista, enfim, estando uma pessoa trabalhando e a gente à toa, é bom ficar vendo o que se faz e, às vezes, até se movimenta em gestos, ajudando a quem trabalha, como vi, um dia, a Maria do Rosário costurando e os meninos, em frente dela, estavam que a olhavam costurando. Estavam fixos, atentos, vendo a máquina de costurar trabalhar bonito, indo ali, dando uma volta mais ali, juntando as beiradas do pano e a linha se rebentou, foi quando a costureira, mais que depressa, foi colocando a linha na agulha, baixou a cabeça para perto da agulha da máquina e, enquanto enfiava a linha custosa, pôs a língua para fora, de lado aqui, e mordeu na língua. Mordendo na língua ficou até que a linha entrou na agulha e aí, vi que estava eu com a língua de fora, sendo mordida igual à da Maria do Rosário e os meninos todos, em frente dela, também estavam com a língua de fora, torcida e a  ponta prensada nos dentes

                         No caso do Dionísio, estava em frente dele, porque administrava o serviço, se bem que fosse da alçada da prefeitura, mas esperar por ela, talvez mais feia ficasse a frente ali do outro lado da rua. Fiquei reparando no Dionísio. Além de ser trabalhador braçal, era por demais judiado. Era de uma cor escura, da cor de  um esteio de aroeira, exposto ao relento. Dava-se para ver que os cabelos que estavam, a maior parte, debaixo do boné, tinham parentesco com o pixaim. Cabeça miúda. Aparência magra e enervada de serviço. Pudera, tinha lá os seus quarenta  e tantos  anos.

                        - Já foi mordido de cobra, alguma vez, Dionísio?

                        - Já.

                        - Que cobra foi, você soube?

                        - Ah, foi jararaca. Rabo-de-osso.

                        - Pequena, mas venenosa. Você tomou o anti-ofídico?

                        - Não. Me dero muito leite e botaro a cobra de cabeça pra baixo e amarraro um cipó na minha perna. Ah! Inhantes  de pendurá a cobra, o meu cunhado tirou o couro da barriga dela e pôs bem em cima  do lugá da mordida. O leite num parava no istamo, era bebê e gumitava. A furmigaiada subia que subia a perna até aqui, adonde o cipó foi amarrado, era a furmigaiada do veneno e a vista foi acabando.

                        -  Aí deu de chegar ao hospital?

                        - Não. Era na fazenda e um cavaleiro, mais precisamente, o meu cunhado, foi a uma outra fazenda adonde o dono lá era benzedor. Assim que ele chegou lá, o fazendeiro já estava esperando e falou que sabia pruquê tava indo lá. Não dava mais pra ir adonde eu tava, mas falou que de lá ia fazê a benzição. Se eu agüentasse, ia escapá.

                        -Hunh, foi o sinal que fiz para dizer-lhe que estava  que o ouvia.

                        - Retorci tanto, quando de lá ele me benzeu, que quase morri, retorcia igualzinho a uma cobra se mexendo desatinada e enfezada.

                        - Apodreceu no lugar da mordida?

                        - Não. Olhe aqui.

                        Dionísio foi tirando o tênis e falando:

                        - O tênis era igual a este. Qando ela me mordeu, foi no pé, neste dedo do meio aqui, cuidei  fosse uma espinhada.

                        Dionísio ficou pegando no dedo. Era o dedo médio do pé, dos cinco dedos do pé esquerdo dele, era o dedo do meio, ficou pegando nele e apertando, como se espreme uma pasta de dente, no caso dele, o aperto era como se estivesse fazendo uma pressão para a unha pular fora. Não doi, pode cortá  que não sinto nadinha. A fala foi comprida explicou, deu circunstâncias. Para quem trabalha por dia, era um pedaço do dia de menos, sem trabalhar, a contar a estória da ofensa do veneno:

                      - Passei quinze dias num quarto escuro, sem comê e sem bebê pra num zangá.

                      - Quinze dias, Dionísio? Sofreu muito. E o benzedor não foi lá não?

                       - Foi. Foi e me amarrou umas fita nos punho aqui e aqui no meu pescoço, não podia tirá, inquanto não  inteirasse os quinze dia. Deu ordem pra ninguém entrá no quarto. Ficava um lá fora, bem lá, para não deixá ninguém se aproximá da casa.

                       - Não, Dionísio, não dá para entender não.

                       - O benzedor explicou direitinho, eu num podia levá susto nenhum, senão piorava. Inteirado quinze dias, era para tirá as fita do punho e do pescoço. No quatorze dia, era o dia de todo cuidado. Era o dia que tinha que tê todo cuidado, passá o dia inteirinho e a noite toda sem levá susto, sem vê ninguém. Num podia ninguém entrá no quarto, num podia ouvi voz de ninguém.

                      - No fim deu certo?

                      - Deu. O benzedor foi lá,  justamente, no dia. Tinha inteirado os quinze dias. Tava muito fraco. Demorei arribá, mas fiquei bom, graças a Deus. Deus é grande. Sofri muito. O benzedor falou que nunca mais veneno de cobra nenhuma iria me ofendê. Criei íngua debaixo dos dois braços, aqui e aqui. Formou uma bolsa de sangue ruim, dissorado. A gente pegava, era assim mole, afofada. Foi preciso furá pra escorrê.

                        - Ofendeu demais o veneno da jararaca rabo-de-osso, observei surpreso.

                        - Ofendeu. Sinto até  hoje. A vista, tem hora, baraia, embaça e, na passagem da lua nova, sinto uma dor atravessada por aqui, embaixo da testa. Eu estudei o ginásio. Depois da mordida, esqueci tudo que aprendi.

                         O caso do Dionísio serviu, de certo modo, para mim. Faz já uns quatro dias que espero o Dionísio para trabalhar, mas acredito que o efeito do veneno da cobra possa tê-lo feito esquecer a obrigação.

                                     Goiânia, 4 de março de 2001.

                                                Manoel Vicente Filho

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