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Os olhos da cara

-Diga Miguel, o que acha das minhas chances?

-Remotas, porém possíveis.

-Como assim "remotas"? Será que ele não percebeu o meu esforço nos últimos

meses? Ele é uma pessoa tão observadora. Com certeza reparou no meu terno de linho que encomendei de Milão. E você acha que ele não gostou do vinho não, né?

-Jorge, do jeito que você fala até parece que é por causa da sua puxa-saquice que vai conseguir a promoção. Você tem potencial! Explora, porra! Não fica aí puxando o saco dele.

-Você não sabe nada de cordialidade!

-Cordialidade o caralho! E além do mais você sabe que esse cargo é muito disputado aqui. Só quem é peixão consegue!

-Você me desanima, Miguel.

-Vá pra casa, descanse, e venha tranqüilo para reunião de amanhã. Só quero o seu bem.

Enfadonho, Jorge ainda conseguiu organizar sua mesa, com tanto cansaço. Como ao relento, sentiu o silêncio naquele fim de tarde de ofício. Percebeu-se só. Às vezes, gostava. Um sopro de brisa que prenunciava chuva esvoaçava os papéis que amanhã lhe serviriam de argumento infalível para o poder inefável. Talvez fechasse a janela mas o calor impossibilitou tal atitude, então valeu-se de um objeto qualquer que fosse (ao menos) mais pesado do que um calhamaço de folhas negritadas: a caixa vazia dos óculos. Ali a repousou, sabido da pressão que faria. O silêncio persistia. Acabara levando-o em contato com as suas entranhas, ouvia os ronronares cerebrais que mastigavam a fadiga diária, e alguns dos lapsos de memória que se perderam durante o expediente os encontrava agora, já desnecessários. Pensou trabalhar em silêncio nos dias seguintes, quando ouviu ao longe o despedir-se do Miguel, com um longo e esperançoso "boa sorte amanhã", seguido de uma breve batida de porta, indicando o seu estado de solidão. Assim, notou que também havia chegado a sua hora. Tilintou um copo de água restante sobre a mesa, num misto de lástima e bonança. Caminhou até a mesma porta com passos fatigados de todo o dia de tédio, enquanto ajeitava sem gosto os óculos frontais. E se foi.

O que ele não se lembra do percurso até sua casa, é que não reparou na generosa bunda da morena ao seu lado, enquanto esperava o ônibus no ponto. Não se recorda dos filmes que estão em cartaz nas salas de cinema, hábito fatídico do trajeto monossílabo. E nem desconfia das horas que eram quando o senhor de alta idade o interrogou. Não fosse a velha cara conhecida do motorista do ônibus, nem imaginaria a que destino estaria sendo conduzido. Se pagou o cobrador em espécie ou em passe não lhe vem à memória. Pudesse estar dormindo durante todo o trajeto que mesmo assim não traria à luz os seus mais fantasiosos sonhos. Talvez fosse acometido pela mulher mais desejada do escritório ou horripilado pela sentença negativa do chefe sobre a promoção, que também não se lembraria.

Jorge lembrava-se de si, do cansaço, e da rotina dos óculos pressionando seu osso nasal superior, o qual ao fim do dia, frente ao espelho, revelava a pesada tortura dos aros e das lentes importadas da Itália: efêmeras tatuagens avermelhadas - como cobrança ao sentido pleno da visão, as marcas de sangue subcutâneo.

Entrou pelo prédio Almeida Prata arrastado pelo sonífero desejo do acalanto, e nem sequer largou o sorriso costumeiro do Seu Joaquim, que da guarita observou clinicamente a fadiga do Jorge, e diagnosticou numa única sentença - "hoje foi um dia daqueles". Esqueceu-se até de verificar "se o mesmo" encontrava-se parado no andar térreo, o que de cautela lhe era costumeira a constatação, e sem charme nem distinção jogou-se elevador adentro, seu fiel condutor ao destino sagrado do leito. Antes, porém, passaria pela bateria de perguntas de sua mãe a respeito do trabalho e da namorada que precisava arranjar como companheira.

Jorge jamais enxergou uma distância superior a um raio de egoísmo.

Tentou decifrar letras aparentemente desconexas, inscritas no capacho de entrada do apartamento, soavam numa espécie de boas-vindas, as quais vindas sabia nem sempre boas: "welcome". Entrou desarranjado e estreito nos passos, e logo foi perguntando que porra de palavra era aquela que ele haveria de pisar sempre que entrasse em casa. Com paciência, sua mãe explicou a origem do fato. - É que a Tia Ronalda ganhou vários desses tapetes e nos deu um de presente. Você não precisa ficar assim alterado. -Não mãe, a senhora não entendeu... O que eu quero saber é que porra de palavra é essa! - Ah! é...! Esqueci que você não fala nada em inglês. Welcome significa "bem vindo", meu filho, não se esquente...

Mas Jorge sabia, sim, noções básicas de inglês, e sabia também o que era welcome, porém não conseguia atinar palavras simplesmente porque não as via com clareza, não só as palavras mas tudo o que lhe atingisse a visão como forma de compreensão e plenitude. Apesar dos óculos postos à cara.

E foi quando sua mãe começou o interrogatório sobre a tal promoção, quando ela viria, qual seria aproximadamente o novo salário, quem seria seu novo chefe, e se o horário de trabalho mudaria de novo. Para ambos a promoção significava nova vida, em nova rotina, e com um novo status. Enquanto ela permanecia no afã imaginativo das mudanças, produzindo um monólogo dos mais apreciáveis ao teatro moderno, Jorge apegou-se ao sono com veemência, soltou trovejadas de sons guturais, e uma lenta e densa corrente de água por lábios abaixo determinou o parecer da mãe, prognosticando: - "amanhã será um dia daqueles". Ela preferiu deixá-lo ali no sofá pois era o leito mais confortável da casa, a espuma novinha. Tirou seus sapatos, as meias, e desabotoou a camisa do dia todo. Quando rascunhou remover os óculos, num sonâmbulo suspiro de desejo, ele estremeceu parcialmente os músculos da face impedindo-a, inconscientemente, de executar a ação. Dormiu de óculos.

Jorge se encantou com o sonho que vinha tendo, e não por menos estremecera naquele exato momento. Por ironia ou por desleixo astral, seu sonho revelava-o desnudo de sua maior armadura: as lentes, que tudo vêem. E apesar da ausência delas, o mundo era visível. Aliás, transvisível. Nele, Jorge via um mundo que sempre tentou encontrar por trás das lentes, só que sempre lhe era negado justamente por causa das lentes. Em sonho, abdicou delas quando se estremeceu num colapso de alegria. Espantado pela doce harmonia da vida, pelo sabor inconcluso do amor, e o calor abrasivo dos corpos, enveredou pelas enviesadas vias da noite inconsciente a contemplar um emaranhado de emoções em vida não realizáveis, e se pôs continuamente a sonhar, a gozar-se de amor, de plenitude e de tudo mais, quando por volta do sétimo sono abateu-se em trimiliques que jogaram os óculos de armação italiana sobre a mesa de vidro da sala... Irreparável.

Não se sabendo em sonho ou em vida, ouviu, ao fundo, o bater da porta do quarto de sua mãe, o que o fez a pressupô-la dormindo. Enquanto os óculos permaneciam lá, sobre a mesa, descaracterizado (como num filme de Eisenstein). E ela, quase a dormir, sem consciência da consequência do fato. E ele, em sopro de vida-morte, retido ao novo mundo do tato.

Por incrível, o sonho transformara-se em realidade, quando ao acordar, de fato percebeu os óculos de vidro estatelados na mesa de vidro da sala de cristal da casa da mãe de Jorge.

Rapidamente elaborou em sua mente todo o trajeto até a ótica mais próxima para o conserto ocular, descontou o tempo que haveria de banhar-se, os instantes de deglutição de um pão com manteiga na chapa, na padaria ao lado, pois todos sabemos do mal gosto que resta na boca do café da manhã não tomado, e decerto, desagradável seria naquele exato dia da promoção comparecer à reunião com o hálito esquecido da manhã apressada. Subtraiu, também, do tempo hábil do trajeto, os incessantes conselhos maternos para a boa apresentação na reunião: ajeite a gola da camisa, dê uma encerada no sapato, penteie com exatidão o cabelo, e seja complacente com as opiniões alheias. Tudo isso renegado, porém de praxe e de bom tom é que se ouçe tais conselhos, já que de mãe os são!

Após esses ininterruptos flashes cerebrais que duram por volta de uma piscada a outra, Jorge caiu em si, e indisplicente, arrenegou todas as possibilidades matemáticas de safar-se a tempo nessa manhã, assim confortou-se de que não haveria flexão temporal suficiente para o conserto dos óculos arrebentados sobre a mesa de vidro. Momentaneamente viu-se frente às encruzilhadas impostas pelo acaso (ou pela prudência divina), as quais com aguda oposição apontavam, respectivamente, para o crédito e o status do novo cargo empresarial, sendo que para tal êxito seria indispensável a pontualidade na reunião marcada a logo cedo, o que conflitava diretamente com a subsequente, que apontava para a urgente confecção de um novo óculos que o fizesse atinar o rumo do escritório e, consequentemente, a possibilidade da promoção, mas com isso o atraso poderia fazê-lo derrotado nessa nova batalha de ascensão.

Restou-lhe a decisão. E foi justamente quando lhe soprou, de súbito, a memória da noite que mal se fora. Restara para ele em forma de vida, e não mais de sonho. Sobrevivera até aquele momento sob as difíceis penas da rotina massacrante e sobretudo da servidão sensorial, que se revelou liberta somente em sonho que não era mais sonho, agora. Decidiu então respeitar a voz dos quereres retidos pelas lentes da armação italiana, que de tão sutis na aparência mas tão mórbidas no uso, permaneceram ali sobre a mesa, sem o aval do restauro. Ali... de resto, esquecidas. E se foi.

Fez o caminho inverso. Atinou as letras altamente familiares do capacho de entrada da casa, na espera de agora receber ao invés das boas-vindas, as boas saídas - as recebeu. Esqueceu-se de verificar se realmente o elevador se encontrava no andar desejado, e entrou com plena veemência na ânsia de um dia por vir. Passou pela portaria onde encontrou o Seu Joaquim, o mesmo de ontem, à espera de seu substituto para poder ir-se. Saudou-o com um bom humor atípico, segundo olhos alheios. E prosseguiu rumo ao dia, enquanto cantarolava "andar com fé eu vou, que a fé não costuma falhar". Por costume levou as mãos ao rosto num gesto costumeiro, familiar, redundante, para ajeitar o que lhe sempre desajeitava, e acabou por encontrar o que por toda a vida procurava.

Sem mais, já estava possuído do que em vida almejava - a plenitude, o tudo. E passou a pensar no porquê do rumo que tomara, a tão insatisfatória vida escriturária, em meio a confusões de ordem ética, a desprezo pelo alheio, a trapaças, e outras inóspitas situações que o ser humano tem a infortúnia capacidade de adaptação. Não conseguiu sentir rancor, nem se gabou da visão que possuía no momento, o que não quer dizer que Jorge tornara-se indiferente ao seu emprego atual. Não. Somente não o era mais atual.

O trajeto até o escritório foi repleto de memórias e recordações. Reencontrou possibilidades esquecidas pela vida escrava, fazendo-o liberto às novas. Encaminhou os últimos passos ao escritório sabido de suas condições terminais. Adentrou o elevador, sem verificá-lo, e acalantou o dedo no botão de número 20, esperou o destino previsto com a tranquilidade daqueles que se aprontam com o tempo de sobra.

Quando abriu a porta escriturária foi aclamado por todos que, antecipada e reverencialmente, o saudavam com uma estranha inquietude que não se passava por sincera, e já demostravam um carinho até então inexistente, visto somente em cargos superiores, ou se preferir, em altos escalões. Não se mostrou preocupado com a situação, e calmamente, em direção ao diretor, desferiu três sinuosas palavras que provocaram um silêncio inédito na repartição: "......................................."- seco, sincero e seguro.

Quis caminhar até sua mesa de ontem para se relembrar de todo o malabarismo burocrático em forma de calhamaços e mais calhamaços de folhas que representavam a possibilidade de ascenção empresarial, que haveria de proferir num outro tempo nenhum. Elas permaneciam ali, repostas à mesa, como sempre e sempre: apesar de ainda esvoaçantes, um pensamento que não tinha mais vôo, arraigado por uma única e vazia caixa de óculos.

Com a malemolência dos ébrios, com a lógica coerente dos insanos, e com a irreverência de um certo Jorge, retirou com um sorriso largo da nova cara a caixa de óculos de sobre a mesa e deu sentimento às folhas enclausuradas de papel, que desciam soltas do vigésimo andar de um escritório da Avenida Brasil, enquanto ouvia ao fundo ecos de uma rotina distante.

Maurício Navarro Moreira
24 anos, Estudante de Letras da USP. Atualmente, trabalha como colaborador do site de música NãoPerca (www.naoperca.com.br).
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