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Cemitério da Consolação

Maria Marieta. Por alguns, Méri. Para outros, apenas míope. Nascida sob a égide taurina e de ascendência aquariana. Cútis morena. Cabelos, idem. Olhos das cores de um passado saudosista. Compreensiva nos relacionamentos, para não se dizer submissa. Não portadora de veículo próprio: seu destino.

Seu destino estava parcialmente traçado, pretendia visitar Clézio naquele dia. Após horas de consultas a todos os oráculos do zodíaco decidira abruptamente visitar Clézio.

Não queria mais guardar somente consigo a dívida do passado, que aliás, para ela, era dele também. E que se não naquele dia, nunca mais. Seria um ponto final na estória já acabada ou um último suspiro para a recordação eterna.

Poderia, (quem sabe?), ouvir dos amigos que aquela não era a melhor maneira de resolver a situação, que Clézio era coisa do passado, e que ela não precisava desenterrar caveira de túmulo, afinal bela moça era. Mas amigos são sempre sábios quando não os queremos. Necessitava ali de um coração partido como o seu para lhe entender. Não partido, mas partindo-se, que é quando se sente mais a própria dor do sofrente, isenta da futura reflexão.

Por si, Méri, inflexível, decidiu encontrar Clézio.

- Clézio, tenho a lhe falar. Te encontro às 18:00 no ponto da Consolação. Até lá, um beijo.

E Méri se enfeitou de modo a subentender-se: batom leve para lembrar as sutilezas da carne, e um vestido decotado que sugerisse lembranças. No dedo o anel do compromisso faltara-lhe, como sinal de um novo desafio. Se não bastasse a insinuação, simulou pequenas marcas de amor em seu pescoço: nódoas roxeadas - ciúme calculado. Preparada, não esqueceu-se da pitada perfumada na pele escurecida. O aroma da morte.

E partiu. A porta da saída de casa ainda emperrou, como num suplício de desistência, mas ela não percebeu tal conselho. Os amigos são sempre sábios quando não os queremos sábios. E partiu.

Definiu seu destino ao optar ir de ônibus até a Consolação. Descartou a idéia da lotação pois a aguda aproximação das pessoas nesse tipo de transporte a incomodava um pouco, já que era muito calorenta e o dia era dos mais quentes. Como o encontro. Táxi, somente em caso de atraso, como não era a ocasião... Tempo não lhe faltara, o relógio acompanhava seu pulso esquerdo, com uma boa margem de adiantamento. Méri era deveras prudente. Britânica, quase ansiosa. Quanto ao metrô, desistiu, apesar de sua eficiência, por que coincidia com o horário do jogo do "Timão". Ao mesmo tempo em que restou, escolheu o ônibus como o seu transporte para visitar Clézio.

Assim, encaminhou-se ao ponto de ônibus, segura de ter tomado a decisão certa quanto aos meios de transportes. Chegando lá aguardou, aguardou! O ônibus que ia para a Consolação era dos mais demorados, além disso, o pior era não ter um horário definido de passagem, para Méri poder se programar, já que tão pontual. Portanto, ficara sujeita às imprevisibilidades do acaso.

Por sorte, o ônibus não demorou mais do que o incansável, e veio vazio, com alguns seres que lhe chamaram a atenção, mas que não botou reparo afinado, por timidez. Porém de relance sentiu, ali, em pele, um sopro da infância e da juventude naqueles retratos sentados, como num álbum de família, que quando ao vê-lo dói a dor da revisitação. Embaraçou-se para pagar a passagem ao cobrador, deixou cair a bolsa e o guarda-chuva previdente, esparramando pertences pelo corredor estreito do veículo, onde juntamente caiu a máscara da inocência. Notou ser o centro das atrações naquele momento, sentia os olhares das pessoas em sua face, como se agradecessem o evento que o distraíram por instantes, que os fizeram lapsos de sorrisos na fronte.

Quando recomposta e já sentada, porém ainda ofegante, sentiu uma pesada mão em seu ombro a lhe cobrar atenção. Imediatamente pensou em Clézio - suas mãos suavam. Virou e atendeu: um generoso moço que lhe resgatara a foto dele, que havia caído no momento do embaraço. Recebeu-a sob gratidões ao moço, que admirou o sorriso dele na foto. Estranhou um homem reconhecer um dote em outro homem nesse reino animal das competições. Parecia um daqueles típicos comentários de mãe quando não vê no namorado da filha a beleza física, apreciável, e acaba procurando algum charmezinho no rapaz para alegrar a filha, sempre com um elogio engraçadinho e de boa índole. Entretanto, agradeceu e voltou-se à posição original: ereta, desenrubescendo-se, e à espera do destino previsto, enquanto ajeitava os óculos no rosto.

Na espera oscilava o olhar entre a janela do carro e as pessoas que lembravam de alguma forma seus outros tempos. Em ambos buscava resposta para a atitude já tomada. Na janela via o tempo correr com tamanha habilidade e constância, fazendo-a pensar em se relacionar com novas pessoas... enfim, saltar de novos abismos. Via o futuro resguardado pelo destino. Já nos bancos do ônibus via pessoas sentadas que faziam-na refletir nos tempos de outrora, nas conquistas, glórias, e também, principalmente, nos desencontros da vida.

É bem certo que Méri começou a desconfiar da atmosfera reflexiva que lhe acometia em pleno ônibus urbano, mas encarou como uma coisa despropositada, apenas momentos em que se põe a vida em perspectiva, e se vê o que nela se extraiu e se depositou. Assim confortou-se. E prosseguiu.

Seguia firme e segura do destino daquele ônibus: reencontrar Clézio na Consolação.

De segurança a desespero seu estado de espírito transformou-se ao acompanhar um veículo de grande porte perder o controle e vir de encontro ao seu ônibus, que incessantemente a levara a Clézio. Méri vira apenas um enorme vulto aproximar-se descontrolado, e sabia, então, agora, do seu exato destino.

Tranquila e serena retirou, a tempo, o frasco de perfume e salpicou-se de borrifadas que um dia a fez lembrar Clézio: o aroma da morte. E acomodou-se à espera do inevitável. Lembrou ainda do tempo da infância, da juventude, e sublimou-se em pequenos átomos de desejo contido por um certo Clézio.

Já nos destroços, ouvia-se, dentre outros, os comentários à respeito do belo sorriso de Clézio, que agora se encontrava em meio a sangue e desordem e tumulto. O forte aroma da morte afastava até os mais curiosos torcedores do "Timão" que por ali passavam, os quais curiosamente comentavam o destino do ônibus, onde avistada no chão, já amassada, a placa destinatária: Cemitério da Consolação.

Em meio a tanta desordem.

Maurício Navarro Moreira
24 anos, Estudante de Letras da USP. Atualmente, trabalha como colaborador do site de música NãoPerca (www.naoperca.com.br).
Endereço: R. dos Franceses, 391 ap 42/Bela Vista/SP CEP:01329-010
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