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A BARBEIRA DE SEVILHA

Era apenas mais um dia qualquer. Como fazia sempre, acordou cedo para seus exercícios matinais. Foi ao parque, correu por quarenta minutos e voltou para casa. Era preciso trabalhar. Tomou um café, acendeu um cigarro e, de posse do jornal, foi ao banheiro. As primeiras notícias anunciavam para um novo dia. Já era tempo de ir, mas o patrão poderia esperar um pouco mais, merecia aquela paz. Foi invadido por uma leveza única, misto do alívio causado pelo exercício físico, pelo prazer de gazetear e pela eliminação dos excrementos.

Foi ao banho, perfumou-se e escovou os dentes. Vestiu-se e partiu. Precisava aparar os cabelos, este pensamento o atormentava há dias. Entre uma de suas baldeações, entre os dois ônibus e um metrô, incluindo aí uma mudança de ramal, havia um barbeiro. Era isso mesmo. Havia um barbeiro de apenas $ 5,00. Não tinha erro. $ 5,00 estava perfeito. Corte rápido e barato, em pleno centro nervoso da cidade. No meio de todo o trânsito, poluição e miséria. Ao lado dos lares de meninos de ruas, catadores de papel e traficantes de crack.

A barbearia ficava logo abaixo de uma das mais controversas obras da cidade. Mais que um elefante branco. Uma verdadeira minhoca branca. Um verdadeiro minhocão. Um enorme viaduto que cruzava uma de suas principais vias de circulação. Tal arquitetura cinzenta, suja, pesada, era o paradeiro dos excluídos mais excluídos do pedaço. Recebia também um pesado tráfego de ônibus, motocicletas, táxis, caminhões, peruas, carros de passeio e outros automotores, durante dia e noite, quase que incessantemente.

Entre todo esse caos urbano, entre uma barraca de ambulante e o ponto de ônibus, estava lá a casa de poda. O corte era simples, não requeria muito saber. Máquina três dos lados e atrás. Máquina cinco no topo. Além disso era decente. Dentro do mundo das barbearias, em plena crise sistêmica da organização do país, as promoções para populares haviam destruído o ofício. O velho artesão do cabelo estava praticamente morto e enterrado.

Resistiam ainda em alguns bairros uns poucos senhores quase cegos. De mãos trêmulas, tesouradas e navalhadas eram executadas nem sempre com a mesma precisão de outrora. A ardência e vermelhidão deixadas no pescoço, logo após o uso da loção barata mas nem por isso menos charmosa, denunciavam a chegada da senilidade.

Estes poucos imigrantes, ou filhos de, que insistiam em prosseguir em sua corporação de ofício - quase que liga medieval – estavam desaparecidos no centro. Grandes lojas de cortes baratos, sustentada por mão-de-obra pouco qualificada e mal remunerada, ofereciam descontos capazes de quebrar qualquer concorrência.

A barbearia em que entrou não era das piores. Por $ 5,00 até que o serviço era honesto. Já havia cortado lá e ninguém comentara nenhum grande desastre em sua cabeleira. Também o corte era muito simples, uma máquina passada bem rente, um corte baixo.

Dirigiu-se ao senhor que havia lhe cortado. O homem parecia saber o que fazia. Em sua cadeira estava um cliente, teria que esperar. O tempo era precioso, já havia demorado a sair de casa, não poderia demorar muito por lá. Foi quando soltou a infeliz frase – Tem mais alguém que corte, ou tenho que esperar ?

Prontamente, a manicura sentada no sofá ao lado respondeu – Ela também corta.

Ela. Virou-se para observar "Ela". Em sua direção vinha um mulher de porte grande, larga se é que vocês me entendem. Não chegava a ser obesa, mas com certeza era bem pesada. Sua estrutura óssea avantajada comportava bem todo aquele peso, dando-lhe uma aparência mais robusta do que obesa, propriamente dita.

Seus cabelos eram de um loiro desbotado, um tingido barato em um cabelo já envelhecido. Quando ergueu os olhos para o seu rosto, foi o espanto maior. Não poderia acreditar, tudo menos aquilo. Era um sonho surrealista, não poderia estar acontecendo. "Ela", era vesga! Uma barbearia de $ 5,00, no centro decadente da cidade, com uma barbeira vesga! O corte não ficaria bom, os deuses deveriam rir dele naquele momento.

Titubeou, foram segundos que pareceram anos. Uma vontade interna o impelia para fora do estabelecimento, não era tão difícil. Bastava uma desculpa rápida, uma bobagem qualquer – Ah! Esqueci a carteira – ou ainda – Puxa, subiu o preço, achei que fosse $ 3,00, só trouxe $ 3,00.

Mas um certo constrangimento o invadia. Não ia dar certo, "Ela" perceberia, é claro! Nenhuma desculpa colaria, entrara tão convicto a cortar. "Ela" logo desconfiaria – Fui rejeitada. Um enorme sentimento de culpa abateu-se sobre ele. Não poderia fazer isto com "Ela", naquele momento não conseguiria dizer – Não. Estava perdido.

Resignado, sentou-se. Alea jacta est – Parafraseou César. Os dados estavam lançados, atravessara seu Rubicão. Já na cadeira, o corte começou. Primeiro foram os cabelos das têmporas, depois da nuca. Pouco a pouco ia se livrando dos pêlos. Careca não ficaria, a fartura estava presente em todos os poros de sua epiderme. Em qualquer lugar que fosse, da cabeça aos pés, pêlos é o que nunca lhe faltariam.

Por sorte, ou desespero, havia tirado os óculos. O corte assim o exigia. As hastes da armação atrapalhariam o desenvolvimento podador da máquina. Agora estava cego. Não que fosse efetivamente míope, uma toupeira, mas sem as lentes não enxergaria a performance da vesga. Era difícil acreditar que um corte de $ 5,00, na região do centro, e com uma barbeira vesga pudesse dar certo.

Nem a revista Manchete o divertiria naquele momento. Estava atrasado, amargurado, ansioso por ver logo o resultado. Tudo o que pensava era em pagar e ir embora dali. Quanto menos tempo ficasse, melhor. Jogo rápido. Cortar e sair. Além do que, quanto menos a vesga tocasse em sua cabeleira, melhor. Teria menos chance de errar.

Assim que pôde, vestiu os óculos. Sacudiu-se dos pêlos caídos na roupa, limpou-se com a escovinha. De pé, agora já bem próximo ao espelho, observou o estrago. Aparentemente estava tudo em ordem, nenhuma grande anomalia à vista. Enfiou a mão no bolso, sacou uma nota de $ 5,00. Havia outra de $ 1,00 dobrada junto à cédula maior. Sabia disso, era o troco que recebera ainda a pouco ao comprar uma besteira qualquer no camelô em frente.

Decidido, esticou a mão. Ofereceu à barbeira estrábica ambas as notas, dobradas, sem que pudesse ser vista a menor. Era uma oferenda simbólica, um apoio, uma compaixão maternal, um desejo de ajudá-la. Realmente estava sensibilizado com a situação da mulher. Ser cabeleireira, com seu defeito físico, numa bodega daquelas, tinha que ter muita coragem. Merecia aquela recompensa.

Mas enquanto saía, notou de rabo de olho um pequeno detalhe. A rata percebera rapidamente, ao passar o dedo sobre a nota de cima, a presença da nota de baixo. Digo rata, porque fora esta mesma a atitude. A mulher sorrateiramente fingira não ter visto o esquecido e, mais que depressa, embolsara as duas notas. Tudo isso num gesto ágil, de impressionar qualquer aprendiz de prestidigitador.

Agradeceu o corte e despediram-se. Ela ficaria com o dinheiro a mais, mas não precisava acontecer daquela forma. Estava feito, partiu. Um estranho sentimento o invadiu. Vivera, muito intensamente e em curto espaço de tempo, a leveza, o alívio, a dúvida, o constrangimento, a culpa, a resignação, o desespero, a amargura, a ansiedade, a compaixão e agora era tomado por um profundo ódio.

Acabara de presenciar uma típica situação em que se é passado para trás, havia sido enganado. Não era pelo $ 1,00, este já estava dado. Era a má intenção da mulher. Não que a recriminasse por seu ato, afinal "Ela" deveria ganhar um salário de merda. A necessidade traria seus instintos de sobrevivência. O grande problema residia no fato de que ela havia estragado tudo.

Ao não saber aceitar sua doação, ao ter demonstrado saber da existência da segunda nota, ao deliberadamente se apropriar do dinheiro alheio, atirara ao chão toda a compaixão que tivera há pouco. Sua maior frustração era exatamente sentir ter desperdiçado uma boa ação, uma caridade. Era por puro egoísmo. A débil havia estragado o seu ato benevolente. A frustração foi um dos últimos choques que levou naquela manhã. A perplexidade e o torpor o invadiram logo em seguida.

Marcelo Aith
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