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Dualidade do mundo

Ela era uma mulher que o senso comum definiria como sendo um ser de baixa moral, Luísa tinha trinta e cinco anos de idade, há um tempo toda sua família morrera num incêndio na própria casa , a data do acontecido não é importante, entretanto, era dezembro, contudo, o fato é que restou dessa tragédia uma pequena menina que, já crescida e madura, vivia à custa do tesão alheio, pelo menos era isso que se dizia; não é que a qualidade de prostituta, e esta palavra dói, seja em si algo que denigra a raça humana e faça de quem é um ente de menor qualificação moral, que mal pode haver em gostar do gozo? Além do mais, há mulheres, assíduas às igrejas e detentoras de um virtuosismo invejável, que desempenharem esse gozo tão bem quanto as mulheres de esquina, sendo que estas gozam para fora e se deixam apalpar no ato profano a que estão dando vazão ao passo que aquelas, além de não se deixarem apalpar por segundas peles, gozam para dentro. Mas todas gozam.

Quando a menina Luísa tinha 15 anos de idade e seus país morreram no incêndio da casa, não havia ninguém que a ajudasse ou lha desse um abrigo, a escuridão faz seu contrário , e a única pessoa que a auxiliou e a acolheu foi Ducarmo, uma cafetina já velha e grã-mestra na arte dos lençóis, não se imagine que nesse acolhimento se esconda segundas intenções a não ser o mais fraterno dos feitos, quando Luísa foi convidada à morar no prostíbulo já se via fraca e necessitada, não havia outra opção que não fosse aceitar o convite.

Nos primeiros dias de sua permanência no cabaré, evitou-se que os fregueses atentassem para a recém-chegada e o ofício da pequena restringia-se aos serviços de pouca monta; arrumar os lençóis, varrer o chão, lavar a louça e os outros afazeres domésticos. Mas as virtudes e dotes da menina eram já exultação de quitanda e homens que para lá iam percebiam-no, esses homens eram políticos, juristas, intelectuais e outros grã-finos, mas iam também os desprestigiados, sendo que, enquanto os intelectuais de fachada buscavam lá uma forma de descobrir a ontologia do instinto humano, os verdadeiros homens tinham um interesse mais objetivo e menos eufemístico : sentir o cheiro de puta.

De qualquer modo, o tempo é certamente o artífice das personalidades e a pedra-filosofal das almas, e era esse mesmo ente que iria dar a Luísa o gênio das mulheres austeras e de beleza inaudível ; qualidade de que só algumas privilegiadas se sabem detentoras quanto mais não sabem a moralidade das "bocas de Adelaide".

Sem querer fazer filosofia de boteco, acho sinceramente que o prostíbulo é um inferno e um céu, o prostíbulo é o único lugar do mundo onde estes dois elementos se nivelam e tornam-se um só, lá o paraíso se revela com a mesma facilidade com que o demônio alicia os homens para habitar a terra do fogo, entretanto, para alguns, esse lugar não passa de um antro de vadias e de mulheres vãs, desconsiderando-se esta opinião de velha invejosa, o prostíbulo é a representação mais original da dualidade do mundo, senão, do universo.

Desde o tempo em que foi acolhida pela velha Ducarmo, já tinham se passado dez anos, entretanto Luísa nunca se deitou com nenhum homem, permanecia virgem e doméstica, embora fosse uma mulher como qualquer outra daquele recinto e sentisse também as coceirinhas nos lugares íntimos tão próprio das mulheres na excitação dos anos, não se sentia obrigada a se submeter às vontades e galantarias dos fregueses e nenhuma das meretrizes pressionava-a a tal atitude, era uma situação cômoda e um tanto inacreditável ser virgem num lugar onde, o mais das vezes, se vai para perder a virgindade. Talvez o fato dessa menina permanecer intocada decorra do extremoso afeto de Ducarmo por Luísa do que da vontade da própria pequena , esse sentimento da velha prostituta tornava-se tanto mais forte quanto mais Luísa crescia e tornava-se mulher, a grande esperança que se tinha era a de que algum dia esta menina, que passara boa parte de sua vida conhecendo o mundo dos anjos e demônios, tivesse uma vida repleta de luxo e pompa e que não se submetesse, em nenhum tempo, aos ditames de velhotas broxas.

Mas isso não se deu, logo cedo Ducarmo falecera e Luísa acabou tornou-se administradora do prostíbulo por designação prévia da própria Ducarmo, porém, a inveja de algumas meninas e o despeito de outras acabaram tornando esta administração algo dificultoso e o cabaré acabou falindo. Logo tiveram que arrumar outro trabalho, algumas procuraram os fregueses mais assíduos aos quartos da meia-noite na esperança de conseguirem algum serviço, mas acabaram sendo ignoradas e às vezes até desmoralizadas quando iam falar a esses homens, o grande erro dessas mulheres consistia em pedi-lhes emprego em frente dos outros, como se elas fossem pessoas a que se pudesse falar com a mesma distinção que se concede às damas imaculadas que tecem a vida pela linha dos terços. Embora ninguém as conhecesse, exceto seus próprios fregueses, os homens têm na aparência pública a ponto de equilíbrio e o sustentáculo da, assim chamada, moral.

A verdade é que quem vive no lixo acaba se costumando com seu cheiro de tal modo que, por mais sujo e desprezado que se torne, sempre se pode relevar a podridão; e assim fizeram as damas da noite, algumas acabaram voltando a outros prostíbulos e se adaptando a eles, outras, entretanto, por terem o material de trabalho já desgastado, acabaram morrendo ao frio da noite que as nutria sobre uma esquina qualquer ; lugar onde se cruza o começo e o fim do nada social.

Mas restava ainda Luísa e sua carne intocada, após a saída de todas as putas, e não tenho medo de falar nomes assim, Luísa permaneceu por longo tempo no antigo cabaré sem sair para lugar algum, o comentário geral era o de que ela recebia tantos homens nas noites anteriores e ficava tão exausta que não conseguia aproveitar o dia e a noite ao mesmo tempo, assim, a reclusão era um preparo para mais uma noite de visitas; é claro que isso não era menos que o costume preferido das praças e dos desocupados, na verdade, o que se verificava era o contrário, aquela mulher, que para a cidade era vadia até o íntimo de seu ser, possui uma tal ou qual castidade digna de santa, viveu por longo período na solidão e sem o mínimo contato social que não fosse a ida a mercearia mais próxima para comprar necessidades, não a chamo de louca, talvez fosse a mais sã de toda a cidade, apenas os hábitos não tinham a mesma aparência, mas o significado sobrepujava os atos já consagrados pela senso comum, ela era uma mulher digna, além do mais, para ela a fama de puta acabava tornando essa dignidade maior e menos abstrata.

Certo dia, quando o tempo já não era tão condescendente com os seus reflexos, Luísa resolveu tornar-se freira, nem se imagina o furor que isso causou nas pudicas, jamais se admitiria uma puta tornar-se freira, todas que já ali estavam tinham dedicado a vida a Deus e amado-o de maneira austera, como poderiam nivelar-se a uma vadia daquele jaez? Era certamente um alvitre às beatas tão puras e santas se não fosse a explicação que o padre as deu apoiando-se na argumentação bíblica que perdoa todos os pecados daqueles que se arrependem deles; as pudicas nada poderiam fazer contra a bíblia, que argumento ou que poderia ser maior que os que dissera o filho de Deus? Tiveram mesmo que se consolar e aceitar de bom grado a presença de Luísa. Contudo, um dia após se tornar definitivamente freira , ela acabou falecendo no antigo prostíbulo. No túmulo grafou-se em letras escarlates: " Aqui jaz a prostituta que virou freira"

Mais tarde se descobriu, entretanto, que no século anterior àquele havia um prostíbulo no lugar em que atualmente havia uma igreja.

14 de Dezembro de 1999

Felipe Lira de Souza Pessoa
18 anos, estudante de João Pessoa - PB.
Correio: [email protected]

 

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