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PRESENTE DE GREGO

Este barulho já está começando a incomodar. Mas agora é tarde , essa decisão foi tomada em comum acordo, eu também aceitei, não há mais saída. Só que duas horas de marteladas incessantes são de encaretar qualquer maluco.

Pra falar a verdade não tenho tanta certeza se essa mudança vai resolver alguma coisa. Não existem provas concretas, nenhuma evidência. Só o que existe é aquela coisa horrenda guardada a sete chaves na gaveta dela. Me deixaram ver uma vez, e mesmo assim recebi uma bofetada bem cara porque caí na gargalhada ao me deparar com o tal objeto. Mas o que eu ia fazer? Só rindo mesmo.

Agora já se passaram duas horas e vinte minutos, e o barulho não para. Precisa de tudo isso só pra trocar uma janela? O banheiro tá uma zona, todo imundo, com vidro espalhado pelo chão, tinta respingada nos azulejos. O pedreiro ficou puto quando o chamei de veado, mas ele não precisava jogar o meu aparelho de barbear novinho naquele chão imundo.

Eu gostava muito mais daquela janelinha redonda que girava no seu eixo horizontal e dava pra ver um monte de coisas dali na hora do banho. Esse basculante insensível que colocaram não me agradou nem um pouco. E ainda tem a tal da cortina, muito brega por sinal. Onde já se viu uma cortina na janela do banheiro?

Tudo começou quando, a uns dias atrás, minha mulher chegou em casa encontrou um embrulho todo enfeitado no corredor, com uma única indicação: 602. É o número do nosso apartamento. Ela pegou o tal embrulho, todo enrolado com fitas vermelha e branca e uma estampa breguíssima, cheia de cupidos e corações coloridos. Ficou olhando meia hora praquela coisa mas não abriu. Podia ter pensado que era brincadeira minha, ou presente de alguma amante, mas ela me conhece muito bem pra saber que eu nunca tive uma amante e que jamais lhe mandaria uma surpresa num dia normal, ainda por cima num embrulho tão brega. Ela sabia que aquela coisa era, definitivamente, um presente de algum admirador anônimo.

- Mas o que tem aqui? Quem deixou isso na porta? Não vou abrir. Vou esperar ele chegar.

Foi tomar banho. Girou a janelinha (que ainda era a redondinha), ligou o chuveiro e relaxou. " Bem que se quis, depois de tudo ainda ser feliz... mas já não há caminhos pra voltar..."

Ela sempre cantava essa música no chuveiro. Eu achava lindo, mesmo quando desafinava. Mas agora não canta mais. Tudo por causa daquela coisa.

Quando eu cheguei em casa, me deparei com aquele pacote erótico em cima da mesa. – O que significa isso? (Sempre tive vontade de dizer esta frase clássica, mas nunca tive oportunidade. Achei o máximo.)

- Deixaram isso aí na porta. Acho que é pra mim...

- Como pra você?

- Tinha o número do nosso apartamento num cartãozinho.

- Pode ser uma bomba, é melhor não abrir.

- Que bomba nada! Quem é que ia me mandar uma bomba?

- Nunca se sabe...

- Isso aqui não é uma bomba, é muito leve. E se fosse já teria explodido, porque eu já sacudi bastante este pacote.

- Mas então o que é? Presente de um admirador secreto?

- Pode ser, como não? Eu ainda dou um caldo, tá vendo?

- Só se for caldo de mocotó, daqueles com bastante gordura.

- Não tem graça. E aí? Abro ou não abro?

- Pode abrir, mas deixa eu entrar no banho primeiro.

- Você não que ver o que é?

- Depois.

Meu descaso a fez ficar enfurecida. Ela gritava e berrava como louca. Fui pro banho. Tranqüilo e calmo. Não abri janelinha nenhuma, nem cantei nenhuma música. Detesto hábitos medíocres.

Na sala, nenhum barulho. É bom mesmo que ela se acalme. Detesto mulher histérica. Será que ela abriu a porra do embrulho? Porque tanto silêncio? Tem alguma coisa errada. Me enrolei na toalha e fui ver o que acontecia. Ela não estava mais em casa. Nem o embrulho. A vizinha, lógico!

Toquei a campainha do 603. Uma mocinha linda, uns quinze aninhos, abre a porta e fica me olhando com cara de quem gostou do que viu. Depois deu um berro:

- Mãe, tem um homem só de toalha aqui na porta!

Já tinha me esquecido deste pequeno detalhe.

- O que você está fazendo aqui com estes trajes?

- Sabia que você estava aqui! Cadê o pacote? Já abriu?

- Não é da sua conta. Você não tem vergonha? Vai vestir uma roupa. Que idéia é essa de aparecer na frente da menina assim?

- Como não é da minha conta? E não mude de assunto! Você é minha mulher, o embrulho estava endereçado ao meu apartamento, portanto eu tenho todo o direito de saber o que é que tem lá dentro.

- Então toma. abre.

- O quê, você ainda não abriu? Esse tempo todo que eu estava no banho você ficou fazendo o quê? Olhando?

- Eu acabei de chegar aqui. Você não demorou nem cinco minutos no banheiro.

- Eu não acredito. Espera aí que eu vou lá colocar uma roupa e já volto. Mas não abre, espera.

Minha ansiedade só não era maior do que o embaraço de ver aquela ninfeta me comento com os olhos.

Quando voltei elas haviam acabado de abrir a tal caixa. Nunca vi cena mais hilária: a filha da vizinha corria de um lado a outro da casa, ordenada pela mãe que berrava como um trovão.

- Traz água! Traz açúcar! Tem que dar água com açúcar pra ela se acalmar.

Enquanto gritava, a gorda abanava com a tampa da caixa a minha mulher, que tinha os dois olhos quase soltando da cara. Quando me viram, vieram as três ao mesmo tempo. Gritavam juntas na minha frente, cada uma falando uma coisa, não entendia porra nenhuma.

- Cala a boca!

Calaram. Já falei que detesto mulher histérica.

- Pronto, agora mostra o que é que tinha naquela caixa.

Quando elas se afastaram eu pude ver os restos do breguíssimo papel de cupidos espalhados pelo tapete e em cima do sofá uma calcinha vermelha toda rendada, modelo "fio dental". Tinha que rir mesmo! Sentei no chão. De tanto rir, eu até chorava. Só que a bofetada doeu de verdade. Acho que se fosse a gorda da vizinha eu estaria morto.

- Mas o que é que você queria? Como é que você gostaria que eu agisse? Isso tudo é muito engraçado.

- Não tem nada de engraçado. Você devia ter ficado com ciúmes, pelo menos.

- Ciúmes? Só rindo mesmo. Então você vai me dizer que ficou impressionada. O admirador secreto te conquistou.

- Pode parar de ironizar. Eu estou com medo.

- Medo de quê?

- Não tinha nome de ninguém, só isso aqui. Ela me estendeu a mão com um papel amarelo e algumas letras recortadas de jornal que formavam a frase: "EU TE AMO MARISA".

- Mas o seu nome não é Marisa. Foi um engano.

- Você não percebe? De quem é a música que eu canto todo dia no chuveiro? Meu amor, tem alguém me espionando!

Depois de dizer isso, caiu em prantos, desesperada. Não sabia o que ia fazer? O que se diz numa situação dessas?

- Fica calma, meu amor. (Foi o que saiu.)

- Como ficar calma? Meu bem, como é que eu posso ficar calma se tem alguém me vigiando? Esse cara pode ser um louco, saber tudo da minha vida, daqueles que seguem a mulher vinte e quatro horas por dia, fotografam, colocam câmeras escondidas pelos lugares onde ela freqüenta, essas coisas. A partir de agora eu terei que andar disfarçada nas ruas, mudar de nome, de endereço... Meu Deus, por que isso foi acontecer logo comigo?

- Querida, escuta. (eu tinha que manter a calma) Em primeiro lugar, esse cara dever ser um coitado que deu a sorte de ter uma janela de frente pro nosso prédio. Um maníaco te mandaria flores, e não uma calcinha fio dental de camelô. Aposto com você que esse gesto foi o mais audacioso que ele conseguiu articular. E, segundo: pra onde a gente vai se mudar? Se vendermos este apartamento, vamos ter que comprar um menor, porque essas coisas vão se desvalorizando... e blá blá blá....

Tive que argumentar por mais de uma hora pra fazê-la desistir da mudança. Mas ela não cedeu assim tão fácil. Firmamos então um acordo: meu "lar doce lar" estava finalmente a salvo; mas a janelinha do banheiro que eu tanto gostava seria trocada por um basculante frio e calculista.

A reforma do banheiro demorou uma semana para ficar pronta. Tempo suficiente pra paranóia da minha mulher ir embora e tudo voltar a ser como antes. (Pelo menos era o que eu esperava.) Pelo menos agora ela já cantava no banheiro; saía sem os óculos escuros, sem o chapéu e o sobretudo.

Marcamos um jantar pra comemorar. A vizinha e a ninfetinha foram convidadas. Nem tudo é perfeito, pensei.

Frango cozido ao molho de grão de bico. Divino, se eu não tivesse que ficar olhando aquela gorda comendo como uma porca na minha frente. Minha irritação era clara e transparente tanto quanto a vergonha da pequena ninfetinha. Minha mulher, para amenizar o clima, puxou assunto.

- Tem morador novo no 601, né?

- Moradora. – ruminou a gorda – Ela já está aqui há quase dois meses, mas quase não fica em casa. O porteiro disse que é uma mulher bonita, e muito elegante.

- É mesmo, eu conversei com ela outro dia lá na portaria. Seu nome é Marisa.

- Marisa? Mas, será? Meu amor, será que isso tudo foi um engano?

- Claro que foi, você não está vendo?

- Que maravilha! Que dizer, coitada da moça, deve estar sendo seguida, fotografada, vigiada 24 horas por dia sem saber.

- Acho que você está assistindo mais filmes de suspense do que sua cota de neurônios permite.

- Quer parar? Você não imagina como é horrível se sentir vigiada, sentir que a todo momento alguém te olha de algum buraquinho. Pena... Quer dizer, ainda bem que aquele presente horrendo não era pra mim.

- Pois é, pode deixar que amanhã eu entrego o embrulho e explico tudo pra coitada da vizinha.

A gorda ainda desfalcou a torta de morangos da sobremesa na hora de ir embora.

- É pro Edgar, meu marido.

Dormi pensando em como tudo acaba dando certo, de uma maneira ou de outra. Às vezes mais certo do que a gente imagina.

Manhã seguinte:

- O senhor tem certeza que não prefere a preta? Pra esse modelo de calcinha a cor escura é muito mais sensual.

- Não. Desta vez eu vou levar a branca. É mais suave, mais delicada. Mais parecida com a ninfetinha.

 

Ana Elisa Costa Novais
21 anos. É estudante do curso de Letras da Universidade Federal de Ouro Preto. Mora em Mariana, Minas Gerais.
Correio: [email protected]

 

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