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Os Movimentos Primitivistas:
Manifestos, temáticas e nacionalismo

texto do trabalho Modernismo - Movimentos Primitivistas

"A nossa literatura está morrendo de academicismo. Não se renova. São os mesmo sonetos, os mesmo romances, os mesmo elogios, as mesmas descomposturas que ouço desde os tempos da fundação da Academia. "

(Graça Aranha)

"Estamos atrasados 50 anos em cultura, chafurdados em pleno parnasianismo"

(Oswald de Andrade)

"Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com os olhos livres"

(Oswald de Andrade)

 

Em 1924, enquanto Ronald de Carvalho lançava o brado de "Morra o futurismo! O futurismo é Passadismo!", Oswald de Andrade divulgava o "Manifesto Pau-Brasil".

Preconiza, nesse documento, uma poesia de exportação em contrapartida à poesia de importação. Define-se por uma poesia emancipada, primitiva, liberta dos "cipós das metrificações". Reclama: "A língua sem arcaísmos. Sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros". Sugere a deformação: "O lirismo em fôlha. A apresentação dos materiais". Determina: " Contra a argúcia naturalista, a síntese. Contra a cópia, a invenção e a surprêsa."

Paulo Prado, que lhe prefacia o livro, escreve: "Oswald de Andrade, numa viagem à Paris, do alto de um atelier da Place Clinchy – umbigo do mundo – descobriu deslumbrado a sua própria terra. A volta à pátria confirmou, no encantamento das descobertas manuelinas, a revelação surpreendente de que o Brasil existia". Noutro passo, considera: "Não só mudaram as idéias inspiradoras da poesia, como também os moldes em que ela se encerra. Encaixar na rigidez de um sonêto todo o baralhamento da vida moderna é absurdo e ridículo. Descrever com palavras laboriosamente extraídas dos clássicos portugueses e desentranhadas dos velhos dicionários, o pluralismo cinemático de nossa época, é um anacronismo chocante". Assim, proclamava e conclamava: "Sejamos, agora, de novo, no cumprimento de uma missão étnica e protetora, jacobinamente brasileiros. Libertemo-nos das influências nefastas das velhas civilizações em decadência". Do novo movimento deve surgir, fixada, a nova língua brasileira, que, acredita, será a reabilitação do nosso falar quotidiano, que o pedantismo dos gramáticos tem querido eliminar da língua escrita.

O livro de poemas "Pau-Brasil" é uma singular contribuição para que se visualize o país como um todo autônomo e original, com seus valores específicos e típicos. O poeta pesquisa aspectos da nossa cultura, tendências do comportamento afetivo nacional, usos e costumes do povo. Os cronistas nacionais e estrangeiros que nos visitaram nos albores da colonização – fontes para tantos estudos sociológicos, históricos, econômicos e de psicologia social, que surgiriam em futuro próximo – já são manuseados pelo poeta, que desentranha composições poéticas de textos de Gandavo, Claude d’Abberville, de Frei Vicente de Salvador, de Frei Manuel Calado, de Pero Vaz de Caminha. Aspectos da colonização, valores do passado brasileiro, pessoas, coisas, paisagens, e produtos da terra são temas para sintéticas peças. Oswald evoca o Aleijadinho, os pousos de Sabará, Ouro Prêto e Congonhas do Campo. Se se detém nos fastos bandeirantes, se retrata a fazenda antiga, se revive dramas e cenas da escravidão, também capta, sempre de forma breve e inesperada, e ora com ternura ora com ironia, o fotógrafo ambulante, as procissões religiosas, a Semana Santa, os jardins caipiras – caipiras mesmo quando situados nos grandes centros urbanos, e que constituem uma vivência cabocla a resistir ao avassalador cosmopolismo da civilização industrial. O sentimentalismo brasileiro também é apreendido pelo poeta nas suas composições da amor encafifadas, seresteiras ou marotas.

O livro inauguraria toda uma poética do pitoresco, toda uma poesia baseada no namoro com o Brasil das coisas miúdas ou das grandiosidades estupefacientes. Oswald estimularia a temática nacionalista, de tal modo que, a dado momento, a poesia modernista parecia reduzir-se a "uma poesia de região, de município e até de povoado", como observou Carlos Drummond de Andrade. Ronald de Carvalho ampliaria os assuntos descobertos por Oswald de Andrade, projetando-os no plano continental de toda a América.

 

O nacionalismo é levado às últimas conseqüências pelos componentes do grupo "Verde-Amarelo", que tem por principais figuras Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo – este a princípio contrário à poesia moderna e aceitando-a agora – Plínio Salgado e Cândido Mota Filho. Os "verdamarelos" combatem o "futurismo" – lastro inicial do movimento, fornecedor de suas formas combativas – e são contrários à poesia Pau-Brasil, que consideram contrafação ao dadaísmo francês e, assim, amamentada pelas idéias de André Breton. Esse grupo, que trazia para o seu ideário a preocupação política que aspirava dar às suas obras uma finalidade social, está inicialmente ligado ao PRP e defende o fortalecimento do poder como processo de resistência às ideologias estrangeiras que já perturbam o país. É nacionalista exacerbado e pretende uma síntese racial ao mesmo tempo que uma conjunção dos valores da arte e dos postulados econômico-sociais. O grupo verde-amarelo, depois de atuar por dois anos, empenhando numa polêmica diária e violenta, que é mais política do que literária , decide-se à enverdar, de uma vez, pela ação e colocar-se à serviço da análise em profundidade da vida brasileira e seus problemas – e funda, então, sob o comando de Alarico Silveira, o "Grupo da Anta" – totem lembrado por Plínio Salgado. Propõem-se o seus corifeus a uma tarefa de revisão e esta se apoiará nas lições da obra de Tavares Bastos, Alberto Tôrres, Euclides da Cunha, Farias Brito, Oliveira Viana e Barbosa Rodrigues. O Verdamarelismo na sua primeira ou última encarnações, dá ao romance de Plínio Salgado e o "Martim Cerêrê", de Cassiano Ricardo, que formula uma mitologia nacional, poema utilitário e cívico, engrandecedor da história, grandiloqüente, colorido, e manifestação eufórica e esperançosa de um Brasil grande, de que São Paulo é o mais vistoso padrão como zona industrial e agrícola.

 

Assim como o movimento Verde-e-Amarelo se transforma no da Anta, também o Pau-Brasil se transmuda no da Antropofagia, tendo Oswald de Andrade na liderança. Prega o retorno ao primitivo, porém ao primitivo em estado de pureza, se assim se pode dizer, ou seja, sem compromissos com a ordem social estabelecida, tanto no plano da política e da religião quanto no da economia. Valoriza o homem natural, é anti-liberal, anticristão, considera a moral cristã uma moral de escravos. É ateu e quer remontar às fontes da civilização brasileira anterior à civilização portuguesa, que tacha de cruel. Declara-se "contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud", e, sem seu lugar, propõe "a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituição e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama". A antropofagia produz, notadamente, "Macunaíma", de Mário de Andrade, e "Cobra Norato", de Raul Bopp. O primeiro é livro em que "se acumula um despropósito de lendas, superstições, frases feitas e modismos de linguagem" – como diz M. Cavalcanti Proença – e "encarna o caos psicológico de um povo em que os diversos elementos rácicos e culturais se reuniram, sem que estejam, por enquanto, amalgamados", de acordo com a observação de José Osório de Oliveira. Obra em prosa, participa porém, de certa forma da poesia, pelo seu aspecto de canção de gesta cabocla. O segundo, poema audacioso pela forma e o conteúdo, é arrancado do dramático mundo amazônico e informado pelo seu complexo bárbaro e selvagem. Folclórico e febril, apoia-se numa linguagem dialetal e misteriosa, muitas vezes impenetrável.

No ritual antropofágico entre os tupinambás, imolava-se o inimigo, guerreiro valente apresado em combate, depois despedaçado e comido num repasto coletivo. A mais gritante diferença entre o colonizador cristão e o indígena antropófago, tenaz e duramente reprimido pelas autoridades civil e religiosa da colônia, esse ato de canibalismo, enquanto prática de vingança, seria o principal meio de regulação mágica do equilíbrio social dos primeiros donos da terra brasileira.

A vanguarda modernista, com Oswald de Andrade, aproveitou o ritual primitivo, mágico e comunitário, como metáfora de extrema violência, no canibalismo literário do grupo antropofágico, que publicou, de 1928 a 1929, anos finais da militância do nosso modernismo, em São Paulo, uma Revista de Antropofagia.

Nos 52 parágrafos da "linguagem telegráfica" de seu Manifesto Antropófago, Oswald proclama, sob o patrocínio de Montaigne, Jean de Lery, Rousseau e Keyserling, que a antropofagia, definida como a transformação do tabu em totem, é o que une extensiva e profundamente os brasileiros todos. Sua palavra de ordem: devorar as proibições e interditos ancestrais e coletivos — designados globalmente pela palavra polinésia tabu, correntemente usada pelos antropólogos, e que Freud uniria à outra, no título de seu famoso Totem e Tabu. Devorando-os, na companhia da má literatura, neutralizaríamos a repressora força do tabu, convertendo-o em totem, ou seja, em imagem rememorativa propiciatória, como vínculo histórico com o passado.

Essa operação antropofágica atingiria, portanto, os símbolos de nossa história colonial e caquética: a família patriarcal, a "moral da Cegonha", "a religião de caravelas", trazida pelos jesuítas, com suas sublimações antagônicas não resolvidas. Deglutição simbólica, por certo, mas como ímpeto de uma revolução, que, chamando de volta o inextinguido instinto tupi ou caraíba, derivasse para uma catarse da inteligência brasileira, de sua cultura bacharelesca e dos "bons sentimentos portugueses", liberatória da intuição e da adivinhação. Qual a importância dessa algaravia sócio-psicanalítica?

Festejado em seus setenta anos, o Manifesto Antropófago, de 1928, representa, ainda nos dias de hoje, além de significativo documento das tensões dialéticas do movimento modernista, uma peça-chave da obra particular de Oswald, como poeta, romancista e agitador de idéias, e uma das mais engraçadas e reveladoras radiografias da cultura brasileira.

Como documento do modernismo, o manifesto significa a naturalização das comilanças do movimento de 22, que se banqueteou na mesa das correntes européias vanguardistas do primeiro quarto deste século, incluindo o surrealismo. O que então comêramos aparece agora como transfusões num processo de assimilação das intrínsecas possibilidades desse movimento. Quando nos mirássemos no espelho do estrangeiro, passaríamos a estranhar-nos e a descobrir a nossa originalidade nativa. Desse modo, convertia-se a assimilação numa atitude devoradora generalizada: comeríamos, por fim, nossa herança cultural ambígua, com suas reservas inconscientes de imaginário, poeticamente transladáveis, e também com o seu imenso poder repressor, que aliou a catequese aos Governos Gerais, o jesuíta ao capitão-mor, e do qual só a operação antropofágica, já como higiene política, poderia liberar-nos.

Receita e remédio, prescrição e arma, doutrina liberatória e instrumento prático, o manifesto não é antropofágico, mas antropófago: ele já comeria e devoraria enquanto estatuísse menos uma arte do que a perspectiva liberadora, sustentada no inconsciente primitivo, para Oswald de "sentido étnico", porque fonte perene da renovação da vida e de toda criação artística.

"Tupy or not tupy, that is the question." Mas o tupi oswaldiano não era de nenhuma raça, e, sim, o primitivo irredento, a contraprova de uma anti-história dentro da história — um membro da horda freudiana, um salto exemplar da ancestral nebulosa do "pensamento selvagem", ser cultural à margem da sociedade a que pertencia e olhando-a distanciadamente, com o fulgor da estranheza crítica.

Por todas essas ressonâncias, a antropofagia de 1928 tornar-se-ia, depois, o "paraíso perdido" da atividade intelectual de Oswald. Dela fez a apologia na década de 40 em seu romance Chão, do ciclo Marco Zero e a ela pretendeu voltar, cessada sua fase marxista, não mais como romancista e, sim, como filósofo, autor da tese A Crise da Filosofia Messiânica, em que chamando o "senso étnico" de sentimento órfico, por ele vinculado à cultura primitiva sempre matriarcal, oposta à civilização, que seria sempre paternalista e messiânica, prevê a substituição desta por aquela, numa rodada cíclica final, a trazer-nos o novo matriarcado da humanidade redimida pela utopia. Oswald não tinha, porém, o hábito do pensar filosófico, paciente e reflexivo. Sua tese conserva a vivacidade do Manifesto Antropófago, o melhor produto do movimento, no qual o apetite antropofágico se abastece na agudeza do olhar antropológico. E é esse olhar antropológico que radiografa o irredimido patriarcalismo da sociedade brasileira e de sua cultura, transparente nas violentas estruturas sociais que nos geraram (e que, não sem razão, retornam, numa feliz associação literária entre escravatura e antropofagia, no Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro), juntamente com a mentalidade colonial e particularista de nossas instituições públicas

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