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Informações retiradas do Trabalho Guimarães Rosa A língua do sertão.

Grande sertão: Veredas
Dom Riobaldo do Urucuia, Cavaleiro dos campos gerais

Manuel Cavalcanti Proença

SE HÁ NECESSIDADE de classificação literária para Grande sertão: veredas, não há dúvida que se trata de uma epopéia. Preferimos não gastar palavras com argumentação que nos levaria longe, embora com margem dadivosa para demonstrações comparativistas. Algumas anotações de natureza didática, somente para não afirmar sob palavra, podem justificar desde logo a classificação. Deixando de lado as qualidades orgânicas de unidade de ação e de interesse, comuns a qualquer obra literária, Riobaldo é um verdadeiro protagonista, até no sentido etimológico do termo, sempre o primeiro nos combates, como homem que atira bem. "Senhor atira bem, porque atira com espírito. Sempre o espírito é que acerta..." - como dizia Alemão Vupes.

A intercalação de episódios convergentes com a ação principal, mas de função adjuntiva, podendo adquirir independência formal, aparece freqüentemente; desde logo, podem ser enumerados o do Aleixo, com os três filhos cegos, o do José Cazuzo, com visões sobrenaturais em pleno combate, o de Andalécio e Antônio Dó atacando o porto de São Francisco.

Aliás, por esta característica, os próprios contos e novelas de Guimarães Rosa, entremeados de episódios, são épicos em grande número. O do touro Calundu, o do negrinho cujo canto fez estourar a boiada, em "O burrinho pedrês"; o do sapo e do cágado na "Volta do marido pródigo"; do Bento Porfírio, em "Minha gente"; o do "Quem-Será", em "São Marcos", todos em Sagarana e ficando apenas numa parte do livro. O episódio de Maria Mutema, este no Grande sertão: veredas, é um verdadeiro conto in crustado no corpo do romance, como processo de reter o desenvolvimento da ação, prolongando o interesse da narrativa.

Voltemos ao fio da classificação. O ponto nodal é o julgamento de Zé Bebelo, quando, conseguido o equilíbrio das forças adversárias (jagunços contra governo), deveria findar totalmente o interesse do enredo. Entretanto, a morte de Joca Ramiro, herói secundário, desata novamente a ação que, daí por diante, se desencadeia, em plano diferente, até a morte de Diadorim, com a justificação do sentido etimológico do nome do herói: Riobaldo: Rio-Baldo.

Pelas características que tentaremos pôr em evidência, o tema é, evidentemente, material de filiação popular. Jean Suberville, falando da epopéia erudita, diz que ela "nasce completa do cérebro de um poeta, como Minerva, armada, do cérebro de Júpiter". À parte o pedantismo da imagem e o risco de pensarem que ameaço fazer de Guimarães Rosa um novo Tonante, quero aproveitar o símile, como ajutório do que vou expor:

O cangaceiro, como herói de poesia narrativa sertaneja, é assunto pacífico entre folcloristas, e o paralelismo com as epopéias medievais e seu sucedâneo - o romance de cavalaria -, já tem sido apontado, inclusive, pelo autor deste ensaio.

Pois bem, esse Riobaldo é uma estilização da imagem convencional que o povo estabeleceu para seus heróis.

Que não houve, apenas, paráfrase de uma lenda, é evidente. Mas o tipo cavalheiresco de Riobaldo despertou, associativamente, no acervo de impressões de leitura do autor, ressonâncias que acabaram por sintonizar até os componentes do romance, onde se pode rastrear uma propensão arcaizante de efabulação, com reflexos no próprio vocabulário.

Riobaldo começa menino sem pai, tímido, mas com vários embriões de virtudes heróicas, que se irão acentuando, até elevá-lo, meio inconscientemente, a chefe indiscutido, embora não pressentido pelos que o cercam (exceto por Diadorim, que logo adivinha).

Cangaceiro cortês, se não se repelem os vocábulos, Riobaldo não comete barbaridades, não consegue cometê-las, apesar da tentação de fazê-lo, com o pobre sertanejo da égua e da cachorrinha, ou com o leproso trepado na árvore (tal e qual aquela moura, filha de leproso do "romance-velho" da Enfeiti~ada - "homem que a mim se chegasse, malato se tornaria"). Riobaldo não tolera a deslealdade e os desleais lhe são inimigos de morte, os "judas". Muito folcloricamente, procura o equilíbrio social e tem rasgos de bandido romântico, favorecendo com esmola grande a mulher que dá à luz no casebre miserável.

Como nos "romances-velhos", Diadorim propõe, e ele jura cumprir, voto de castidade, porque "Severgonhice e airado avejo servem só para tirar da gente o poder da coragem..." Era a "regra de ferro de Joãozinho Bem-Bem", o jagunço, mas o fora, antes, de Nun' Alvares Pereira, que já imitava nesse ponto o patrono Dom Galaaz.

Os chefes sertanejos guardam traços medievais:

"Medeiro Vaz, retratal, barbaça, com grande chapéu rebuçado, aquela pessoa sisuda, circunspecto com todas as velhices, sem nem velho ser", era "homem sobre o sisudo, nos usos formado, não gastava as palavras. Nunca relatava antes o projeto que tivesse, que marchas se ia amanhecer para dar. Também, tudo nele decidia a confiança de obediência. Ossoso, com a nuca enorme, cabeçona meia baixa, ele era dono do dia e da noite - que quase não dormia mais: sempre se levantava no meio das estrelas, percorria o arredor, vagaroso, em passos, calçado com suas boas botas de caititu, tão antigas. Se ele em honrado juízo achasse que estava certo, Medeiro Vaz era solene de guardar o rosário na algibeira, se traçar o sinal-da-cruz e dar firme ordem para se matar uma a uma as mil pessoas." "Medeiro Vaz era duma raça de homem que o senhor mais não vê. (...) Ele tinha conspeito tão forte, que perto dele até o doutor, o padre e o rico, se compunham. Podia abençoar ou amaldiçoar, e homem mais moço, por valente que fosse, de beijar a mão dele não se vexava. Tenente nos gerais - ele era." Não é Carlos Magno em gibão de couro?

Talvez a figura de Rolando se ajuste em Joca Ramiro, montado em cavalo branco feito um São Jorge. Vale a pena transcrever o trecho em que Riobaldo o apresenta: "E Joca Ramiro. A figura dele. Era ele, num cavalo branco - cavalo que me olha de todos os altos. Numa sela bordada, de Jequié, em lavores de preto-e-branco. As rédeas bonitas, grossas, não sei de que trançado. E ele era um homem de largos ombros, a cara grande, corada muito, aqueles olhos. Como é que vou dizer ao senhor? Os cabelos pretos, anelados? O chapéu bonito? Ele era um homem. Liso bonito. Nem tinha mais outra coisa em que se reparar. (...) A gente tinha até medo de que, com tanta aspereza da vida, do sertão, machucasse aquele homem maior, ferisse, cortasse. E, quando ele saía, o que ficava mais, na gente, como agrado em lembrança, era a voz. Uma voz sem pingo de dúvida, nem tristeza. Uma voz que continuava." E, em outro passo, evocando 0 chefe morto: "Joca Ramiro, tão diverso e reinante que, mesmo em quando ainda parava vivo, era como se já estivesse constando de falecido."

Zé Bebelo, prisioneiro, submetido a julgamento, arenga como guerreiro medieval: "... Altas artes que agradeço, senhor chefe Joca Ramiro, este sincero julgamento, esta bizarria... Agradeço sem tremor de medo nenhum, nem agéncias de adulação! Eu. José, Zê Bebelo, é meu nome: José Rebelo Adro Antunes! Tataravô meu Francisco Vizeu Antunes - foi capitão-decavalos... Demarco idade de quarenta-e-um anos, sou filho legitimado de José Ribamar Pacheco Antunes e Maria Deolinda Rebelo; e nasci na bondosa vila mateira do Carmo da Confusão..." (...) "Agradeço os que por mim bem falaram e puniram... Vou depor. Vim para o Norte, pois vim, com guerra e gastos, à frente de meus homens, minha guerra... Sou crescido valente, contra homens valentes quis dar o combate. Não está certo? Meu exemplo, em nomes, foram estes: Joca Ramiro, ~oãozinho Bem-Bem, Sô Candelário!... e tantos outros afamados chefes, uns aqui presentes, outros que não estão..." E mais para o im, usa o termo próprio a expressão medieval: "Mas, homem sou de altas cortesias."

Todo o episódio do julgamento é um recorte de romance de cavalaria transposto para o sertão. A grandiloqüência das palavras realça a nobreza da ação; é de barões o diálogo entre Joca Ramiro e Zé Bebelo.

- "O julgamento é meu, sentença que dou vale em todo este norte. Meu povo me honra. Sou amigo dos meus amigos políticos, mas não sou criado deles, nem cacundeiro. A sentença vale. A decisão. O senhor reconhece?"

- "... Agora, com sua licença, a pergunta faço: pelo quanto tempo eu tenho de estipular, sem voltar neste Estado, nem na Bahia?"

- "Até enquanto eu vivo for, ou não der contra-ordem..."

E o vencido, cumprindo a palavra dada, vai rumo de Goiás, escoltado honrosamente pelo cabra Friol, distância de três léguas, "por o uso de resguardado território"; Joca Ramiro deixa o acampamento para região ignorada: "Lá ia ele, deveras, em seu cavalão branco, ginete - ladeado por Sô Caridelário e o Ricardão - igual iguais galopavam."

O sentimento de honra - o orgulho da luta sem outro galardão além da glória - inflama os jagunços do grande sertão. No julgamento de Zé Bebelo, Riobaldo fala da história que há de guardar o nome dos valentes, a fama de suas façanhas: "Nela todo o mundo vai falar pelo Norte dos Nortes, em Minas e na Bahia toda, constantes anos, até em outras partes... Vão fazer cantigas relatando as tantas façanhas..." E Sô Candelário, que era bom e que buscava a morte nos combates para sufocar o medo de ficar leproso, repete as mesmas idéias, quase com as mesmas palavras: "... Seja a fama de glória... Todo mundo vai falar nisso, por muitos anos, louvando a honra da gente, por muitas partes e lugares."

Mais tarde, na chefia do bando, Riobaldo reconhece, melancolicamente, que não deu batalhas suficientes, e embora tivesse varado mundo em comando, não se prezava bastante o seu nome. Urutu-Branco era um desconhecido: "Mas, então, tudo naquela parte dos Gerais era ilusão de haver e não se saber." E quando o companheiro, recém-chegado de longas andanças, o chama de Tatarana, disfarça a decepção: "O seja que tivesse vivido esses tempos tangendo urubu, adformas que vinha agora na ignorância de que eu é que era o Chefe. Amargura-o a falta de ressonância do sertão imenso: "Às vezes, não sei porque, eu pensava em Zé Bebelo, perguntava por ele em outros tempos; e ninguém conhecia aquele homem lá, ali. O de que alguns tivessem noticia era da fama antiga de Medeiro Vaz."

Quando Joca Ramiro é morto à traição, como os heróis de legenda Hermógenes e Ricardão, os ássassinos, se degradam, como aquele Dom Galvan, cavaleiro de má andança, réu de covardia e deslealdade.

Riobaldo vai anunciar aos companheiros de outro bando a morte de Joca Ramiro. Cena e palavras medievais. O grupo está reunido quando ele chega e brada, ainda a cavalo: "Trago notícia de grande morte! - (...) Eles todos tiraram os chapéus, para me escutar. Então, eu gritei: - `Viva a fama de glória do nosso Chefe Joca Ramiro!'(...) E pela tristeza que estabeleceu minha voz, muito me entenderam."

A travessia do Liso do Suçuarão, que Medeiro Vaz - Percival ou Lancelote -, apesar de todos os preparativos, não conseguiu realizar, Riobaldo - Dom Galaaz - realiza, protegido pelo acaso, sem mesmo se haver preocupado com provisões.

Como os cavaleiros corteses, Riobaldo muda de apelido guerreiro, primeiro jagunço Tatarana, depois chefe Urutu-Branco.

Na casa da fazenda abandonada, quando se levanta um pano branco por cima das moitas, em pleno combate, Zé Bebelo é formal: "A regra que é regra! (...) A solenidade de embaixador sempre se tem de consentir; até para herege, até para bugre..."

A idade de ouro, de Ovídio, celebrizada nos romances de cavalaria, comparece: "Pois os próprios antigos não sabiam que um dia virá, quando a gente pode permanecer deitada em rede ou cama, e as enxadas saindo sozinhas para capinar roça, e as foices, para colherem por si, e o carro indo por sua lei buscar a colheita, e tudo, o que não é o homem, é sua, dele, obediência? Isso, não pensei - mas meu coração pensava."

Como nos romances de cavalaria, enumera, em vésperas de batalha, os guerreiros, cada qual com sua característica. Apenas uma transcrição, entre muitas que poderíamos fazer.

"Para que relembrar, divulgar dum e dum, dar resenhas? Do Dimas Doido - que xingava nomes até a galho de árvore que em cara dele espanejasse, ou até algum mosquitinho chupador. Do Diodolfo - mexendo os beiços num bis-bis: que era que sem preguiça nenhuma rezava baixo, ou repetia coisas de mal, da vida alheia, conversando com si-mesmo. Do 5uzarte - tomando olhos de tudo, chão, árvores, poeiras e estilos de vento, para guardar em sua memória aqueles lugares em léu. Do Salústio João, em ancas de seu burro; e do Araruta - de toda confiança: esse homem já tinha para mais de umas cem mortes. Do Jiribibe, que a recorrer, da guia à culatra, por necessidade de cada coisa ouvir, recontar e saber. Ou do Feliciano - que abria muito 0 olho são, para melhor entender o que a gente dizia? Tuscaninho Caramé, que cantava, bonita voz, algüa cantiga sentimental. João Concliz, dobrando um assovio comprido sem fim, colno esses que são dos tropeiros dos campos goianos? Ou o José do Ponto com o Jacaré - tocando os cargueiros, com sua tralha de cozinhar..."

Confrontemos com a enumeração que Francisco de Morais fez dos cavaleiros cristãos, antes da batalha contra os turcos:

"O príncipe Beraldo e Onistaldo, seu irmão, tiraram armas de ouro manchadas de negro, nos escudos em campo negro, fojos do mesmo ouro; os elmos da mesma sorte. Polinard e Francião saíram de verde e roxo, cortadas as cores em tiras, metidas uma por outras, em campo verde, mares de prata. Blandidon e Frisol tiraram as suas de amarelo e negro, à maneira de cunhas, e nos escudos em campo amarelo grifos negros cravados com rosas de ouro. Pompides e Platu traziam armas de verde compostas de esperança; nos escudos em campo verde, touros brancos que desta devisa se pagava muito Pompides. O príncipe Graciano e Goarim, seu irmão, vieram de branco e verde, as cores extremadas com cordões de ouro, nos escudos em campo branco mares de verde compostos de boninas de muitas cores. Rosamonte e Belizarte vieram de vermelho sem nenhuma outra mistura, nos escudos em campo sanguíneo e esperança morta, como quem já não a havia mister." (Cap. CLXV - Palmeirim de Inglaterra)

O encontro com o povo dos catrumanos, na região inóspita, é episódio de freqüente correspondência em romances de cavalaria; lembremos a Ilha Encantada onde esteve Clarimundo; a aventura do homem que sia na cadeira, de Percival e Lancelote.

Finalmente, o clímax. Alta noite, Riobaldo vai procurar o Demo, e o capeta não aparece. Dali em diante, começa uma demanda medieval, a luta de Deus contra o Diabo, representado pelos "judas". Não veio o demônio, porque Deus estava com o guerreiro. Tanto que ele pronuncia as palavras sagradas que afugentam Satanás e nada acontece. Mas os cavalos passam a adivinhar que Riobaldo, agora, é homem sobrenatural, conserva o cheiro de quem o Diabo farejou: aquele gateado, formoso, de imponência e brio, que se abaixa diante dele, depois de quase bolear o dono, era do diabo e, por isso, gateado. Empina violentamente, mas Riobaldo lhe diz o nome: Barzabu. E porque havia adquirido ascendência sobre o diabo, porque deixara de temê-lo, altas horas na encruzilhada, o cavalo se submete, aceita que o dono lhe mude o nome para Siruiz, manso, doce nome do poeta da neblina.

Assumindo a chefia do bando, é necessário resolver aonde ir, que fazer. Deixa os companheiros, galga um itambé de pedra, muito lisa, e ali pensa. Meio Amadis de Gaula, meio Moisés. "O que eu carecia era de uns instantes sempre meus, para estribar meu uso. (...) Fiquei lá, um tempo. Quando desci, umas coisas eu resolvia."

Ao dono das terras ele dá como gage de aliança, não "correntias moedas de tesouro do rei mas costumeiras prendas de louvor aos santos". E o seu Habão lhe toma a bênção, servo reconhecendo o senhor. Então num rom pante, para honrar seu Habão "por alguma alvíssara de mercê". Riobaldo determina que ele tome a pedra de valor e sele um bom cavalo, chegue na fazenda Santa Catarina dos Buritis Altos e a entregue à sua "sempre noiva" que Otacília se chamava.

A convocação dos catrumanos para seguirem com os jagunços tem um sentido de grandeza legendária. E realiza aquele devaneio, também tocado de nobreza antiga, em que se embalara ao sair do Sucruiu, querendo levar para longe da desgraÇa, para um mundo melhor, Otacília, Diadorim, os companheiros, os conhecidos.

Na comitiva, o cego e o menino, inúteis e, por isso mesmo, dão a nota de grandeza e majestade, viajando a par com ele; Diadorim é o cavaleiro gentil, "montado à baiana, gineta, com estribos curtos e rédea muito ponderada, bridando bem em seu argel travado, às upas".

Antes, porém, de empreender a demanda dos judas, é preciso voltar aos campos do Urucuia, receber os eflúvios da terra, encher os olhos da contemplação dos buritis, os ouvidos, com o berro dos bois. Quem vai vencer ou morrer deve dar adeus às coisas queridas, à terra-mãe.

Em sonhos corteses, pensa em Otacília: "E crendo que um enfrentava os duros riscos, ela Otacília pudesse praticar o estouvamento gentil de se fugir de casa e vir aventurada em minha cata, por todos os pousos deste sertão... Ah, ela vinha, montada num bom cavalo corcel" (por pouco se lê ala rem a arecia de re ente or meu nome er untando. E eu decla) pregava a grandeza real dela, definida bem do meu lado, na frente do grande bando de meus homens..."

A demanda dos Judas está clara na consciência de Riobaldo: "Eu ia numa caçada, com o grande gosto, ah. Pois não era? Mais tempo se gastou, esbarrados em casas-de-fazenda ou em povoados. Melhor - por lá, também, havia de aprender a referir meu nome. De em desde, bem que já cumpriam de me recompensar e me favorecer, pela vantagem: porque eu ia livrar o mundo do Hermógenes."

O combate a cavalo, no Tamanduá-tão, é uma verdadeira batalha campal, com o Fafafa "indo em frente, mais os dele, gritando alardes!". Ali, ele próprio se benze. Era o enviado de Deus, não era pactário.

Terminada a luta, volta às Veredas-Mortas, ponto inicial da demanda, da vigília em que se sagrara chefe. Também as Veredas-Mortas se haviam acabado, pois esse nome só existira no seu pensamento. No real era Veredas-Altas, pois Riobaldo não se transformara em pedra como Adamastor, embora ali quisesse se "abraçar com uma serrania".

O resto é prolongamento para poder conservá-lo em vida a fim de contar a história do autor do romance. Servidão da técnica.

Vez por outra, conscientemente ou não, o romancista deixa entrever em certas expressões as raízes antigas de sua efabulação: Joca Ramiro é "um imperador em três alturas", um chefe valente é par-de-França, Riobaldo lê o Senclér das Ilhas e se compara a Guy de Bourgnogne.

De Diadorim, digamos logo que é também figura de romance-velho, a filha de D. Martinho - "tens olhos de mulher: / eu olharei para o chão; / tens peito de mulher; / mando fazer um peitilho / que me aperte o coração". Por isso "o capitão dos soldados / um grande amor lhe tomou".1 Também Diadorim cortou os cabelos com tesoura de prata, "cabelos que, no só ser, haviam de dar para baixo da cintura..." Ê claro que, no fim, a moça casa com o capitão, enredo que o autor não poderia adotar, obrigado pelo convencionalismo que prescreve, hoje, o happy-end de romance para mocinhas.

Aliás, a paixão do jagunço Riobaldo pelo moço Diadorim não se parece, no seu primitivismo, com o refinamento de romancistas europeus lavrando no lusco-fusco do homossexualismo. Antes nos recorda processo muito ao gosto do povo - de dar aparência de imoralidade a fatos comuns explorado, principalmente, nas adivinhas como a da agulha, do macarrão, dos olhos, ou de João e Maria.

Espalharam-se por todo o livro as deixas para que se descubra o sexo de Diadorim; colhemos apenas as mais características, pois coleta mais copiosa destoaria da importância do pormenor em relação ao romance.

Os traços físicos delineiam-se em pinceladas dispersas pelo livro, num puzzle cujas peças se vão ordenando na memória do leitor e atenuam, até certo ponto, o choque da revelação final. São as mãos que seguram as rédeas "tão brancamente", os braços bem feitos que mostrava ao lavar a roupa, a cintura fina, o passo curto, as "pestanas compridas, os moços olhos", "a boca melhor bonita, o nariz fino, afiladinho". Numa vereda, ele se vira para Riobaldo "com um ar quase de meninozinho, em suas miúdas feições"; e quando ambos conhecem Otacília, Riobaldo se admira de que ela não se tenha encantado por Diadorim, "sendo tão galante moço, as feições finas caprichadas".

Diadorim guarda tesoura de prata e navalha em "capanga (...) com lavores (...) bordada e historienta". Corta os cabelos de Riobaldo e emprestalhe a navalha para que se barbeie; ele próprio, apenas apara os cabelos diante do espelhinho dependurado num galho de árvore.

E há o segredo que ele fazia do próprio corpo que "era um escondido". Segredo entremostrado em vários trechos do livro: o banho de madrugada - sozinho no escuro das matas - que Riobaldo atribui a superstição do caborjudo; a fuga de Reinaldo, ferido; os desaparecimentos inexplicáveis que tanto intrigavam o companheiro; o jaleco que ele não tirava nunca, escondendo as formas, como a filha de D. Martinho.

O pudor feminil já está naquela ordem do Menino, na beira do rio: "Longe de mim, isso faz!" - Moços, manda Riobaldo tomar banho e o deixa sozinho na beira do rio. E quando desmaia, ao saber da morte de Joca Ramiro, e os companheiros tentam desapertar-lhe o colete, a vigilância ao subconsciente o faz tornar em si, "em mais vermelho o rosto, numa fúria, de pancada".

Era o guerreiro mais valente, sua coragem "nunca piscava". Entretanto, tem reações muito femininas ao longo de todo o livro. Na chegada de Joca Ramiro, "de alegria tanta, (...) parecia uma criança pequena"; e os olhos brilhavam: "tinha lágrimas vindo por acaso". No entusiasmo da vitória, andava "às quase danças". E, na excitação do julgamento de Zé Bebelo, abraça-se com Riobaldo, impulsivamente. Quando o pai morre, desmaia, soluça, tem um quase uivo de dor, foge para chorar escondido, deitado na relva. Na Guararavacã, agrada as crianças: "... pegava um por cada mão, até carregava os menorzinhos, levava para mostrar a eles os pássaros das ilhas do rio". Era Diadorim quem lavava a roupa de ambos, porque "praticava com mais jeito, mão melhor"; quando Riobaldo é ferido, Diadorim lhe amarra o braço com delicadeza e habilidade.

Diante da pedra do Araçuaí, o amor tão feminino pelo luxo desperta no guerreiro: "... e sem querer parou aberto com os lábios da boca, enquanto que os olhos e olhos remiravam a pedra-de-sa ira no covo de suas mãos". No meio dos jagunços desajeitados é o que melhor dança, "pé de salão". E quando sozinho, gostava de cantarolar, o que não fazia diante dos outros para que a voz não lhe traísse o segredo. Isentando-se das contingências mais bárbaras do cangaço, Diadorim não participa da macabra refeição de carne humana.

Em certas frases e episódios, o véu do mistério quase se esgarça inteiramente, em leves transparências: a aversão instintiva por Otacília é ciúme, revelado na cena em que ameaça apunhalar Riobaldo. Ao recusar a jóia, marca prazo para aceitâ-lo, o que seria depois da vitória contra Hermógenes; mais tarde, no Liso do Suçuarão; tentando prender o amor que Otacília lhe roubava, quase diz tudo: - "Riobaldo, o cumprir de nossa vingança vem perto... Daí, quando tudo estiver repago e refeito, um segredo, uma coisa, vou contar a você." E quando, enciumado, se refere ao casamento do amigo, a nostalgia da própria feminilidade acaba levando-o a falar, com um enternecimento de saudade, na outra mulher, nas roupas, nos adornos, no carinho de uma esposa.

E o maior mistério, a reação de Diadorim diante do amor de Riobaldo é, afinal, a chave do segredo. Nem aceitação degradante, nem repulsa ofendida: ele "era aquela estreita pessoa - não dava de transparecer o que cismava profundo, nem o que presumia".

Mas há as deixas que o proponente da adivinhação oferece. Indiretas: "Noite essa, astúcia que tive uma sonhice: Diadorim passando por debaixo de um arco-íris." De volta do Liso do Suçuarão chegam aos campos de um córrego. Ali estava o capitão-da-sala, flor tão brasileira, de colorido vermelho e amarelo. Diadorim se entusiasma. " `É o cavaleiro-da-sala'. Mas o Alaripe, perto de nós, sacudiu a cabeça. `Em minha terra, o nome dessa [ ele disse] é dona-joana...' "

Ao narrar o encontro de Diadorim e Otacília, de recíproca hostilidade instintiva, o autor revela tudo, para seu próprio divertimento; quem até agora não descobriu , não o fará mais, até que a morte conte o grande segredo. Como Riobaldo que, ao relembrar, não compreende a própria cegueira.

"Diadorim era mais do ódio do que do amor? Me lembro, lembro dele nessa hora, nesse dia, tão remarcado. Como foi que não tive um pressentimento? O senhor mesmo, o senhor pode imaginar de ver um corpo claro e virgem de moça, morto à mão, esfaqueado, tinto todo de seu sangue, e os lábios da boca descorados no branquiço, os olhos dum terminado estilo, meio abertos meio fechados? E essa moça de quem o senhor gostou, que era um destino e uma surda esperança em sua vida?! Ah, Diadorim... E tantos anos já se passaram."

 

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