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Informações retiradas do Trabalho Guimarães Rosa A língua do sertão.

Corpo de Baile
Guimarães Rosa e a linguagem literária
Euryalo Cannabrava

I

O AUTOR de Corpo de baile parece sofrer, como James Joyce, a doença do gigantismo verbal. Ele foi buscar o dialeto brabo no interior do sertão mineiro, desarticulou-o em suas partes componentes, submetendo-o a extensas manipulações lingüísticas. A frase sai pura, solta, como se viesse do fundo de sua infância livre, desembestada pelos campos gerais.

O ritmo da prosa é curto e sincopado, com paradas bruscas e espraiamentos longos como a água rolando pelo leito dos rios. O estilo é desconvencional por excelência, não admite modelos, nem imita ninguém, abeberando-se nas fontes puras da inspiração. Freqüentemente, lendo Corpo de baile, tem-se a impressão de que o autor reproduz lendas do nosso folclore, sem deformá-las em sua essência primitiva, tais como brotaram na mente popular.

Trata-se de autêntica redescoberta do sentido original das palavras, no momento em que elas foram forjadas pelo povo. Não há artifício algum nessa linguagem primeva, cujas raízes se metem pela terra dura dos campos gerais. Tudo sai como se fosse criado aqui e agora, surpreendido ao vivo, no instante preciso em que as forças irrompem do inconsciente coletivo, plasmando a expressão.

O dialeto brabo, pouco a pouco, transforma-se em saga nórdica, com tonalidade e amplificações conotativas de canto homérico. O autor associa a universalidade do regionalismo no plano estético, retirando efeitos rigorosamente inéditos da mistura do estilo poético e da prosa literária. O leitor, muitas vezes, pergunta-se a si mesmo se o autor está escrevendo prosa ou poesia, de tal maneira se entrelaçam o sentido narrativo e o lírico no desenvolvimento dos temas.

Na verdade, todas essas questões provavelmente jamais perturbaram o espírito de Guimarães Rosa, cuja técnica se concentra em explorar todos os recursos do dialeto brabo, guindado ao status de linguagem literária. O seu prodigioso tipo visual entrega-se, por outro lado, a miúdas anotações do ambiente e dos personagens que não se conduzem como bonecos, mas como gente de carne e osso. A identificação entre o autor e Miguilim, o herói da primeira novela, chega até o ponto daquele se confundir com o seu personagem, falando no tom de quem conta a história em primeira pessoa.

A razão dessa vida em comum entre o herói e o escritor provém de que ambos foram feitos do mesmo barro, experimentam as mesmas vivências e reagem sob os mesmos excitantes. Nada mais difícil do que estabelecer critérios que permitam distinguir o autor de sua obra, pois se trata da própria substância de Guimarães Rosa impregnando as páginas do Corpo de baile. Ele está presente em cada frase, expressão ou palavra, imprimindo o cunho de sua personalidade nas formas, situações ou coisas que figuram nesse livro abundante de imagens e de vida.

O protocolo de observações do escritor está cheio de nótulas sobre pormenores miúdos da vida e do mundo de seus personagens, breves comentários que põem a descoberto a engrenagem interna dessas figuras que nada têm de fictícias, por si mesmas. Ele registra com fidelidade "umas moças cheirosas, limpas, os claros risos bonitos", para, depois, anotar aspectos do ambiente, homens e animais, que se inspiram naquele realismo mágico, principal fonte das observações acumuladas pelo autor.

O realismo mágico, tônica fundamental dessa obra de aspectos multiformes, faz com que o escritor transfigure os temas da vida cotidiana em símbolos que participam da fantasia e do mito. A combinação da realidade crua com a rapsódia sertaneja empresta a Corpo de baile uma força singular dificilmente analisável. Mas o gosto pelo descritivo refreia o ímpeto da imaginação alcandorada, obrigando-a a participar dos pequenos acontecimentos e a disciplinar-se através de incursões constantes no domínio da filosofia sensorial.

Reparem como o escritor descreve a ave esbelta: "O tesoureiro era um pássaro imponente de bonito, pedrês cor-de-cinza, bem as duas penas compridas da cauda, pássaro com mais rompante do que os outros." E mais adiante: "O tatu correndo sopressado dos cachorros, fazia aquele barulhinho com o casculho dele, as chapas arrepiadas, pobrezinho - quase um assovio.

Observem esse poema em miniaturas: "Pobre dos passarinhos do campo, desassisados. O gaturamo, tão podido miúdo, azulzinho no sol, tirintintim, com brilhamentos, mel de melhor - maquinazinha de ser de bemcantar..." Vejam essa transfiguração do negro: "Mãitina era preta de um preto estúrdio, encalcado, transmanchada de mais grosso preto, um preto de boi."

A força maior do escritor, porém, está nos diálogos, não se notando mesmo a transição do narrativo para a fala entre as pessoas: "Ara, qual, qual, seo Nhô Berno Cássio, eu estou pobre como agüinha em fundo de canoa..." A solércia de Guimarães Rosa, caboclo ladino, faz com que ele evite os tropeços e percalços de nossa literatura sertanista. Não há, por isso mesmo, diferença alguma entre a linguagem do autor e a fala de seus personagens.

Daí a impressão constante de que são esses mesmos os narradores do que acontece, sem que se sinta a presença do urdidor manipulando a trama. Os nossos sertanistas em geral, como Afonso Arinos, e o prôprio Monteiro Lobato, estão impregnados da literatura dos clássicos portugueses: o resultado é que eles escrevem certo, mas os seus personagens falam errado. O preconceito de que o homem do interior fala errado retirou dos diálogos, que figuram nesses livros admiráveis sob outros aspectos, aquele feitio corrente de coisa vivida.

Guimarães Rosa, ladiníssimo, evitou essa conjuntura, exprimindo-se na língua do caboclo e explorando todos os matizes e cambiantes do dialeto brabo. Para o escritor, o sertanejo usa as palavras de acordo com as suas reações afetivas (não estarão eles certos e nós errados?), revelando, freqüentemente, senso do pitoresco e gosto apurado pelo malabarismo do jogo verbal. E, em virtude de tudo isso, no Corpo de baile há movimento e a vida pulula por todos os cantos.

O segredo do poder desse escritor talvez resida, como ficou sugerido, anteriormente, na sutil combinação do realismo mágico e da fisiologia sensorial como ingredientes básicos de sua obra literária. As figuras de Miguilim, do Dito, do Pai, do tio Terêz, de Mãitina, do Deográcias povoam a narrativa com a sua forte presença, as suas idiossincrasias e o seu feitio particular. Mas há qualquer coisa de mítico, a atmosfera carregada de païxões que cerca os personagens, emprestando-lhes o tom de símbolos lendários, de criaturas saídas diretamente do nosso folclore.

A invenção do autor sofre constantemente a repressão de seus sentidos alertados pelos estímulos do mundo exterior. A sua fantasia poética, por outro lado, associa-se ao dom da prosa escorreita, decalcada no real. Existe um teste infalível para se distinguir a prosa da poesia em relação a qualquer texto literário. Basta que os leitores formulem, para si mesmos, a seguinte pergunta: disse o autor menos do que queria dizer ou mais do que queria dizer?

No caso do escritor exprimir menos do que desejaria, conclui-se, por certo, que o que ele escreve é prosa chilra, sem conotações irresponsáveis por acréscimo. Na hipótese, porém, de que vai além do mentalmente prefigurado, não resta dúvida de que se deixou dominar pelo sortilégio lírico. Tenho a impressão de que Guimarães Rosa, no Corpo de baile, diz freqüentemente muito mais do que pretendia dizer.

II

Em Corpo de baile observa-se nitidamente a identificação entre a técnica literária e a técnica de manipulação lingüística. Construir literariamente, para Guimarães Rosa, significa submeter as palavras e sentenças do dialeto brabo a uma espécie de dissecação anatômica das suas formas e de análise fisiológica das suas funções. O escritor cria artisticamente mediante o manuseio de formas e funções idiomáticas. A narrativa do reconto decorre, por assim dizer, diretamente de experiências com o material lingüístico. É por isso que Corpo de baile revela, antes de tudo, a atitude do experimentador perante o instrumento de comunicação. As expressões são esquadrinhadas por esse incomparável analista que transforma a nossa língua em laboratório, utilizando-se das palavras e locuções como se fossem provetas ou tubos de ensaio.

Guimarães Rosa redige os seus recontos como o químico executa reações, o anatomista disseca o órgão e o fisiologista expõe o mecanismo da circulação. Existe entre ele e os nossos escritores diferença fundamental sob o ponto de vista do artesanato literário. Enquanto os outros escrevem para narrar alguma coisa, Guimarães Rosa narra alguma coisa como pretexto exclusivo para aplicar a sua técnica de manuseio lingüístico.

Os novelistas brasileiros tecem a trama de sua intriga no plano estético servindo-se da linguagem como veículo descritivo, como instrumento para exprimir o que se passa em determinado ambiente com certas figuras e personagens. O escritor mineiro, pelo contrário, põe meio, pessoas e objetos em função da linguagem. É impossível dissociar nesses recontos o artesanato literário dos seus recursos de expressão.

Observa-se, assim, em "A estória de Lélio e Lina" e em "O recado do morro", como nas outras novelas, a impossibilidade de separar a narrativa (fundo) das palavras e sentenças que a traduzem (forma). Essa idissociabilidade do fundo e da forma constitui, por assim dizer, a característica marcante da obra de Guimarães Rosa. Em "A estória de Lélio e Lina", o escritor anota que o Seo Senclér "Gostava do em-ser do vaqueirinho, do rumo de suas respostas". É evidente, para ele, que a fala de Lélio reflete a sua alma como espelho fiel.

À adequação entre fundo e forma corresponde a analogia íntima entre a linguagem e a psicologia dos personagens. O em-ser do autor, por sua vez, transfere-se de armas e bagagens para a própria estrutura do idioma de que se utiliza, coincidindo plenamente com o vinco e o feitio particular do dialeto brabo. É inegável que Guimarães Rosa, usando a fala dos sertanejos no curso de toda a narrativa, instala-se no centro dos recontos e passa a figurar como seu principal personagem.

O resultado dessa transferência é a impressão de autenticidade que permeia a obra, valorizando-a em seus mínimos pormenores, e impregnandoa daquela seiva fecunda que faz crescer a ârvore e brotar a relva nas campinas. "A estória de Lélio e Lina" é a descoberta da mulher que, exaltando a sua virilidade, faz o homem revelar-se a si mesmo. O vaqueiro oscila entre o amor da mulher-ideal encarnada na mocinha de Paracatu, cujos "olhos rebrilhavam, reproduzindo folha de faca nova", e a fêmea libidinosa Jini, "tão desconhecida, inventada, estranha cor de violeta, os olhos aviando verdes, o corpo enxuto, o avanço dos seios, os finos tornozelos, as pernas de bom cavalo".

Mas, entre as duas se interpõe o vulto de Rosalina, que representa o agasalho, a ternura e a proteção maternal. Surpreendida de costas, quando Lélio passava perto de sua casa, pareceu-lhe uma mocinha. Verificou, depois, que era "velhinha", "os cabelos alvos". Mas era "velhinha como uma flor", contravinda em gentil e singular - com um calor de dentro, a voz que pegava, o aceso rideiro dos olhos, o apanho do corpo, a vontade medida de movimentos - que a gente a queria imaginar quando moça, seu vivido.

O encanto de dona Rosalina emanava da voz macia, dos olhos mansos, de suas "estórias que eram tão verdadeiras que fugiam do retrato do viver comum". A sua fuga com Lélio no fim do reconto não lembra a aventura de dois namorados, mas sim o reencontro sentimental de mãe e filho, o apaziguamento de paixões bravias no remanso de um lar que o vaqueiro desejava com todas as forças, sem saber como construí-lo.

O que Lélio buscava na mocinha de Paracatu jamais poderia encontrar, a não ser transfigurado em ternura humana, repouso e aconchego maternal. Mas a estória de Lélio e Lina encerra uma lição duradoura: a amizade amorosa entre o vaqueiro e a velhinha permanece incontaminada, como sentimento puro em gente humilde. A viagem de ambos para os campos gerais parece libertá-los da supiscácia e maldade dos homens, incapazes de compreender a delicadeza da afeição que os ligava.

O caso de vida e morte do enxadeiro Pedro Orósio, em "O recado do morro", transcende o plano da narrativa comum, e vai num crescendo até alcançar o máximo de intensidade e dramatização no episódio final. Nada há de comum entre Lélio, o vaqueirinho simples que se integrava de corpo e alma na vida chã do meio rural, com aspirações limitadas como as de seus companheiros, e Pedrão Chãbergo, temperamento ardente e aventureiro, sedutor profissional de mocinhas inexperientes. Servindo de guiador, PéBoi, uma espécie de Hércules bronzeado pelo sol do sertão bruto, a pé e descalço, mantinha-se sempre distante de seus companheiros. Pedro Orósio amava a terra, "longa e jugosa, de montes pós montes: morros e corovocas". Ele queria "pelo menos pisar o chapadão chato, de vista descoberta, e cheirar outra vez o resseco ar forte daqueles campos, que a alma da gente não esquece nunca direito e o coração de geralista está sempre pedindo baixinho".

A galeria de tipos em "O recado do morro" lembra, pela força do grotesco e do demasiadamente humano, figuras arrancadas dos quadros de Goya. Vejam o Gorgulho, por exemplo, "um velhote grimo, esquisito, que morava dentro de uma lapa". Vivia sob o sortilégio do Morro da Garça, ouvindo seus regougos soturnos na solidão dos gerais.

E mais adiante surge o Catraz, "saco bem mal-cheio às costas e roupinha brim amarelo de paletó e calça, um camarada muito comprido, magrelo, com cara de sandeu". O apelido dele era Qualha-coco, "pobre triste diabo risonhó". E mais além, o Guegue, o bobo da fazenda, "retaco, grosso, mais para idoso, e papudo - um papo em três bolas meando emendas, um tanto de lado".

E logo em seguida o Nomidomem, tonitruando vozes desarrazoadas, mas de forte sabor bíblico. Gorgulho, Catraz e Nomidomem transmitiam o recado do morro em suas parlandas desconexas e numerosas. Enquanto isso, o guiador de seo Alguiste, naturalista estrangeiro, palmilhando o sertão duro, curioso de tudo e de todos, "fosse uma a pedrinha, até uma moita de carrapicho e o ninhol de vespos", entrega-se pouco a pouco ao monólogo interior, afastado e diferente dos outros.

Convidado para a festa de confraternização, promovida pelos seus rivais frustrados, Pedro Orósio, catrumano dos Gerais, dispõe-se a reconciliar-se com todos. De repente, porém, começa a cantar a estória do Rei, vítima dos sete traidores. A palavra "traição" destaca-se como um aviso subitâneo, recado do Morro da Garça em plena festa, no rebuliço das danças e bebidas. E Pé-Boi, o Hércules bronzeado pelo sol sertanejo, arremete contra os sete traidores, como o touro selvagem no ímpeto da investida. Marretou sem dó nem piedade os amigos falsos, desbaratando-os como ovelhas tresmalhadas pelo acuo do lobo perseguidor. Abriu, depois, as pernas de gigante, fugindo sob a calada da noite na direção dos campos gerais.

Eis a estória de Lélio, Lina e Pedro Orósio, escrita naquele estilo ácido do prosador mineiro, cáustico até a ardência, bebida forte demais para os tímidos e os excessivamente delicados. O escritor atinge nesses dois recontos talvez o ponto mais alto de sua criação literária: a variedade dos tipos, das situações, dos conflitos psicológicos reflete-se no ritmo ondulante da prosa rica de seiva e viço, cheia de vigor e frescura, colhida ao vivo nas suas fontes mais puras.

A marca autêntica da linguagem de Guimarães Rosa, porém, decorre mais da expressividade e sentido estético do que da certeza de suas origens autóctones. É por isso mesmo que parece ociosa a preocupação de distinguir a contribuição pessoal do autor das suas colheitas como garimpeiro da linguagem brasileira. O melhor é degustar, sem maiores preocupações, essa prosa robusta pelo que ela traz em si mesma, na força de seu ritmo e na sugestão numerosa do seu poder comunicativo.

 

Bibliografia na edição do trabalho Guimarães Rosa A língua do sertão.

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