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CAPITU, CULPADA OU INOCENTE?
texto do Trabalho Machado de Assis

Machado de Assis deixou a seus leitores o maior mistério de um romance brasileiro, saber se Capitu traiu ou não Bentinho. Há opiniões inconciliáveis a respeito da verdade, que o narrador parece diverti-se em expor a caprichosas refrações de pensamentos e idéias., apenas entremostrando-a.

Numa conferência literária na Bahia, em 1958, com a sua dupla autoridade de escritor e criminalista, Aloysio de Cardoso Filho, após mostrar as diferentes reações da crítica brasileira a esse romance, sutilmente conclui: "Que lhe parece, mesmo? Capitu, culpada? Inocente? A resposta de Machado de Assis vem discreta e amena, sem surpreender, nem decepcionar: ‘Talvez culpada. Quem sabe se inocente?’"

É perfeitamente compreensível essa incerteza, mas que espécie de verdade espera o leitor encontrar, acaso numa obra de ficção? A verdade da vida é uma, e a do romance outra, e, neste, o que deve prevalecer é a imaginação do autor sem prejuízo da verossimilhança.

No Dom Casmurro, onde o subjetivismo atinge um clímax de rara intensidade, certo de que "as contradições são deste mundo", o pseudo-autor não divisa com firmeza nem confiança a realidade, que todos têm por única. Freqüentemente, o real parece deixá-lo antônito. Bracejando com as metáforas em um revolto mar de incertezas, significativamente ele chama a "terra da verdade" de má terra e não admira que, no auge da afetividade representada pela hipérbole em suas formas mais descabeladas, esteja a se justificar perante o leitor:

"Meses depois fui para o seminário de S. José. Se eu pudesse contar as lágrimas que chorei na véspera e na manhã, somaria mais que todas as vertidas desde Adão e Eva. Há nisso alguma exageração; mas é bom ser enfático, uma vez ou outra, para compensar este escrúpulo de exatidão que me aflige. Entretanto, se eu me ativer só a lembrança da sensação, não fico longe da verdade; aos quinze anos, tudo é infinito." (Cap. L.)

O narrador de Dom Casmurro tenta conciliar o escrúpulo de exatidão, que se atribui mas para embaraçar o leitor para embaraçar o leitor, com o delírio de suas fantasias. O contraste proveniente dessa atitude mental, com extraordinários efeitos sobre o estilo, revela uma ambigüidade que se transmite à estrutura psicológica da narrativa, cuja a essência enfim é a dissimulação.

Em alguns momentos da narrativa, Bentinho queixa-se da memória. Vemos que contava menos com ela do que com a imaginação. Nesta ele encontrava estímulo para reconstruir os tempos felizes de sua adolescência.

Note também os tateios da personagem para dizer o que viu ou ouviu, em certas ocasiões, quando não prefere as reticências, arrimado, vacilantemente, às formas condicionais de que sempre se socorre o espectador pouco seguro de si mesmo. Veja este exemplo: "Creio antes... sim... sim, creio isto. Creio que prima Justina achou no espetáculo das sensações alheias uma ressurreição vaga das própria." (Cap. XXII.)

É inerente à língua oral esse modo vacilante de explicar impressões ou sensações momentâneas que, com o correr do tempo, se tornam inapreensíveis, mas as incertezas e dubiedades de Bentinho eram particularmente críticas na altura em que ele tentava descrever o único flagrante individual, às suas vistas, da traição que atribui a Capitu. A cena se passa na câmara ardente, pouco antes do encerramento do féretro de Escobar, e o narrador descreve:

"Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral (...) Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã." (Cap. CXXIII.)

Note-se, duas vezes o verbo: parecer é introduzido nessa descrição do rápido flagrante da suprema crise de ciúmes de Bentinho, acrescidos da imagem dos olhos de Capitu naquele momento: "grandes e abertos como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar o nadador da manhã."

Certo é que o escrúpulo de exatidão em Bentinho, na cena da câmara ardente de seu maior amigo, entra em conflito com a realidade pura e simples. E, ainda às apalpadelas, a personagem vacila sobre o que se passará na ocasião em que pronunciou o seu discurso ao pé do túmulo de Escobar: "....a voz parecia-me entrar em vez de sair, as mãos tremiam-me." (...) "Um homem que me pareceu jornalista, pediu-me licença para levar o manuscrito e imprimi-lo." (Cap. CXXIV). Ele mesmo duvida da natureza de seus próprios sentimentos, naquela ocasião e indaga: "Eram as dúvidas que me afligiam ou a necessidade de afligir Capitu com a minha grande demora? Ponhamos que eram as duas causas." (Cap. CXXVI.)

Em suma, a tragédia psicológica de Bentinho estava vinculada a uma interpretação tendenciosa de todas as aparências que surgiram no campo de sua visão suspeitosa, e a semelhança do filho com Escobar era uma delas. Já homem feito, Ezequiel lhe faz lembrar o "outro" até na voz, e, não obstante essa impressão, nutrida por uma velha e crudelíssima dúvida, acreditava que: "Se fosse vivo José Dias, acharia nele a minha própria pessoa." (Cap. CXLV.) Naturalmente, Bentinho duvidaria também do agregado se, em tal altura, ele acha-se que Ezequiel era a cara do pai... E é óbvio que havia de flutuar sempre em um nunca acabar de dúvidas, "duvidas sobre duvidas", como no capítulo deste título. Isso o impediu, em todas as circunstâncias, de fixar a realidade com a exatidão que o preocupava e desse estado de espírito o romancista pode extrair o melhor efeito psicológico e estilístico.

É certo que o filho de Capitu era de Escobar, e não de Bentinho? Este é quem o crê, embora apoiado em indícios vagos, sem o vigor de uma convicção absoluta. O crime de adultério, se houve, é daqueles a que falta a evidência de uma prova insofismável, cercando-se antes de incertezas, que criam dúvidas inestinguíveis. A versão dos fatos, relacionados com as suas suspeitas, quem a dá é o próprio marido, selecionado-os de acordo com as tendências confessadamente arbitrárias de sua imaginação. Onde está a verdade? Bentinho encontra-a na semelhança física do filho de Escobar, apegando-se a um reparo casual de Capitu quando ela chama sua atenção para o vezo que tinha o filho de imitar os outros, e acrescenta: "já lhe achei até um jeito dos pés de Escobar e dos olhos..." Isto foi suficiente para que, ciumento nato, Bentinho se convencesse de que, se o filho se parecia em algo com Escobar, este é que era seu pai, e não ele. No correr da narração, o protagonista insinua que outras pessoas do círculo da família teriam a mesma opinião mas teme ouvir algo a respeito. Assim, quando conta que sua mãe já não fazia as mesmas graças com Ezequiel, torna implícito que D. Glória desconfiava da legitimidade do neto. Acreditava também que a José Dias não escapara a semelhança de Ezequiel com Escobar, donde talvez aquela sua frase tirada da bíblia: "Filho do Homem", que Capitu rebateu em quente, mas habituado às manhas do agregado, estava certo de que José Dias acharia no rapaz a sua própria pessoa. Habilmente, afastou de Ezequiel a idéia de fazer uma visita a prima Justina, então às portas da morte, receando que um simples olhar da viúva deixasse transparecer aquilo que ele guardava consigo mesmo, o segredo da frustração conjugal. É compreensível que, em tais circunstâncias, haja escrúpulos por parte, não só de estranhos mas também de parentes, sobretudo quando o marido enganado ou supostamente enganado prefere torturar-se entretendo consigo mesmo a dúvida cruel sobre a paternidade de seu próprio filho. Este era precisamente o caso de Bentinho mas que, não obstante, já contagiou da mesma dúvida a todos os que acompanhando sua narração, a têm como um depoimento irrefragável.

A semelhança físicas de pessoas que não têm parentesco entre si é um fenômeno conhecido, existindo coincidências a esse respeito que são de estarrecer, como as dos sósias. Há, efetivamente, parecenças impressionantes e que são apenas obra do acaso, o eterno pai de todas as surpresas e estupefações. Mas há também o fenômeno correlato do subjetivismo de certas impressões visuais, que se formam por um ditame incoercível de simpatia.

O protagonista do Dom Casmurro é um imaginativo em que o subjetivismo supera freqüentemente a visão direta da realidade propriamente dita. E um flagrante muito expressivo dessa tendência é que Gurgel, voltando-se para o local da sala onde havia um retrato de moça, perguntou a Bentinho se Capitu era parecida com o retrato . a reação do adolescente revela sua índole evasiva de homem metido consigo mesmo, já casmurro, portanto:

"Um dos costumes da minha vida foi sempre concordar com a opinião provável do meu interlocutor, desde que a matéria não me agrava, aborrece ou impõe. Antes de examinar se efetivamente Capitu era parecida com o retrato, fui respondendo que sim. Então ele disse que era o retrato da mulher dele, e que as pessoas que a conheceram diziam a mesma coisa. Também achava que as feições eram semelhantes, a testa principalmente e os olhos" (Cap. LXXXIII.)

Contudo desse episódio, Bentinho só guardava de cor as palavras com que Gurgel acentuava o fenômeno positivando pelo retrato, dizendo-lhe: "Na vida há dessas semelhanças assim esquisitas ."

Quando o filho estava em seus cinco anos, sentiu Bentinho o primeiro estalo da desconfiança ante suas imitações de outras pessoas e o jeito dos olhos e dos pés de Escobar que lhe achava Capitu. Esquecido de que, em menino, era dado também a arremedar certas pessoas, debate-se a seguir em "dúvidas sobre dúvidas", principalmente com os gestos de Ezequiel imitando Escobar. Nessa altura, o filho de Capitu e a filha de Sancha já se iam parecendo um com o outro, mas Escobar faz notar que as crianças que se freqüentam muito acabam perdendo o interesse entre si. E, tal como fizera diante do retrato da mulher de Gurgel, Bentinho concordou de cabeça, sem reparar direito, o que era um modo de ficar com a sua própria imaginação...

À morte de Escobar, em presença do cadáver do amigo, teve bentinho a impressão de que Capitu revelara sua culpa no derradeiro olhar lançado sobre o morto, mas a essa desconfiança sobreveio um período de tranqüilidade ou conformidade tácita entre marido e mulher. Esta, porém, algum tempo depois, reabriu-a, sem o querer, perguntando a Bentinho se ele ainda não havia reparado que Ezequiel tinha nos olhos uma expressão esquisita que ela viu somente em um amigo do pai de Escobar. Deste momento para a separação do casal foi por assim dizer um passo. Quando Bentinho insiste em dizer que Ezequiel não era seu filho, Capitu defende-se energicamente mas aceita a separação, admitindo que a "casualidade" da semelhança era o responsável. Por seu lado, Bentinho aferra-se à semelhança, que não tinha por casual, olhando simultaneamente em presença de Capitu, para o filho e para a mais recente fotografia do amigo extinto, e conclui, desalentado: "Este era aquele; havia por força alguma fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno Ezequiel." Quando o filho, já homem feito, vai procurá-lo na casa que reproduzia a de Mata-Cavalos, Bentinho teve a impressão de estar vendo "o próprio, o exato, o verdadeiro Escobar."

Seria tamanha a semelhança ou se limitava à expressão dos olhos que Capitu achara parecida com a de um amigo do pai e do defunto Escobar? A história quem conta é Bentinho e percebe-se que com grande exagero em suas ilações. E neste ponto chega-se à base do problema sinuosamente desenvolvido pela narrativa. A semelhança, por esse ou por aquele aspecto, podia ser mera casualidade e o retrato da mulher de Gurgel era uma evidência do fenômeno.

(Baseado no Livro "O enigma de Capitu")

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