Rua do Sol

br.geocities.com/esquinadaliteratura

Início > Autores > Ivaldo Tenório de Vasconcelos >
Página relacionada: Miguel de Cervantes


O Cavaleiro da Triste Figura
de: Ivaldo T. de Vasconcelos

Num lugar da Mancha, de cujo nome não me quero lembrar, vivia, não há muito tempo, um desses fidalgos que usam lança em hastilheira, adarga antiga, cavalo magro e galgo corredor.

Quem não conhece as primeiras palavras do Dom Quixote, de Cervantes? Assim o filho maior de Alcalá de Henares inicia sua obra máxima para depois de terminada, rodar a velha Espanha do séc. XVII com o intuito de publicá-la, tarefa árdua e difícil, pois nenhum editor acreditava nele; conseguimos imaginá-lo com os seus volumosos manuscritos batendo à porta de editores que não lhe davam nenhum crédito, mas Cervantes penou até para encontrar alguém que prefaciasse sua obra, imaginamos então como foi difícil achar alguém que a publicasse.

Talvez seja O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha a melhor obra-prima da literatura universal. Que faz esta obra cheia de falhas, enganos grosseiros, absurdos erros - há muitas partes desta obra em que seu autor comete alguns "lapsos", o mais conhecido é quando Cervantes faz o escudeiro Sancho Pança perder o seu burrico e mais adiante continuar fazendo referência ao escudeiro no seu burro - ser considerada uma das melhores obras-primas da literatura mundial? O seu estilo "quase nulo"? O seu tom irônico? Ou a eterna luta entre o sonho e a realidade que tanto preocupa e encanta o homem? Talvez até nenhuma dessas pode convencer um leitor do contra, que muito provavelmente não é o leitor Machado de Assis que o lia e relia, anotando e comentando-o com os intelectuais da época, o autor de Brás Cubas tinha-o como a obra máxima da arte da escrita.

Foi bem aceito o Dom Quixote e como este influenciou tantos escritores e obras de diferentes épocas e países! Para citar alguns, basta lembrar Madame Bovary, de Gustave Flaubert, considerada um Dom Quixote de saias, não esqueçamos nós da importância daquele obra que iniciou o Realismo na França em 1857. Na Rússia de Dostoievski encontramos deste mesmo autor O Idiota, em que há muito da natureza quixotesca. Esta influência o próprio Dostoievski confessa numa correspondência. A obra-prima do inglês Charles Dickens, As aventuras do Sr. Pickwick, nada mais é que um outro Dom Quixote e não saindo da Inglaterra vemos o próprio William Shakespeare escrevendo uma comédia desconhecida com pitadas de Dom Quixote. No Brasil, particular atenção tem José de Alencar, Aluísio de Azevedo, Coelho Neto e o já citado Machado de Assis pela obra cervantina e mais recentemente, no Pré-Modernismo, Lima Barreto com Triste fim de Policarpo Quaresma e na Segunda Fase do Modernismo, José Lins do Rego reencarna o Cavaleiro da Triste Figura na personagem Capitão Vitorino, em Fogo Morto.

Esta obra teve duas partes: uma em 1605 e outra em 1615, um ano antes de seu autor falecer. A segunda parte só veio à tona por ter surgido uma edição falsa de um Dom Quixote fatalmente falso. Esta edição falsa, surgida com o pseudônimo Avellaneda, perturbou assaz Cervantes. Esse fato também irrita incontrolavelmente Cervantes e fá-lo publicar a sua verdadeira continuação, desta vez fazendo questão de deixar o seu herói morto para que ninguém possa continuar a sua história.

Após o nosso Cavaleiro ler muitos livros de cavalaria andante, enlouquece e após a loucura vem a necessidade de também imitar os cavaleiros andantes. Veste uma armadura velha, que pertenceu aos seus ancestrais, convida o seu vizinho Sancho Pança, em troca de um governo de uma ilha, para ser o seu fiel escudeiro, monta o seu rocim fraco, transforma-se no Dom Quixote e vão cavaleiro, escudeiro, cavalo e burrico em busca de aventuras, salvando e protegendo fracos e oprimidos, donzelas em perigo e tantos outros injustiçados. Mas o mundo e as pessoas não aceitam o Dom Quixote, eles zombam e ridicularizam-no. Dom Quixote é um louco, mas em muitos momentos ele é o sábio, o filósofo, o poeta de um mundo que o reprime, que zomba dele, que o humilha, que não reconhece a sua bondade infinita e o seu desejo extraordinário e incansável de salvar o mundo.

Um amigo seu, disfarçado de cavaleiro andante, propõe-lhe um dueto, neste dueto quem for o vencido deverá obedecer ao que o vencedor propor. Dom Quixote perde e agora deverá obedecer ao cavaleiro vencedor, este ordena-o a deixar a vida da cavalaria andante e exige que volte para casa, o nosso herói, vencido pela própria palavra, obedece ao cavaleiro, vai para casa. No caminho já começa a idealizar uma vida amena e tranqüila no campo, onde ele e o seu amigo Sancho viveriam à moda de pastores ao lado de suas "dulcinéias". Mas felizmente recupera-se da sanidade e poucos dias depois falece.

As novas idéias que povoavam a cabeça de Dom Quixote na volta para casa parecem-me precursoras de um estilo de época inovador que só surgiria em 1690, na Itália: o Arcadismo, já que essa estética era voltada para a vida simples em contato com a natureza, seria a retomada do fugere urbem e da aurea mediocritas.

Há muitas passagens suas que devem ser revisitadas: a primeira saída e os seus infortúnios, a conversa de D. Quixote com o escudeiro Sancho Pança convencendo-o a segui-lo em suas viagens, a confusão que o cavaleiro fez com o rebanho de ovelhas, seu ato de bravura diante dos leões, suas declarações à amada Dulcinéia, contudo uma das melhores é o seu encontro com os moinhos de vento, confundidos com gigantes, que aqui descrevo alguns trechos integralmente:

- A aventura nos vai guiando melhor as coisas do que pudéramos desejar; ali estão, amigo Sancho Pança, trinta desaforados gigantes, ou pouco mais, a quem penso combater e tirar-lhes, a todos, as vidas, e com cujos despojos começaremos a enriquecer; será boa guerra, pois é grande serviço prestado a Deus o de extirpar tão má semente da face da terra.

- Que gigantes? - inquiriu Sancho Pança.

- Aqueles que vês ali, com grandes braços - respondeu-lhe o amo; - alguns há que os têm de quase duas léguas.

Com certeza não eram gigantes que o Cavaleiro da Triste Figura mostrava ao seu fiel escudeiro Sancho Pança, eram moinhos de ventos!

A princípio Cervantes teria a intenção de apenas satirizar os livros de cavalaria, mas foi muito além com a eterna luta do homem vivendo entre o sonho e a realidade, assim a obra se transforma num verdadeiro sentido universal da vida, numa alegoria, numa narrativa encantadora e sublime, que proporciona momentos de tristezas e alegrias.

Dom Quixote é um desses livros que devem ser lidos e relidos, escolhidos para serem colocados à cabeceira, pois muito freqüentemente ficamos ansiosos para retomar a sua leitura. Hoje, depois da Bíblia, é o livro mais lido e traduzido no mundo. Vale*.

__________________
* Expressão latina que significa Adeus. Esta mesma saudação Cervantes pôs no final do prólogo do seu Dom Quixote.

Topo

 


Início | Autores | Escolas Literárias
1998-2007 Esquina da Literatura - InfoEsquina

Hosted by www.Geocities.ws

1