Rua do Sol

br.geocities.com/esquinadaliteratura

Início > Autores > Ester Lindoso >
Página relacionada: Graciliano Ramos


O nordestino em Vidas Secas
de: Ester Lindoso

1. INTRODUÇÃO

O que é a cultura? Qual a sua função? Onde ela começa, o que a origina? Talvez cultura seja um dos conceitos mais complicados de se definir. Diz respeito ao abstrato, à produção intelectual do homem comunitário, bem como do individual, suas crenças ou descrenças, mas é também tão vinculada ao real, ao ordinário, como os costumes, as tradições, as formas de culto religioso etc. Pode-se dizer que ela é resultado das relações estabelecidas por esses homens, e assim, basta viver para se "produzir" cultura, mesmo que não se queira. Mas ao mesmo tempo a cultura pode e é criada intencionalmente, estimulada, incentivada. Ela se expressa com letras, tintas ou notas musicais, é contada, é perpetuada, é renovada, e, se isso se contradiz, então é bem característico da cultura, que é ao mesmo tempo tão invisível e irreal e tão corriqueira.

A cultura pode assumir características as mais variadas possíveis, basta visitar alguns outros países para se notar isso. Mudam as crenças, os hábitos, o conhecimento, a culinária, os valores. Ela caracteriza o povo que a vive, posto que ele próprio a constrói.

Mas existe algo mais com relação à cultura, e isso é que a torna tão complexa: os produtos culturais, têm um importantíssimo papel na reconstrução da mesma cultura da qual se originam. Ao mesmo tempo ela inspira e é recriada, reinventada. Deixe-me tornar isso mais claro. Qual é a idéia que o brasileiro tem de si mesmo? Uma característica muito falada de nosso povo é o calor presente nos relacionamentos. Mas desde quando nós nos vemos assim? Desde que alguém, acrescentando tijolos a essa construção que se chama cultura brasileira, afirmou isso, escreveu isso, cantou isso, pintou isso, acabando por transformar essa característica em mais um prédio desse conjunto arquitetônico. A cultura dá origem a músicas, livros, pinturas, esculturas, provérbios, hábitos, que são muito mais que produtos dessa cultura, são agentes transformadores dessa mesma cultura.

Na formação da cultura brasileira muitos fatores influenciaram: os nativos, o descobrimento e posterior colonização pelos portugueses, a vinda dos negros africanos, e de tantos outros estrangeiros, - que concentraram-se muitas vezes em regiões diferentes, mas que se misturaram e formaram o povo brasileiro - a geografia, o clima e tantos outros fatores. Mas ao lado dos fatores que influenciaram e ainda influenciam a cultura, está a própria cultura, que, através de seus produtos se reconstrói.

E o que me proponho nesse breve trabalho é justamente, atendo-me a um desses produtos culturais, analisar como uma peça desse quebra-cabeça que é a cultura brasileira - o nordestino - foi vista por um grande escritor brasileiro, a saber, Graciliano Ramos, em Vidas Secas.

Ao escrever Vidas Secas, Graciliano Ramos contribuiu para a formação da imagem do nordestino habitante dos sertões secos que povoa a imaginação dos brasileiros. Esta obra literária já foi transformada em filme, o que confirma ainda mais sua importância cultural.

 

2. DESENVOLVIMENTO

O livro em questão trata-se de um romance regionalista que conta a estória de Fabiano, um vaqueiro que inicia e termina a narrativa viajando, fugindo da seca que assola o sertão nordestino. Sua família o acompanha, mas assim como as descrições dos ambientes e de outros personagens, eles só estão presentes em função do personagem principal, que é quem tem os sentimentos, quem vê, quem pensa, e quem interpreta o mundo ao seu redor.

Escritor conciso é Graciliano Ramos, mas em sua linguagem crua e dura, ele não poupa verbos e adjetivos que nivelam Fabiano a um bicho. A própria situação em que ele e sua família se encontram identifica-os com os animais: a vida deles nada mais é do que um esforço pela sobrevivência. Fabiano não se sente bem no meio de outros homens, ele próprio não se considera muito um homem:

 

"Fabiano ia satisfeito. Sim senhor, arrumara-se. Chegara naquele estado, com a família morrendo de fome, comendo raízes. Caíra no fim do pátio, debaixo de um juazeiro, depois tomara conta da casa deserta. Ele, a mulher e os filhos tinham-se habituado à camarinha escura, pareciam ratos - e a lembrança dos sofrimentos passados esmorecera.

Pisou com firmeza no chão gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou as unhas sujas. Tirou do aió um pedaço de fumo, picou-o, fez um cigarro com palha de milho, acendeu-o ao binga, pôs-se a fumar regalado.

- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.

Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era um homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.

Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando:

- Você é um bicho, Fabiano.

Isso para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades.

(RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 72 ed. Rio, São Paulo: Record. 1997)

 

O homem nordestino proseado em Vidas Secas pode ser facilmente associado à figura do "típico nordestino" presente no imaginário brasileiro. Ele é feio, fraco, instintivo. Sua única força é o fato de sobreviver em meio tão adverso. Ele não gosta de estar no meio dos outros homens, e as experiências vividas com os outros que não a sua própria família sempre são frustrantes. Quando conversa com a esposa, suas vozes são gruturais, suas falas são grunhidos. Fabiano apieda-se do papagaio que morre para servir de alimento à família faminta e é perseguido pela culpa da morte da cachorra Baleia, a quem matou com tiro de espingarda porque estava com hidrofobia, mas sente vontade de matar o filho que tombou de fome no meio da peregrinação atrasando a viagem. O episódio da morte da cachorra o fizera sentir desumano, assim como o fato de ter deixado o soldado amarelo escapar com vida quando teve a oportunidade de matá-lo, o faz sentir em uma posição qualquer abaixo da de homem.

 

***

 

Na análise dessa construção do nordestino em Vidas Secas importa verificar as circunstâncias em que Graciliano Ramos concebe esse livro. Sua primeira edição data da década de 30, período em que o Brasil vivia grandes transformações econômicas e políticas. No primeiro plano, o país, que sofria com a crise cafeeira, sofreu um outro golpe com a quebra da Bolsa de Nova Iorque abalando ainda mais a já fragilizada economia brasileira. No plano político, Getúlio Vargas tomara a cargo do presidente eleito, Júlio Prestes, através do golpe conhecido como Revolução de 30, que iniciou uma era de forte repressão.

Num país em que expressões de insatisfação popular eclodiam por toda parte, como resposta de um povo que sofria por causa da crise econômica e que se decepcionou com o governo golpista a que antes apoiava, a literatura estréia um "novo estilo ficcional, notadamente mais adulto, mais amadurecido, mais moderno, que se marcaria pela rudeza, por uma linguagem mais brasileira, por um enfoque direto dos fatos..." (CEREJA, William Roberto, MAGALHÃES, Thereza Cochar. Literatura Brasileira. São Paulo: Atual, 1995.) Destaca-se no romance de 30 (designação dada a esse período da literatura brasileira) o romance nordestino que tem como maior representante, o alagoano Graciliano Ramos.

Pessoalmente, Graciliano também passa por momentos difíceis. Em 36, ele é preso sob a acusação de ser comunista, numa época em que o partido comunista havia sido feito ilegal por Vargas. No ano seguinte a sua libertação, que aconteceu em janeiro de 37, depois de onze meses de cárcere, Vidas Secas tem sua primeira edição.

Esse é o ambiente que circunda a produção de Graciliano Ramos. O tom áspero e a visão crítica não é característica unicamente sua, mas está presente em contemporâneos seus, como o paraibano José Américo de Almeida e a cearense Rachel de Queiroz.

A hostilidade do meio como fator determinante da brutalidade de Fabiano, talvez seja até um reflexo da condição do autor, que se transforma e é condicionado pela adversidade de seu país, que o reprime e o humilha. Leia-se como meio não só o meio ambiente, mas também o meio social, pois os adversários de Fabiano são a seca, o patrão e o soldado amarelo, que representa a ditadura varguista.

 

3. CONCLUSÃO

Com aspereza e criticidade, Graciliano Ramos dá contribuição importantíssima à cultura brasileira no que diz respeito à construção da imagem do nordestino. Filho do Nordeste, conhecedor das mazelas e do cenário da seca, ele descreve com facilidade o ambiente físico e social que cerca seu personagem, usando-se da linguagem sertaneja com palavras que não fazem parte do vocabulário da maioria dos brasileiros, acentuando a estranheza de Fabiano ao resto do país.

Para Graciliano o nordestino é o bicho-homem, que incomoda o governo e é atacado por ele (quando é preso pelo soldado amarelo), mas que é indefeso diante desse mesmo governo e incapaz de fazer alguma coisa contra ele (o reencontro de Fabiano com o soldado amarelo e sua reação "pacífica"). É o bicho-homem que entende que é injustiçado pelo patrão, mas se vê acuado pela necessidade instintiva de sobrevivência. É o bicho-homem que não é diferente em nada dos outros homens, mas que se sente como tal, e não se sente à vontade na presença deles. Na verdade é essa sua resignação e apatia que o faz tão animal. Se ele ao menos reagisse...

Topo

 


Início | Autores | Escolas Literárias
1998-2007 Esquina da Literatura - InfoEsquina

Hosted by www.Geocities.ws

1