Rua do Sol

br.geocities.com/esquinadaliteratura

Início > Autores > Moreira Campos >
Página relacionada: Rachel de Queiroz


Prefácio
do livro Dizem que os Cães Vêem Coisas

É. A releitura destes contos conhecidos, tal como a leitura dos contos novos, cada vez mais me confirma naquela convicção tranqüila: eis um mestre. E a gente fica a meditar no que caracteriza a excelência do mestre e poderia dar mil definições até chegar à sumária evidência: acima de tudo ver o Dom.

Como o grande cantor tem voz, como o grande pintor pinta, assim o mestre escreve. Por Dom vindo lá de cima, por iluminação espontânea, porque nasceu podendo. Mas a par disso, a par dessa vocação de nascimento, quanto trabalho, quanta ourivesaria, quanto lapidar, transpor, alterar, substituir, riscar, ficar longamente com aquela palavra na ponta dos dedos - e a palavra não cabe no engaste e terá que ser substituída - ou alterada, ou reinventada; se lhe alterando o sentido primitivo, dando-lhe emprego novo e inesperado, quem sabe?

É isso o mestre. A segurança e a angústia, o saber e o desconfiar desse saber, o amor ao texto e o desespero por o querer perfeito; e o que se corta e o que se implanta, o que se remenda, disfarçando as costuras...

José Maria Moreira Campos é um desses escritores que pertencem à magra família dos Machado de Assis, dos Graciliano, dos Torga. Sem acrobacias e nem sensacionalismos semânticos, sem recursos às pretensões de quem tenta criar uma língua nova. Para ele o mármore clássico, para ele a limpidez, a fluidez cristalina da frase; o emprego, às vezes inesperado, de uma locução audaciosa, mas sempre de puríssima linhagem - poderia Ter nascido sob a pena de Vieira ou de Garrett; nasceu sob a pena de Moreira Campos, que tem a autoridade da estirpe, do saber e do talento.

Mestre na arte do conto (sua leitora contumaz e admiradora fervorosa, acho que, por culpa dele, jamais ousei tentar esse gênero dificílimo, sabendo da certeza que nunca lhe chegaria perto) mestre, pois, na arte do conto, Moreira Campos sempre nos surpreende com um enredo que se conta em algumas páginas, mas tão denso, tão cortante eu diria, capaz de resumir toda uma situação dramática em duas frases acerbas; todo um esplendor de paisagem em três linhas; e faz você se abismar num pôr-do-sol, num pulsar de maré, no risco do vôo de um pássaro.

Às vezes o texto de Moreira Campos me lembra as xilogravuras de Osvaldo Goeldi, outro mestre tão grande e tão similarmente desdenhoso dos brilhos mundanos da glória oficial.

Moreira Campos, com sua prosa perfeita, bela, que não imita ninguém, não fez escola; é que não pode ser imitado na singularidade de sua estilística. Não sei de nenhum prosador vivo, na nossa língua, que o iguale; e nem mesmo que o imite.

É pena que o nosso grande contista não tenha querido arriscar-se ao romance. A sua prosa bela e densa, a sua capacidade de condensar situações e definir personagens, talvez lhe dessem condições de brilhar no romance como brilha no conto - e nos dariam a nós, seus leitores, a oportunidade de seguir acompanhando aquele mundo de gente ríspida, às vezes tão seca de alma que pode chegar à crueldade. Aqueles funcionários de vida mesquinha, os facínoras sem façanhas, mais fracassados, por isso mesmo, do que os grandes ambiciosos falidos, mas que pelo menos sonharam seus sonhos!

Cada conto desses, ao encerrar-se, nos deixa uma indefinida impressão de saudade. De um corte ou de um limite que se poderia prolongar por muitas páginas. Não que falte nada ao texto, sempre tão brilhante quanto conciso. Mas é que a gente não quer deixar para trás aquele mundo que poderia ser banal, se não fosse transfigurado pelos poderes de um criador seguro do que faz, implacável com sua criação; e cuja escondida ternura só se trai por momentos com medo de comover - e por isso mesmo nos comovendo e fascinado definitivamente.

Rachel de Queiroz
Não-me-Deixes, Quixadá, Ceará, 18 de setembro de 1993.

in: CAMPOS, Moreira. Dizem que os cães vêem coisas. 2a. edição. São Paulo. Maltese, 1993.

Topo

 


Início | Autores | Escolas Literárias
1998-2007 Esquina da Literatura - InfoEsquina

Hosted by www.Geocities.ws

1