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Os homens que contavam
Ensaio de: Anaína Clara de Melo

No presente ensaio, analisaremos o conto "Os homens que contavam", parte integrante do livro Cadeiras Proibidas, de Ignácio de Loyola Brandão. A escolha de tal conto se deve ao fato de ele ser um texto estruturalmente simples, mas dotado de forte criticidade para com o período militar. Mas, antes de iniciarmos a nossa análise, façamos um resumo da narrativa.

O conto inicia-se em uma praça, com um personagem "(...)contando os dedos para saber se tinha cinco ou seis (...)". À sua frente, havia um outro indivíduo contando o número de cabelos que tinha. Daí por diante, estes dois personagens dialogam a respeito da nova lei de recenseamento total: citam outras funções atribuídas a amigos seus; narram as dificuldades enfrentadas para apresentar a contagem ao Estado; e terminam a conversa quando um deles questiona sobre a finalidade do recenseamento: "- Dizem que é necessário. Estão fazendo o levantamento total do país. - Para quê? - Não me pergunte nada. O melhor, hoje, é a gente saber pouco."

Como podemos perceber, o próprio enredo é bem simples: se passa em alguns minutos, em uma praça; resume-se à história de uma sociedade cujo trabalho é contar o que for atribuído a ela; apresenta, basicamente, dois personagens; é narrada em terceira pessoa; e apresenta um vocabulário de fácil acesso ao leitor mais desatento. Mas, mesmo fazendo uso de poucos e simples meios narrativos, Brandão consegue obter o máximo de efeitos.

No que condiz ao conteúdo do conto, analisaremos, agora, a alienação e a coisificação da sociedade, bem como o totalitarismo e a burocratização do Estado.

No conto em questão, verificamos a tentativa de demonstrar a alienação da sociedade - entenda alienação como "(...) um conceito que se refere simultaneamente a um estado psicológico encontrado em indivíduos e, mais importante, a um estado social que o gera e o promove" (Johnson, 1997:6). Isto se dá a partir do momento em que "o trabalho do homem (...) [é processado] de modo a produzir coisas que imediatamente são separadas dos interesses e do alcance de quem as produziu (...)" (Ferreira, 1986:69).

Em "Os homens que contavam", o trabalho de contar coisas extremamente fúteis, a saber, bancos, folhas de árvores, postes, folhas de grama, flores, lâmpadas, pode exemplificar a alienação a que nos referimos, por comprovar a quebra do "(...) processo humano complexo, que se inicia com idéias sobre o que fazer e como fazer [e desemboca na] (...) unidade de mente e corpo, à medida que a idéia adquire forma no processo de execução" (1997:6).

Além disto, o fato de o trabalhador do texto achar "uma bobagem" o trabalho que ele faz também é uma característica da alienação. Houve, neste caso, uma ruptura na relação entre os "(...) operários e o produto de seu trabalho, já que eles não exercem controle sobre o que é feito com o mesmo" (ibid.:6).

Notamos, também, a coisificação do ser humano quando é feita a relação entre o vocábulo mentir e o comércio, como no seguinte fragmento: "(...) não podiam confiar em alguém condenado por mentira ao comércio (...)" (p. 30). Ora, o vocábulo mentir é utilizado de pessoa para pessoa - João mentiu para Maria -, e não de alguém para um objeto. O comércio está equivalendo, aqui, a uma pessoa. Temos, portanto, uma equivalência entre um objeto, representado pelo comércio, e o homem.

Observamos, ainda, a coisificação do homem a partir do momento em que as relações entre os indivíduos são rompidas. No trecho "Estava contando os dedos (...) quando viu, no banco à sua frente, um homem contando os cabelos" (p. 29), ou em "(...) estou perdendo um tempo desgraçado (...)[;] elas funcionam um dia da semana, durante trinta e sete segundos" (p. 30), as pessoas parecem estar isoladas e desligadas das demais, não podendo, de forma alguma, perder tempo. Isto nos faz lembrar máquinas, que devem oferecer um retorno imediato e constante, além de não perderem tempo com conversas, uma vez que estas são mera perda de tempo.

Outra característica encontrada em "Os homens que contavam" se refere ao totalitarismo. Em segmentos como "Preciso começar tudo de novo" (p. 29), "A mim coube apenas contar os dedos" (p. 29), "Ele precisa contar quantas bocas tem" (p. 29), "Eles são muito rígidos" (p. 29), "O meu cabelo estava caindo. (...) Saí da fila e fui fazer tratamento." (p. 30), verificamos a existência deste sistema em conseqüência de haver um "(...) controle completo da vida interior e exterior do indivíduo" (1997:25). Segundo H. Arendt, há, neste caso, não só a destruição das "(...) capacidades políticas do homem, isolando-o em relação à vida pública (...) [, como também a destruição dos] próprios grupos e instituições que formam o tecido das relações privadas do homem, tornando-o estranho assim ao mundo e privando-o até de seu próprio eu" (1993:1248).

A própria criação da Lei de Recenseamento Total demonstra a personalização do poder, característica do totalitarismo. Personalização do poder porque esta nos parece ser uma lei outorgada de acordo com a vontade, com os sentimentos , do ditador. Dizemos isto, pois, a partir do momento em que os fatos são decididos por pessoas que se ajustam ao modelo de uma personalidade autoritária, ou seja, que se impõe à sociedade pela força, a probabilidade de surgirem decisões banais é bastante grande. Uma lei como tal não poderia partir de uma decisão racional, coletiva, justamente por ela ser fútil demais.

Entretanto, a burocratização da vida é o fator preponderante no conto. Nos trechos "Acontece que era sexta-feira e as repartições estavam fechadas. Você sabe que elas funcionam um dia da semana, durante trinta e sete segundos? Daí, a fila do guichê é fenomenal. Na última vez que estive lá, tinha oito quilômetros de extensão. E esta fila é apenas daquelas que têm de contar os cabelos" (p. 30), "Aí, o prazo estava esgotado. Paguei a multa. (...) Agora, estou contando outra vez, para apresentar no dia quinze" (p. 30), observamos "(...) uma multiplicação e uma sobreposição de funções e de competências da administração estatal (...), que dão lugar a um emaranhado organizativo confuso, bem distinto de uma típica "ausência de estrutura"" (1993:1248). O poder se apresenta organizado em uma hierarquia rígida, chegando esta a ser autoritária. O trabalho é extremamente especializado e as pessoas "(...) trabalham sob regras e expectativas..."

Em meio a todo este contexto, os personagens se apresentam totalmente passivos, chegando, até mesmo, a pactuar com os ditadores. Mesmo reconhecendo a futilidade da nova lei, os personagens não se manifestam. Pelo contrário, facilitam a solidificação e reduplicação do sistema caótico em que vivem, como podemos perceber no trecho "O melhor, hoje, é a gente saber pouco" (p. 31). Os personagens tendem a se mecanizar, anulando as suas capacidades de reflexão.

 

Bibliografia

BOBBIO, Norberto et alli. Dicionário de Política. 5 ed. v. 2, Brasília, DF:Universidade de Brasília, 1993.

BRANDÃO, Ignácio de Loyola. "Os homens que contavam". Cadeiras Proibidas. Rio de Janeiro:Codecri, 1979.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1986.

JOHNSON, Allan G. Dicionário de Sociologia: guia prático da linguagem sociológica. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 1997.

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