Mitra, mitraísmo: o sacrifício do touro

Marília Teresa Bandeira de melo

O nome de Mitra (Sol) acha-se nos livros sagrados dos vedas e dos persas, possuindo uma origem comum, apesar de tais livros pertencerem a dois sistemas teológicos diferentes.
Deus de origem indo-iraniana, era visto por ambas as religiões como o deus da luz invocado junto com o céu. Os vedas chamavam-no Varuna e os persas, de Ahura-Mazda (divindade suprema). Desempenha papel importante em ambas as civilizações. Nos escritos sagrados dos vedas figura o nome de Mitra significando "tratado". No Avesta dos persas, uma ode lhe é consagrada.
Mitra é o gênio da luz celestial. Ele aparece antes do nascer do Sol nos picos rochosos das montanhas, diz o Avesta. Durante o dia, atravessa o grande firmamento em sua carruagem puxada por quatro cavalos brancos. Quando cai a noite, ele ainda ilumina com laivos de claridade a superfície da Terra, "sempre acordado", "sempre atento". Não é Sol, não é Lua, não é estrela, mas, com "suas cem orelhas" e "seus cem olhos", observa constantemente o mundo. Mitra tudo ouve, tudo vê, tudo sabe: nada pode enganá-lo. Na ética, tornou-se o deus da verdade e integridade; invocado em cerimônias solenes, presidia a assinatura de contratos e punia perjuradores. É a luz que dissipa as trevas, restaura a felicidade e a vida na terra; o calor que o acompanha fecunda a natureza. Mitra é o "senhor das grandes pastagens", aquele que as torna férteis. Ele propicia não somente bênçãos materiais, como vantagens espirituais. Gênio que traz paz de consciência, sabedoria e honra junto à prosperidade, produzindo harmonia para reinar entre seus devotos.
No período do pré-zoroastrismo, Mitra, associado com o Supremo Ahura-Mazda, era um deus de primeira magnitude. Seu valor militar, sem rival. Possuía força e, ao mesmo tempo, conhecimento, pois, em essência, era luz. Dele a vitória podia ser esperada, assim como a sabedoria, embora sua ira com trapaças e crimes fosse implacável. Era o intermediário, pois, por sua perfeição e força, podia chegar a Deus e aos homens por uma vida de virtudes e provas humanas em sua existência terrena.
A força de Mitra, no entanto, foi reduzida pela personalidade de Zoroastro que, sendo sacerdote e um aedo, posteriormente tornou-se reformador, esforçando-se para converter o politeísmo em um monoteísmo no qual Ahura-Mazda seria a única divindade suprema. Zoroastro opôs-se às concepções litúrgicas mitraicas, tais como os sacrifícios sangrentos, ou seja, a imolação do touro, e à ingestão do haoma, bebida sagrada, tomada durante as cerimônias mitraicas, que provocava um estado de êxtase místico. Isso produz um severo golpe no culto a Mitra. Durante o reinado de Xerxes e Dario (dinastia dos aquemênidas, 558-339 a.C.), Zoroastro encontra forte oposição dos adeptos do popular deus Mitra e é assassinado no templo do fogo de Balkh. Depois da morte de Zoroastro, a religião mitraica renasce com todo o seu vigor.
Nos escritos ulteriores ao Avesta, encontramos a ode a Mitra em sua plena majestade. Toda a ode fala da força de Mitra, de sua grandeza, de sua combatividade. Esses traços de caráter o fazem particularmente amado e estão ligados a seu culto. Essa força extraordinária animou, por séculos, seus adeptos nos mistérios.
O mito de Mitra. No dia 25 de dezembro, celebra-se a vinda da nova luz e o nascimento do deus. Nascimento miraculoso, pois propulsionado por uma força mágica interior: o jovem deus saiu de uma rocha, nu, usando o boné frígio. Ele leva nas mãos um punhal e uma tocha. É o genitor da luz (genitor luminis) e (saxigenus) saído da rocha (petra genitrix). Apenas nascido, ele já está pronto para os maiores feitos. Recebe, do deus Ahura-Mazda, a incumbência de matar o touro primordial. Pela morte do touro, dará Mitra os frutos da Terra aos humanos.
Também fará jorrar água da rocha como a ajuda de seu arco, criando assim uma fonte destinada a jamais secar.
Certas divindades, como Oceanus, Cautopates, Saturno e Celus, representam forças elementares da criação que se fazem presentes ao nascimento de Mitra, divindade criadora (Demiurgos), e continuam a lhe prestar seus favores.
O nascimento, noutra versão, aparece como tendo ocorrido numa caverna. A gruta de Mitra simboliza o firmamento e, sua abóbada, o céu de onde a luz sairá para a Terra.
O nascimento de Mitra é um acontecimento cósmico: ele traz o globo em uma das mãos e, com a outra, toca o zodíaco. Governa o universo inteiro (Kosmo Krator).
O matar o touro constitui o motivo principal do culto mitraico. Após combate com o touro, Mitra o carrega sobre os ombros para a caverna (transitus dei). Sacrificado o touro, tem lugar um banquete. Sua carne é consumida e seu sangue, bebido em companhia do Sol. Mitra era invocado em diversas inscrições como Deus Solis invictur, o invencível Deus-Sol.
Em diversas representações, vê-se Mitra junto ao Sol estendendo-lhe um punhal, e este, ajoelhado, aperta-lhe o braço com a mão esquerda, tendo, à mão direita, um punhal. A cena nos leva a crer que os deuses selam uma aliança antes do banquete da ascensão de Mitra, sendo o Sol investido, por Mitra, governador do mundo.
O banquete tem lugar em uma caverna. Os fiéis imitam, durante o ofício, os atos de sua divindade. Pode-se concluir que se consumia a carne do touro e que se bebia seu sangue. Acreditava-se que, através da consumação da carne e do sangue do touro, o adepto buscava o nascimento para uma nova vida. A carne e o sangue conferem não somente força corporal, mas também são salutares para a alma e benéficas ao renascimento na luz eterna. Mitra se identifica com o touro. Ele o oferece em sacrifício para que os fiéis possam consumir seu corpo e beber seu sangue como acontecia nos Mistérios de Dionisos, em que, em estado de transe orgiástico provocado pelo vinho (êxtase: sair de si), através do rito do diasparagmós, ou seja, o dilaceramento da vítima sacrificial (touro, bode), viva ou ainda palpitante, além de lhe comerem as carnes e lhe beberem o sangue, alcançavam o êxtase e o entusiasmo (comunhão com o deus).
Posteriormente, substituiu-se a carne por pão e o sangue por vinho. Tertuliano, célebre autor da Igreja (160-245) que presenciou as cerimônias do culto de Mitra, chama este ritual de "paródia diabólica da Eucaristia".
Para C. G. Jung, "o transitus do culto de Mitra corresponde, como tema, ao carregamento da cruz, tal como a transformação do animal sacrificado corresponde à ressurreição do Deus cristão sob a forma de alimento e bebida".
Mitra sobe aos céus no carro solar e volta à Terra no julgamento final, para conduzir os bem-aventurados, recompensados por seus méritos, para o reino celestial. Aos de maus princípios, estava reservado o sofrimento eterno.
Mistérios de Mitra. Os magos eram sábios que participavam da doutrina religiosa de Ahura-Mazda. Exerciam grande influência nas dinastias persas. Foram os magos helenizados da Ásia Menor que criaram o culto dos mistérios de Mitra e fizeram do deus venerado e popular o centro de um culto esotérico. As festas do deus eram conhecidas em toda a Ásia Menor. Em Mitrakana ou Mitragân, o rei executava as danças sagradas e se entregava aos excessos de bebida em honra à divindade (Ctésias, 390 a.C.).
As festas eram celebradas no dia Mihr, mês Mihr, 2 de outubro, começo do inverno. Os magos colocaram Mitra no primeiro plano na qualidade de divindade solar. O culto público se transforma em mistério nos dois últimos séculos que precedem nossa era.
Os cultos a Mitra eram celebrados em grutas naturais ou artificiais, espécie de pequenas capelas (Mithreum). Eram totalmente fechados e neles só se admitiam homens.
Nos santuários mitríacos eram celebrados os cultos regulares, cerimônias anuais e as iniciações propriamente ditas. Consagravam-se os sete dias às sete divindades planetárias e o 1º dia, ao Sol. A principal cerimônia era celebrada no solstício de inverno, em 25 de dezembro, data do nascimento de Mitra.
O tema central dessa religião é o Mitra tauróctone. A tradição avéstica tem, no mito do touro imolado, a origem do mundo, do qual surgiram as plantas; sua semente, recolhida e purificada pela lua, deu nascimento às espécies de animais úteis; sua alma, elevada aos deuses, converte-se em gênio protetor dos pastores. O sangue do touro mesclado com a haoma será uma bebida de imortalidade para os eleitos. Assim como Mitra havia sido criador, também devia ser salvador. O corvo leva a Mitra, da parte do Sol, a ordem de matar o touro e ele, com pesar, executa a ordem recebida.
Os animais escorpião, serpente e formiga haviam querido absorver a semente vital, mas não conseguiram. O escorpião, no mito avéstico, nos ensina que o sêmen do touro se converte na bebida da vida, o haoma.
Quando as hostes invasoras, após sucessivos combates contra o Império Persa, introduziram o mitraísmo em Roma, o ato mais solene daquela religião foi praticamente representado nos templos construídos para o culto do deus persa naquela cidade, de onde difundiu-se pelo Ocidente.
Na representação do ato mais solene da religião, Mitra está em uma caverna sobre o touro; com a mão esquerda, levanta o queixo do animal, cuja cabeça se volta para o céu e, com a direita, crava um punhal no pescoço do touro. Mitra volta a cabeça, olhando para trás de si com uma expressão de tristeza. Geralmente um corvo à esquerda se inclina para ele, no ângulo esquerdo, está a figura do Sol; à direita, da Lua, abaixo, um cachorro que se lança sobre o sangue que brota da ferida e também uma serpente; um escorpião toma com seus ferrões os testículos do animal e os aferoa; às vezes, também participa uma formiga; por debaixo do touro, se vê uma cratera com um leão que parece olhá-lo ou beber nela. Em algumas representações, a cauda do touro levantada termina em um feixe de espigas; ou da ferida do touro brotam espigas em lugar de sangue, relembrando rituais persas de fertilidade.
A representação de Mitra e do touro configura diretamente um mito cosmogônico e um mito escatológico. Trata-se de um mito acompanhado de ritual de sacrifício, que se pode interpretar como princípio universal da vida no mundo visível e da imortalidade no mundo invisível.
Os mistérios mitraicos, praticados na Pérsia e depois em Roma, possuíam graus de iniciação. Os candidatos passavam por provas severíssimas antes de poderem iniciar-se nos mistérios. Faziam rigoroso e prolongado jejum e abstinência sexual. Eram instruídos sobre os mitos acerca da origem dos cosmos, da criação da Terra e do homem, aprendiam os hinos sagrados ou a linguagem litúrgica. Adquiriam também ensinamentos que os preparavam para a cerimônia da iniciação. Ignora-se em que consistiam esses ensinamentos.
O iniciando, antes de fazer o voto sagrado (sacramentum), prometia não trair o que lhe havia sido revelado.
Os sete graus de iniciação dos mistérios de Mitra eram denominados Córax (corvo), Nymphus (Criptus), Miles (soldado), Leo, Perses, Heliodromos e Pater. O iniciado subia os sete degraus, em cada um deles recebendo novo nome. Os titulares dos graus se disfarçavam, adquirindo características dos graus que representavam.
O taurobólio. O ritual de iniciação nos mistérios de Mitra era o taurobólio, que consistia em um ritual de sacrifício do touro. Sobre uma forte estrutura em forma de rede entrelaçada de aço ou ferro, era imolado um touro pelos sacrificadores, e seu sangue escorria sobre o iniciado que ficava abaixo desta estrutura, nu, em uma fossa cavada ao chão. Aí, recebia o sangue, piedosamente, sobre a cabeça e banhava com ele todo seu corpo. O iniciando abria a boca para beber avidamente o sangue. Ao sair da fossa, todos se precipitavam à sua frente, saudavam-no, jogavam-se a seus pés e o adoravam. Ele está agora purificado de suas faltas e regenerado para a eternidade.
A festa continuava após a imolação do touro. Recolhiam-se os órgãos genitais da vítima sacrificada, que eram conduzidos em grande pompa, numa procissão que dava continuidade ao ritual de iniciação à religião mitraica. Depois, era erigido um monumento chamado "a pedra do taurobólio". Decoravam-no com baixos relevos, representando as cabeças de touro entrelaçadas de guirlandas de flores e a dedicação do monumento era motivo de novas festas.
Ignoram-se os caminhos de difusão dessa prática da religião mitraica que, por fim, chegou até o mundo ocidental (Inglaterra, Alemanha, Itália etc.).
Difusão do mitraísmo no Império Romano. Diversas expedições de Trajano, Lúcio Vero e Septímio Severo; a sujeição da Mesopotâmia e a fundação de numerosas colônias em Oshoene e até Nínive formaram os laços de uma grande cadeia que ligou o Irã ao Mediterrâneo.
As sucessivas conquistas dos césares foram a principal causa da difusão da religião mitraica no mundo latino. Por volta de 70 a.C., o mitraísmo penetrou em Roma. Começou a espalhar-se sob o império dos flavianos e no tempo dos antoninos e severos desenvolveu-se enormemente.
No final do século I d.C., encontra-se efetivamente em Roma, conforme foi dito acima, a representação de Mitra tauróctone, aspecto característico do culto esotérico e dos mistérios do deus. Entretanto, segundo os estudiosos, o sacrifício do touro já não era mais praticado nos templos romanos e, sim a representação simbólica deste ritual, mostrando que bem antes do advento do cristianismo, a religião mitraica já havia alcançado um grau maior de desenvolvimento, embora, na Ásia, nos templos dedicados a Mitra, persistissem ainda durante muito tempo os sacrifícios sangrentos do touro.
Devido ao seu caráter de força e beligerância, Mitra obteve a maioria de seus adeptos no Exército Romano. A todos que se engajavam sob as águias romanas, o deus podia prestar seu apoio. A assistência no campo de batalha e a disciplina militar que ele exigia foram importantes na propagação do culto de Mitra e seu reconhecimento oficial. Mitra era o protetor e patrono das armas.
Um dos sete graus dos mistérios de Mitra chama-se soldado, sendo, seu culto, um serviço militar e a vida terrestre, um campo de batalha dedicado a um deus vitorioso. Este grau caracteriza-se pelo ritual da coroa. Há um batismo no qual o iniciado é marcado a ferro na fronte com um sinal.
Oferecia-se ao vencedor das provas exigidas, neste grau de iniciação, uma coroa. Este, porém, a recusava no momento em que iam pô-la em sua cabeça, dizendo que não queria outra coroa a não ser Mitra, seu Salvador.
O mitraísmo manteve-se no Império Romano até o final do século IV de nossa era, coexistindo com o Cristianismo. Em 325, o Concílio de Nicéia, convocado de acordo com o papa pelo imperador Constantino, fixou pelo credo ou símbolo dos apóstolos os princípios da fé católica.
Decretado o direito de praticar livremente a religião cristã e com o triunfo de Constantino, iniciou-se a queda do culto de Mitra, sendo seus templos destruídos e levantadas igrejas sobre suas construções. Assim foi na basílica de Santa Prisca sobre o Aventino e na basílica de São Clemente, perto do Coliseu, em Roma.
C.G. Jung faz uma comparação entre o sacrifício mitraico e o cristão, mostrando que "...enquanto o primeiro representa a sujeição da instintividade animal, isto é, à lei da espécie, o homem natural significa, além disso, o especificamente humano, o poder-desviar-se-da-lei, o que, na linguagem religiosa, quer dizer a capacidade de "pecar". Só devido a esta variabilidade, que sempre mantém em aberto ainda outros caminhos, é possível o desenvolvimento do Homo sapiens.
Entretanto, não basta a sujeição da vida instintiva. Será necessária a integração do aspecto animal inconsciente na natureza humana. Somente assim poderá o homem evoluir no sentido da busca da consciência, sem precisar sacrificar, através de rituais arcaicos e brutais como nos mistérios de Mitra, aquilo que de mais caro possui, ou seja, sua própria natureza. Só a integração do touro interno propiciará a mudança de nível do humano, que almeja chegar mais perto do Divino e, com ele e através dele, comungar e experimentar o que os adeptos de Mitra, em seu sentido mais profundo, ansiavam por vislumbrar: a luz.

BIBLIOGRAFIA

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Marília Teresa Bandeira de Melo é psicóloga clínica.

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