O DOIDO E A MORTE
FARSA EM UM ACTO
Personagens:
O Sr. Milhões
O Governador Civil
D. Ana Baltasar Moscoso
Nunes
Polícias, Enfermeiros
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No gabinete do governador civil. Ampla secretária e em frente uma mesa mais pequena.
GOVERNADOR CIVIL E NUNES
GOVERNADOR CIVIL (escreve sentado à secretária)
«Acto III, cena quinta – Chegou o momento cheio de horror em que sinto o solo fugir-me debaixo dos pés.» (Pousando a pena.) Estou hoje inspirado. Tudo me sorri, a manhã, o céu, a mesa. (Toca a campainha.) Ó Nunes.
Entra o Nunes e quando o Nunes abre a porta vêem-se alguns polícias sentados num banco de pinho, lendo jornais.
NUNESSenhor governador civil.
GOVERNADOR CIVILSe vier por aí alguém, não estou para ninguém.
NUNESSim, senhor.
GOVERNADOR CIVILSeja quem for.
NUNESSim, senhor.
GOVERNADOR CIVILPara ninguém. (Nunes sai.) Aproveitemos estas felizes disposições. (Escreve.) «Ela: -- Sabes? sabes enfim o que te não ouso confessar? . . . » Agora precisava aqui duma frase de efeito. (Procura nos livros que tem em cima da mesa.) Aqui há-de haver porque aqui há de tudo. . . (Escreve.) «Ele: É o momento. . . é o momento mais trágico da minha vida.» (Passando a mão pela cabeça.) Estou a comover-me muito. Isto até me pode fazer mal.
NUNES (abrindo a porta.)Está aqui. . .
GOVERNADOR CIVILCaramba! Não estou para ninguém. Isto é de mais, Nunes! Castigo-o com três dias de vencimento.
NUNESÉ o Sr. Milhões com uma carta do presidente do Ministério.
GOVERNADOR CIVILO Sr. Milhões? Que entre. . . que vida esta! Que país este! Exactamente no momento psicológico, no momento em que me remontava. Nunes. . .
Aí do Lusíada coitado. . .
Isto não é um país, é uma selva onde os homens de génio têm de ser ao mesmo tempo governadores civis. (Lendo o bilhete.) O Sr. Milhões. Diz-lhe que entre, diz-lhe depressa que entre. (Abre a carta.) É o próprio Ministro que recomenda o homem mais rico de Portugal.
(Nunes introduz o Sr. Milhões e uma caixa que é colocada no chão entre as duas mesas com muitas precauções: «Aqui. . . Cuidado. . . Está bem. . . Pode retirar-se.» O Sr. Milhões é um homem importante e severo, de grandes suíças cuidadas e lunetas de aro de oiro. Sobrecasaca.)
GOVERNADOR CIVIL E NUNES
GOVERNADOR CIVILV. Ex.a tenha a bondade de se sentar. Há que tempos que tenho a honra de o conhecer de vista e de nome. Então? . . .
(Mas o Sr. Milhões, embezerrado, não diz palavra. Com a maior indiferença dispõe a caixa e faz a ligação dum fio eléctrico para a campainha da mesa que está em frente da secretária do Governador Civil. O outro segue-lhe os movimentos com uma curiosidade crescente.)
SR. MILHÕES (aproximando-se dele, confidencialmente)O senhor sabe o que está aqui dentro?
GOVERNADOR CIVILO que é?
SR. MILHÕESA morte!
GOVERNADOR CIVILPelo que vejo o negócio é grave?
SR. MILHÕESMuito grave. Vim de propósito de automóvel para não dar nas vistas. V. Ex.a já leu a carta do presidente do Ministério? Há muito tempo que o admiro.
GOVERNADOR CIVIL (lisonjeado)E eu! E eu! Tenho por V. Ex.a a maior consideração. (Levanta-se e ao passar entre as mesas dá um pontapé na caixa.)
SR. MILHÕESCuidado, que podemos ir todos pelos ares.
GOVERNADOR CIVIL (dando um salto)Anh!?
SR. MILHÕESRepito, o negócio que me traz aqui é muito grave. (Senta-se cerimoniosamente e o Governador Civil vai postar-se na sua secretária.)
GOVERNADOR CIVILEstou no exercício das minhas funções.
SR. MILHÕESO maior crime de todas as épocas, a suprema tragédia de todos os tempos! Vamos estoirar dentro de vinte minutos. (O Governador Civil muda de expressão à medida que o outro fala.) O que o senhor vê aqui nesta caixa é o mais formidável de todos os explosivos: SO3 -- HO4, cem vezes mais poderoso que a dinamite, o algodão-pólvora, e o fulminato de mercúrio. Basta carregar nesta campainha para irmos todos pelos ares, eu, o senhor, o prédio, o bairro, a capital. SO3 -- HO4. O peróxido. . .
GOVERNADOR CIVILQuê? Quê? Que peróxido!?
SR. MILHÕESO peróxido de azote.
GOVERNADOR CIVIL (mastigando)Isso é sério?
SR. MILHÕESMuito sério.
GOVERNADOR CIVILÓ Nunes!
SR. MILHÕESPode vir o Nunes e todos os regimentos da capital. . . Quando eu tocar nesta campainha arraso tudo. O peróxido de azote é a maior invenção deste século. Basta carregar aqui com o dedo. . . (Ele, de lá, faz-lhe um gesto de súplica, sem poder falar, para o outro retirar o dedo.) Mas nós ainda não nos explicamos (Tirando o relógio.) Temos tempo.
GOVERNADOR CIVILTemos muito tempo. Ó Nunes!
SR. MILHÕESChame quem o senhor quiser. Chame lá o Nunes por uma vez. É-me indiferente. (O Governador Civil levanta-se e vai a sair precipitadamente.) O que me não é indiferente é que o senhor saia daqui. Ah, isso não! Ao senhor escolhi-o para morrer comigo.
GOVERNADOR CIVILMuito obrigado!
SR. MILHÕESE se dá um passo para fora daquela porta, faço saltar tudo.
GOVERNADOR CIVILMau! O senhor não se ponha com brincadeiras. Eu sou um governador civil, uma autoridade constituída, e o senhor lembre-se que tem mulher e filhos. É um homem de ordem, é um homem rico. . . O senhor. . . Então eu estou aqui sossegado, no cumprimento do meu dever, a escrever uma peça, nunca lhe fiz mal nenhum, tenho por V. Ex.a a maior consideração. . . V. Ex.a está incomodado? Quer tomar alguma coisa? (E sempre mais alto.) Ó Nunes!
SR. MILHÕES (com desdém)Acaba lá com isso!
GOVERNADOR CIVILEntão se V. Ex.a me dá licença, é para lhe pedir um copo de água.
SR. MILHÕESChame quem quiser. A questão é entre mim, V. Ex.a e o peróxido de azote. Trr. . . trr. . . Se V. Ex.a sair daqui. . . trr.
GOVERNADOR CIVILÓ Nunes! (O Nunes entra.) Ó Nunes, ele está doido e a caixa é de dinamite – uma caixa daquele tamanho! (O Nunes arregala os olhos.) Quando eu disser disfarçadamente: «Não ouve tocar lá em cima?», vocês todos caem à uma sobre ele e seguram-no bem seguro. Ouviste? (O Nunes diz que sim com a cabeça sem poder falar. O Sr. Milhões tem seguido atentamente a cena, de ouvido à escuta a cofiando as barbas respeitáveis.)
SR. MILHÕESSente-se, senhor, não faça figuras tristes. O senhor está a tratar-me com menos consideração e a desconhecer a importância do meu papel no universo. (Exaltando-se.) Eu sou imperador, sou rei, sou Deus! Posso à vontade aniquilar o universo, ou fazer uma grande hecatombe. (Exaltando-se cada vez mais.) Tudo depende de mim. Eu! Eu! (Bate punhadas na mesa.) Em que se distinguem os heróis e os imperadores da canalha sem nome? Pelo número de homens que podem aniquilar sem responsabilidade nenhuma. Trr!. . . Trr!. . . E mato-me! E mato-me!
GOVERNADOR CIVILAi Jesus! Ai Jesus! Ai Jesus!
SR. MILHÕES (de pé)Destruo uma cidade! SO3 -- HO4 -- fórmula única. Destruo talvez um povo.
GOVERNADOR CIVILMas o Sr. Milhões ainda não se explicou.
SR. MILHÕES (serenando imediatamente)É verdade, ainda não me expliquei. Peço desculpa. (E sempre respeitável, sempre com imponência.) Aqui há tempos, faz exactamente um mês, quando passeava à tarde sob as árvores do meu quintal, senti de repente que se me abriam os segundos olhos.
GOVERNADOR CIVILOs?!!!
SR. MILHÕESOs da alma.
GOVERNADOR CIVIL (sucumbido)Ai meu deus que estou perdido!
SR. MILHÕESE vi de repente o mundo não como todos o vêem, mas como ele é na realidade.
GOVERNADOR CIVILA cabeça estoira-me!
SR. MILHÕESE à medida que os segundos olhos se me foram abrindo, mais funda se me radicou a vontade de destruir tudo isto. O peróxido de azote. . .
GOVERNADOR CIVILSO3 -- HO4. O senhor é tolo! O senhor pode ainda ser muito feliz! O senhor pode recuperar o uso das suas faculdades. Olhe que o senhor arrepende-se. Pelo amor de Deus, deixemo-nos de tolices! Ouça, ouça. . . O senhor não ouve tocar lá em cima? (Mais alto.) O senhor não ouve tocar lá em cima? (Berrando.) O senhor não ouve tocar lá em cima?
SR. MILHÕES(com fleuma)Grite mais alto se lhe parece! O senhor está a dar um espectáculo abjecto. Escusava de fazer essa triste figura. . . Safaram-se. Eu percebi tudo. Puseram-se logo ao fresco. Pode ver. (O governador civil abre a porta. Os polícias fugiram, o banco está deserto.) Sente-se, não podemos perder tempo. Sente-se e ouça. Ninguém o arranca das minhas mãos. Há quem diga que estou doido. Diga-me com franqueza, conhece-se que eu esteja doido?
GOVERNADOR CIVILOra essa, V. Ex.a está no uso completo da razão, eu é que me sinto endoidecer.
SR. MILHÕESAntes de mais nada é preciso que me compreenda bem. Eu sou eu, sou um amigo da humanidade. A um gesto meu desaparece a desgraça da face da terra, acabam os crimes, as misérias e as paixões. Fazendo saltar o globo suprimo para sempre os gritos e todas as injustiças. Suprimo a morte.
GOVERNADOR CIVILPerdão, Sr. Milhões. É preciso que atenda a várias circunstâncias pessoais. Eu não estou preparado para morrer. Não se morre assim sem mais nem menos. Morrer! Morrer!. . . Então o senhor pensa que isto de morrer é uma coisa sem importância nenhuma? Morrer é uma coisa muito séria, é um acto que importa certa preparação, testamento, cólicas, etc. É só chegar aqui, morrer e mais nada! Que tal está o da rabeca! Morrer! Eu não quero morrer nem pensei nunca a sério que tivesse de morrer. Tenho ido a enterros, mas é aos dos outros. . . Então o senhor entra-me pela porta dentro, e sem mais nem ontem, de repente, fala-me assim de morrer como se eu fosse um condenado à morte, nas escadas da força? Adeus, meu amigo! Além disso, é um crime. Previno-o de que é um crime, punido por todos os códigos, atentar contra a vida duma autoridade constituída, demais a mais no exercício das suas funções. Artigo 343. o do Código Penal. Vamos, vamos. . . Isso é um momento de desvario e mais nada. Espero que as minhas palavras o façam reconsiderar. (O outro ergue-se implacável e aproxima a mão da campainha.) Ai que ele está doido varrido! (Exaltando-se) Senhor! Senhor! (Avança para o agarrar, mas o outro põe o dedo em cima do botão e ele afasta-se logo.)
SR. MILHÕESFaça favor de estar quieto. Eu admiro-o. Quando se representou aquela sua peça – O Destino – disse logo comigo: que talento!
GOVERNADOR CIVIL(desvanecido) Muito obrigado. O que vale neste mundo são as almas irmãs.
SR. MILHÕESSó ele é capaz de me compreender, só ele é digno de morrer comigo.
GOVERNADOR CIVILMau! Mau! Mau!
SR. MILHÕESNa sua peça há cenas verdadeiramente shakespearianas – são as que não estão lá. Porque é necessário que o senhor saiba: os livros, as peças, a arte, enfim, só vale pelo que sugere. O que lá está em regra não presta para nada; o que cada um de nós constrói sobre a linha, a cor, e o som, é que é verdadeiramente superior. Por isso lhe perdoei todas as banalidades que tem escrito, e passei a admirá-lo. Pulverizando-o comigo e com o globo, realizo o pensamento dos mais altos filósofos. (O outro julgando-o entretido vai para fugir.) Fugir para onde? Não seja estúpido. Melhor é entrar comigo sem desvarios na categoria dos deuses. Elevo-o à categoria dos deuses.
GOVERNADOR CIVILÓ meu Deus! Ó senhor!. . .
SR. MILHÕESTrr, trr, e sou adorado, sou magnífico, sou único. (Faz menção de tocar.)
GOVERNADOR CIVILPerdão! Perdão! Perdão! Ao menos outra morte! Estoirado não! Dê-me outra morte, uma morte onde o meu cadáver se possa sepultar com decência e em que haja possibilidade de me fazerem um enterro digno dum Governador Civil.
SR. MILHÕESSer pulverizado, pertencer ao cosmos, viajar nas nuvens, que melhor quer o senhor? Que mais quer o senhor?
GOVERNADOR CIVILFugir.
SR. MILHÕESNão há nada que o salve.
GOVERNADOR CIVILPor cima moram minha mulher e meus filhos. Creio que não quer também assassiná-los. Julgo que a sua loucura não exigirá o sacrifício dessas inocentes vítimas. Posso chamar a minha mulher para fazer as últimas disposições?
SR. MILHÕESPode, contanto que não saia daqui e que se não demore muito. (Vê a hora no relógio.)
GOVERNADOR CIVILE eu que estive esta manhã para meter o revólver no bolso! E não acreditam em pressentimentos! Nunca mais saio de casa sem trazer o revólver. (Pelo telefone.) Aninhas. . . Ah, estás lá? Estou aqui com um doi. . . Não, com o Sr. Milhões. . . Esse, sim. . . Peço-te o favor de desceres. . . Não posso. . . Não me deixa sair daqui.
SR. MILHÕESDiga-lhe que venha depressa.
GOVERNADOR CIVILNão te demores, Aninhas. . . Sim, sim.
SR. MILHÕESVem?
GOVERNADOR CIVILVem já. (Ela entra.)
OS MESMOS E D. ANA BALTASAR MOSCOSO
GOVERNADOR CIVIL (fala-lhe apressadamente ao ouvido com exclamações) Ele! Ele!. . .
ANINHASAnh?!
GOVERNADOR CIVILSim, Aninhas, eu Baltasar Moscoso, estou nas mãos deste infame. Se dou um passo daqui para fora, trr! Pulveriza-me! É dinamite, é peróxido, aquela grande caixa. . . O que há de pior, arrasa prédios e bairros.
ANINHASEspera aí que eu já venho! (Faz menção de sair.)
GOVERNADOR CIVILSalva-me ou morre comigo.
ANINHASE os nossos filhos? Não sejas egoísta, nunca passaste dum reles egoísta. Eu disse-o sempre.
GOVERNADOR CIVILÓ Aninhas, mas tu disseste que quando eu morresse, morrias logo também.
ANINHASDisse e digo. Estou pronta a cumprir o meu dever. Sou duma família que se preza de cumprir os seus deveres. Mas nunca te disse que morria, como as mulheres da Índia, numa pira. Queimada não! A minha religião é católica, apostólica, romana! Saiba morrer quem viver não soube. (Para o Sr. Milhões.) Quanto falta?
SR. MILHÕES (com uma grande dignidade)O senhor é inconsciente, faça favor de me apresentar a sua esposa.
GOVERNADOR CIVILMinha mulher, a Sr.ª D. Ana de Baltasar Moscoso – O Sr. Milhões.
ANINHASMuito gosto em o conhecer. (Anda de roda da caixa com precauções para lhe apertar a mão.) Quanto falta?
SR. MILHÕESQuinze minutos e quatro segundos exactos, minha senhora.
ANINHASEntão retiro-me porque não há tempo a perder. Um automóvel e pronto! (Vai a sair.)
GOVERNADOR CIVILÓ Aninhas, despede-te ao menos de mim. Ó Áninhas, olha que eu quero uma lápide monumental. Diz aos meus amigos. . . (Baixo.) Não tens aí o revólver? Diz-lhes que quero o meu nome em letras doiradas e esta frase gravada na minha sepultura: «Aqui jaz um homem de génio que não teve tempo de se revelar.»
SR. MILHÕESTantas pieguices!
GOVERNADOR CIVILHomem, o senhor nem ao menos me deixa fazer as minhas disposições testamentárias. O senhor abusa! Aninhas, faz-me ao menos um enterro muito bonito.
ANINHAS (Para Sr. Milhões)Quanto falta?
SR. MILHÕESUm quarto de hora.
ANINHASÉ tempo absolutamente indispensável. (Vai a sair apressadamente.)
GOVERNADOR CIVILDiz-me ao menos adeus, Aninhas. Adeus!
ANINHASAdeus! Morrer queimada não! (À porta, como quem lhe atira pazadas de terra.) Morre em paz! Descansa em paz! Jaz em paz!
SR. MILHÕESAí tem o senhor o que são as mulheres, a sua e as dos outros.
GOVERNADOR CIVILNão me tire as últimas ilusões (Puxa dum lenço para chorar.) Se ao menos lhe pudesse acertar com um banco pela cabeça. (Algumas lágrimas.)
SR. MILHÕESVamos! Vamos! Isto a bem dizer não é a morte, é a pulverização. Não sente nada, verá.
GOVERNADOR CIVIL (dirigindo-se à janela)Toda a cidade deserta. . . Um silêncio de túmulo. Fugiu tudo ao peróxido de azote. . . Que morte a minha, e ninguém senão eu para a poder contar! Posso dizer bem alto que não há drama no mundo que se compare com este. (Seguindo outra ideia.) E veja o senhor essa mulher que me disse sempre que, quando eu morresse, morria comigo! . . .
SR. MILHÕESEssas coisas dizem-se, mas nunca se fazem. Se o senhor fosse um homem inteligente, compreendia-o logo. Mas não é. (Gesto do outro.) Não é. Demais a mais essa mulher que o senhor lamenta não é a mulher ideal que lhe convém. É uma felicidade para o senhor ver-se livre dela.
GOVERNADOR CIVILEla é que se vê livre de mim.
SR. MILHÕESÉ uma mulher que o engana.
GOVERNADOR CIVILOh!
SR. MILHÕESEnganou-o sempre.
GOVERNADOR CIVILSenhor!
SR. MILHÕESÉ o que lhe digo. O senhor tem cara de ser enganado por todas as mulheres. É uma coisa que se vê.
GOVERNADOR CIVILBasta!
SR. MILHÕESLivro-o dela, livro-o de complicações, livro-o do dever que é tudo o que há de mais estúpido no mundo, e o senhor ainda se queixa.
GOVERNADOR CIVILO senhor é doido.
SR. MILHÕESDoido! Doido!. . . Já é com esta a terceira vez que mo chama. Saiba então que um homem que não tem aos menos uma parcela de loucura não presta para nada. Aqui estou eu, que, enquanto tive o meu juízo todo, nunca fui feliz. (O Governador Civil julgando-o descuidado, vai-se aproximando da porta.) Passar por doido tem muitas vantagens. Direi mesmo que é a única situação vantajosa que há neste país. O doido diz tudo quanto lhe passa pela cabeça. (E continuando a falar imperturbável faz-lhe sinal que volte para trás e aproxima o dedo da campainha.) Ninguém estranha. O doido pode andar de chinelos de ourelo pelo Chiado. Ninguém repara. Quem tem juízo vive constrangido e está sujeito a mil complicações. Vá, sente-se.
GOVERNADOR CIVILObedeço, obedeço.
SR. MILHÕESHá efectivamente quem diga que estou doido, mas nunca a minha lucidez foi maior. O senhor acredita que eu esteja doido? (O outro de lá acena à pressa que não.) De resto, o que é a loucura e o que é o juízo? Simples pontos de vista e mais nada. O doido pode seguir à vontade o seu sonho, sem que ninguém se meta com ele. Tem quem lhe dê de comer, de vestir e calçar nos manicómios.
GOVERNADOR CIVILMuito filosófico.
SR. MILHÕESNão diga mal dos doidos. Todos os homens que fizeram alguma coisa no mundo eram doidos. Devemos-lhes a vida artificial. Na realidade devemos-lhes tudo. Se não fossem eles ainda hoje seríamos bichos. Dantes eu próprio que era? Um mazorrão. Agora o meu espírito, leve como uma pluma, paira acima da estupidez humana. (O Sr. Milhões distraído vai tocar no botão da campainha. O outro faz-lhe de lá apressadamente «pst! pst!» para retirar o dedo.) Ah, é verdade, ainda faltam alguns minutos. (E segue com o discurso.) Dantes ocupava os meus nobres ócios a ler os clássicos. A leitura dos clássicos, que fastidiosa tarefa! Queimei-os todos no pátio. Detesto os clássicos. E o senhor?
GOVERNADOR CIVIL (apressadamente)Também eu, também eu!
SR. MILHÕESDantes tinha horror aos palavrões, agora até me sabe, de quando em quando, uma obscenidade. (E aproximando o dedo da campainha.) Vai agora?
GOVERNADOR CIVILEspere, senhor! Por mais que queira, não me posso resignar.
SR. MILHÕESÉ falta de hábito, é como quem arranca um dente sem dor. Depois que alívio, verá.
GOVERNADOR CIVILEspere, co’os diabos! Morrer agora, meu Deus! Morrer! Morrer na flor da idade! Morrer quando a pátria esperava de mim as minhas melhores obras! Espere, morrer não é brincadeira nenhuma, não é uma coisa que se faça assim de pé p’ra mão.
SR. MILHÕESNão posso esperar mais tempo. Temos de morrer.
GOVERNADOR CIVILNão quero! Não quero!
SR. MILHÕESA vida é estúpida.
GOVERNADOR CIVILNão me importo! Quero viver!
SR. MILHÕESSoou a hora. Uns minutos e. . .
GOVERNADOR CIVIL (furioso)Mas tu quem és, afinal, ó supremo canalha, que assim decides eliminar-me, quando eu me agarro com desespero à vida?
SR. MILHÕES (de pé, altivo e transfigurado)Eu sou o doido! Eu sou a morte!
GOVERNADOR CIVILAnh?!
SR. MILHÕESEstou farto! Estou farto de me vestir todos os dias, de cumprimentar todos os dias, de dizer todos os dias que sim! Estou farto de sorrir e de fazer as mesmas coisas inúteis, que não condizem com a minha situação respeitável no universo. Eu não quero ser bicho; com a fortuna de que disponho e este talento que Deus me deu, não posso ser bicho – e tenho que confessar a mim que sou bicho. Eu e o macaco do Jardim Zoológico! Oh não! Oh não!
GOVERNADOR CIVILEu endoideço! Eu endoideço!
SR. MILHÕESVou suprimir a vida, porque a vida mete-me medo, ouviste? Porque me mete medo. Fui sempre ridículo, mas nem sempre me senti ridículo. A vida foi sempre atroz, mas nem sempre a senti atroz. Quando dei pelo que ela tem de reles e de grotesco, de trágico e de grotesco, veio-me um vómito de tristeza. Vi-te e vi-me. Vi que a minha caridade era grotesca, que os meus deveres eram grotescos, com os dividendos a receber, os coupons a cortar, um cofre do tamanho desta sala e um guarda-portão eminente a distribuir seis vinténs à pobreza. Considerei-me abjecto. Abjectos e grotescos os laços de família, à espera do testamento e da cólica, e os mil e quinhentos que eu dava por mês à obra dos órfãos mutilados. Pior, pior. . . Olhei para mim, olhei para dentro de mim mesmo e ao mesmo tempo encarei com a Vida. Com esta coisa prodigiosa que é a Vida, feita para a desgraça, para a dor, para o sonho – e que dura um minuto, um só minuto --, e encontrei-me sórdido com as minhas inscrições a receber e as minhas décimas a pagar. Oh, um instante para deter isto, caótico e doirado, sôfrego e doirado! Um instante para sofrer, para lavrar a terra, para ser, enfim, o homem! E eu já não podia arrancar-me ao meu palácio com um guarda-portão fardado de ministro, nem fazer outra coisa senão abrir a boca com sono diante do cofre das inscrições de assentamento. De assentamento, repara bem. No mundo caótico onde se grita e se sonha, há inscrições de assentamento! Tu compreendes isto? Tu explicas isto?. . . Vi então o infinito lá em cima e vi-me a mim cá em baixo. Mais um passo e senti que acabava a vida a fazer paciências.
GOVERNADOR CIVILMas que tenho eu com isso?
SR. MILHÕESVais morrer, e vais morrer porque com as tuas fórmulas, a tua papelada e o teu burlesco, és também abjecto e inútil. O cavador existe! O soldado existe! O herói existe! Tu não existes!
GOVERNADOR CIVILEu não existo?
SR. MILHÕESÉs uma sombra e bff. . . (sopra-lhe e outro estremece) faço-te desaparecer como uma sombra. Tenho de suprimir a ninharia da vida. Estas duas coisas não podem mais coabitar – esta estupidez e este sonho dorido e imenso, o grotesco de todos os dias, quando do outro lado galopa e passa uma coisa sôfrega e imensa. Tu não te podes chamar Baltasar Moscoso, e ao mesmo tempo existir o céu estrelado. Venham todos os fantasmas!
GOVERNADOR CIVILAcudam! Acudam! Acudam!
SR. MILHÕESNão posso viver com isto, frenético e doirado, e regular a existência como o maquinismo dum relógio; não posso às mesmas horas – eu nisso sou um pêndulo – fazer certa coisa imunda num buraco de secção elíptica, quando o mundo está cheio de gritos e o meu pensamento se eleva às mais altas elucu7brações filosóficas. Pff! Pff! . . . Não, não posso com este esplendor e esta abjecção, este ridículo e este desespero – e vamos morrer! Vamos enfim morrer! (Vai carregar no botão.)
GOVERNADOR CIVILAlto! Alto! Alto!
SR. MILHÕESSoou a hora.
GOVERNADOR CIVILMorrer! Mo. . . Mas eu não estou doente! Nem a cabeça me dói. . . Então eu hei-de ser governador civil e morrer?! Então eu hei-de ter talento e morrer?!
SR. MILHÕESÉ a hora de morrer.
GOVERNADOR CIVILO senhor é cruel. Não me dispute os últimos momentos.
SR. MILHÕESO que eu sou é seu amigo. Tenho estado aqui a prepará-lo para a grande hora da libertação. Há mais alguma coisa que lhe possa fazer? Vai agora?
GOVERNADOR CIVILO senhor é pior que um inquisidor. Não me tire os últimos segundos, os segundos dum condenado à morte. Aposto que está a gozar com a minha agonia. Em troca da vida dou-lhe tudo o que quiser, a minha influência, o meu dinheiro, as minhas peças, a glória.
SR. MILHÕESRecuso, sou intransigente nos meus princípios.
GOVERNADOR CIVILEspere. Dê-me um confessor. Um confessor não se recusa a quem está de oratório.
SR. MILHÕESO senhor nunca foi católico.
GOVERNADOR CIVILÉ que nunca me vi nestes assados.
SR. MILHÕESTem de seu, previno-o, dez segundos.
GOVERNADOR CIVILE não haver um Vítor Hugo para fixar esta tormenta num crânio!
SR. MILHÕESTem de seu nove segundos e meio.
GOVERNADOR CIVILAcabe lá com isso! (Vendo-o aproximar o dedo do botão.) Não! Não! Acabe lá mas é com essa cegarrega do relógio.
SR. MILHÕESFaltam apenas. . .
GOVERNADOR CIVIL (Passando a mão pela testa com infinita tristeza)Neste últimos momentos de existência, sinto a mente a transbordar de génio. Quantas páginas imortais perdidas, por causa deste malandro!
SR. MILHÕESCinco segundos. . .
GOVERNADOR CIVILJá que me nega um confessor, ouça-me ao menos de confissão. Ouça os meus pecados. Confesso que menti. . . que menti sempre que pude. Toda a minha vida foi uma mentira pegada. Espere! Ó meu Deus! Espere! Espere! Que é que vou sentir na situação de cadáver?
SR. MILHÕESUm segundo.
GOVERNADOR CIVILMaldito sejas tu por toda a eternidade. Tenho medo! Tenho medo! Espere! É um pecado morrer com desespero. Dói-me a barriga. . . Peço licença para ir lá fora fazer o que tenho a fazer.
SR. MILHÕES (implacável) – Faça no outro mundo.
GOVERNADOR CIVILEspere ao menos a minha contrição. Oh, morrer!. . . Oh, morrer nas mãos dum doido, e estoirado ainda por cima! Morrer! Morrer! Perdão! Perdão! Padre Nosso que estais no céu. . .
SR. MILHÕESÉ agora!
GOVERNADOR CIVILAqui d’el-rei! Aqui d’el-rei! Aqui d’el-rei!
OS MESMOS E DOIS ENFERMEIROS
(Ouve-se barulho fora. O Sr. Milhões faz retinir a campainha. O Governador Civil cai na cadeira com gestos desordenados. Entram dois enfermeiros de casaco branco de resguardo.)
GOVERNADOR CIVIL (esgazeado, apontando a caixa)O peróxido! O peróxido!
UM ENFERMEIRO (destapando a caixa e tirando para fora algodão) É algodão em rama. . .
(Agarram o Sr. Milhões que os afasta, saindo depois de pôr e tirar o chapéu lustroso e de cumprimentar cerimoniosamente.)
SR. MILHÕESTragam a caixa.
GOVERNADOR CIVIL (com os cabelos em pé)Ai o grande filho da puta!
FIM
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