Álvaro de Campos
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Nenhum segredo é sagrado. Nenhuma guerra é santa.

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A Fernando Pessoa
(1915)
Depois de ler o seu drama estático O Marinheiro em Orfeu I

Depois de doze minutos
Do seu drama O Marinheiro
Em que os mais ágeis e astutos
Se sentem com sono e brutos,
E de sentido nem cheiro,
Diz uma das veladoras
Com langorosa magia:

De eterno e belo há apenas o sonho.
Porque estamos nós falando ainda?

Ora isso mesmo é que eu ia
Perguntar a essas senhoras...


(1-3-1917)

No lugar dos palácios desertos e em ruínas
À beira do mar,
Leiamos, sorrindo, o segredo das sinas
De quem sabe amar.

Qualquer que êle seja, o destino daqueles
Que o amor levou
Para a sombra, ou na luz se fêz a sombra dêles,
Qualquer fôsse o vôo.

Por certo êles foram mais reais e felizes.


(1-3-1917)

Não sei. Falta-me um sentido, um tacto
Para a vida, para o amor, para a glória...
Para que serve qualquer história,
Ou qualquer fato?

Estou só, só como ninguém ainda estêve,
Õco dentro de mim, sem depois nem antes.
Parece que passam sem ver-me os instantes,
Mas passam sem que o seu passo seja leve.

Começo a ler, mas cansa-me o que inda não li.
Quero pensar, mas dói-me o que irei concluir.
O sonho pesa-me antes de o ter. Sentir
É tudo uma coisa como qualquer coisa que já vi.

Não ser nada, ser uma figura de romance,
Sem vida, sem morte material, uma idéia,
Qualquer coisa que nada tornasse útil ou feia,
Uma sombra num chão irreal, um sonho num transe.


Clearly Non-Campos!
Não sei qual é o sentimento, ainda inexpressivo,
Que sùbitamente, como uma sofucação, me aflige
O coração que, de repente,
Entre o que vive, se esquece.
Não sei qual é o sentimento
Que me desvia do caminho,
Que me dá de repente
Um nojo daquilo que seguia,
Uma vontade de nunca chegar a casa,
Um desejo de indefinido,
Um desejo lúcido de indefinido.

Quatro vezes mudou a stação falsa
No falso ano, no imutável curso
Do tempo consequente;
Ao verde segue o sêco, e ao sêco o verde,
E não sabe ninguém qual é o primeiro,
Nem o último, e acabam.


(18-8-1934)

Depus a máscara e vi-me ao espelho. -
Era a criança de há quantos anos.
Não tinha mudado nada...
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que foi
A criança.
Depus a máscara, e tornei-a a pô-la.
Assim é melhor,
Assim sem a máscara.
E volto à personalidade como a um términus de linha.


(27-9-1934)

Na véspera de não partir nunca
Ao menos não há que arrumar malas
Nem que fazer planos em papel,
Com acompanhamento involuntário de esquecimentos,
Para o partir ainda livre do dia seguinte.
Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca.
Grande sossêgo de já não haver sequer de que ter sossêgo!
Grande tranquilidade a que nem sabe encolher ombros
Por isso tudo, ter pensado o tudo
É o ter chegado deliberadamente a nada.
Grande alegria de não ter precisão de ser alegre,
Como uma oportunidade virada do avêsso.
Há quantas vezes vivo
A vida vegetativa do pensamento!
Todos os dias sine linea
Sossêgo, sim, sossêgo...
Grande tranquilidade...
Que repouso, depois de tantas viagens, físicas e psíquicas!
Que prazer olhar para as malas fitando como para nada!
Dormita, alma, dormita!
Aproveita, dormita!
Dormita!
É pouco o tempo que tens! Dormita!
É a véspera de não partir nunca!


(9-10-1934)

O que há em mim é sobretudo cansaço -
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço asssim mesmo, êle mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amôres intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas tôdas -
Essas eo que falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Êste cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum dêles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para êles a vida vivida ou sonhada,
Para êles o sonho sonhado ou vivido,
Para êles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço...



17-1-1933

E o esplendor dos mapos, caminho abstrato para a imaginação concreta,
Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha.

O que de sonho jaz nas encadernações vestustas,
Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e esguias) dos velhos livros.
(Tinta remota e desbotada aqui presente para além da morte,
O que de negado à nossa vida quotidiana vem nas ilustrações,
O que certas gravuras de anúncios sem querer anunciam.

Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime,
Tudo o que diz o que não diz,
E a alma sonha, diferente e distraída.

Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos!)

 

 
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