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POEMAS DE FERNANDO PESSOA - INÉDITOS

O Peso de Haver o Mundo
(19-5-1932)

Passa no sôpro da aragem
Que um momento o levantou
Um vago anseio de viagem
Que o coração me toldou.

Será que em seu movimento
A brisa lembre a partida,
Ou que a largueza do vento
Lembre o ar livre da ida?

Não sei, mas sùbitamente
Sinto a tristeza de estar
O sonho triste que há rente
Entre sonhar e sonhar.

SÁ CARNEIRO
1934

Nesse número do Orpheu que há de ser feito com rosas e estrêlas em um mundo novo.

Nunca supus que isto que chamam morte
Tivesse qualquer espécie de sentido...
Cada um de nós, aqui aparecido,
Onde manda a lei certa e a falsa sorte,

Tem só uma demora de passagem
Entre um comboio e outro, entroncamento
Chamado o mundo, ou a vida, ou o momento;
Mas, seja como fôr, segue a viagem.

Passei, embora num comboio expresso
Seguisses, e adiante do em que vou;
No términus de tudo, ao fim lá estou
Nessa ida que afinal é um regresso.

Porque na enorme gare onde Deus manda
Grandes acolhimentos se darão
Por cada prolixo coração
Que com seu próprio ser vive em demanda.

Hoje, falho de ti, sou dois a sós.
Há almas pares, as que conheceram
Onde os sêres são almas.

Como éramos só um, falando! Nós
Éramos como um diálogo numa alma.
Não sei se dormes [...] calma,
Sei que, falho de ti, estou um a sós.

É como se esperasse eternamente
A tua vida certa e conhecida
Aí embaixo, no Café Arcada -
Quase no extremo dêste [...]

Aí onde escreveste aquêles versos
Do trapézio, doriu-nos [...]
Aquilo tudo que dizes do Orpheu.

Ah, meu maior amigo, nunca mais
Na paisagem sepulta desta vida
Encontrarei uma alma tão querida
Às coisas que em meu ser são as reais.

[...]

Não mais, não mais, e desde que saíste
Desta prisão fechada que é o mundo,
Meu coração é inerte e infecundo
E o que sou é um sonho que está triste.

Porque há em nós, por mais que consigamos
Ser nós mesmos a sós sem nostalgia,
Um desejo de têrmos companhia -
O amigo como êsse que a falar amamos.
14-10-1930)

Se tudo o que há é mentira
É mentira tudo o que há.
De nada nada se tira
A nada nada se dá.

Se tanto faz que eu suponha
Uma coisa ou não com fé,
Suponho-a se ela é risonha,
Se não é, suponho que é.

Que o grande jeito da vida
É pôr a vida com jeito
Fana a rosa não colhida
Como a rosa posta ao peito.

Mais vale é o mais valer,
Que o resto urtigas o cobrem
E só se cumpra o dever
Para que as palavras sobrem.

(14-6-1932)

Basta pensar em sentir
Para sentir em pensar.
Meu coração faz sorrir
Meu coração a chorar.
Depois de parar e andar,
Depois de ficar e ir,
Hei de ser quem vai chegar
Para ser quem quer partir.

Viver é não conseguir.

(17-6-1932)

Como nuvens pelo céu
Passam os sonhos por mim.
Nenhum dos sonhos é meu
Embora eu os sonhe assim.

São coisas no alto que são
Enquanto a vista as conhece,
Depois são sombras que vão
Pelo campo que arrefece.

Símbolos? Sonhos? Quem torna
Meu coração ao que foi?
Que dor de mim me transtorna?
Que coisa inútil me dói?

(28-3-1930)

Quem vende a verdade, e a que esquina?
Quem dá a hortelã com que temperá-la?
Quem traz para casa a menina
E arruma as jarras da sala?

Quem interroga os baluartes
E conhece o nome dos navios?
Dividi o meu estudo inteiro em partes
E os títulos dos capítulos são vazios...

Meu pobre conhecimento ligeiro,
Andas buscando o estandarte eloquente
Da filarmônica de um Barreiro
Para que não há barco nem gente.

Tapeçarias de parte nenhuma
Quadros virados contra a parede...
Ninguém conhece, ninguém arruma
Ninguém dá nem pede.

Ó coração epitélico e macio,
Colcha de croché do anseio morto,
Grande prolixidade do navio
Que existe só para nunca chegar ao porto.

 
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