NUMA E A NINFA
Na rua não havia quem não apontasse a união daquele casal. Ela não era
muito alta, mas tinha uma fronte reta e dominadora, uns olhos de visada segura,
rasgando a cabeça, o busto erguido, de forma a possuir não sei que ar de
força, de domínio, de orgulho; ele era pequenino, sumido, tinha a barba rala,
mas todos lhe conheciam o talento e a ilustração. Deputado há bem duas
legislaturas, não fizera em começo grande figura; entretanto, supreendendo
todos, um belo dia fez um "brilhareto", um lindo discurso tão bom e
sólido que toda a gente ficou admirada de sair de lábios que até então ali
estiveram hermeticamente fechados.
Foi por ocasião do grande debate que provocou, na câmara, o projeto de
formação de um novo estado, com terras adquiridas por força de cláusulas de
um recente tratado diplomático.
Penso que todos os contemporâneos ainda estão perfeitamente lembrados do
fervor da questão e da forma por que a oposição e o governo se digladiaram em
torno do projeto aparentemente inofensivo. Não convém, para abreviar,
relembrar aspectos de uma questão tão dos nossos dias; basta que se recorde o
aparecimento de Numa Pompílio de Castro, deputado pelo Estado de Sernambi, na
tribuna da câmara, por esse tempo.
Esse Numa, que ficou, daí em diante, considerado parlamentar consumado e
ilustrado, fora eleito deputado, graças à influência do seu sogro, o Senador
Neves Cogominho, chefe da dinastia dos Cogominhos que, desde a fundação da
república, desfrutava empregos, rendas, representações, tudo o que aquela
mansa satrapia possuía de governamental e administrativo.
A história de Numa era simples. Filho de um pequeno empregado de um hospital
militar do Norte, fizera-se, à custa de muito esforço, bacharel em direito.
Não que houvesse nele um entranhado amor ao estudo ou às letras jurídicas.
Não havia no pobre estudante nada de semelhante a isso. O estudo de tais coisas
era-lhe um suplício cruciante; mas Numa queria ser bacharel, para ter cargos e
proventos; e arranjou os exames de maneira mais econômica. Não abria livros;
penso que nunca viu um que tivesse relação próxima ou remota com as
disciplinas dos cinco anos de bacharelado. Decorava apostilas, cadernos; e, com
esse saber mastigado, fazia exames e tirava distinções.
Uma vez, porém, saiu-se mal; e foi por isso que não recebeu a medalha e o
prêmio de viagem. A questão foi com o arsênico, quando fazia prova oral de
medicina legal. Tinha havido sucessivos erros de cópias nas apostilas, de modo
que Numa dava como podendo ser encontradas na glândula tireóide dezessete
gramas de arsênico, quando se tratam de dezessete centésimos de miligrama.
Não recebeu distinção e o rival passou-lhe a perna. O seu desgosto foi
imenso. Ser formado já era alguma coisa, mas sem medalha era incompleto!
Formado em direito, tentou advogar; mas, nada conseguindo, veio ao Rio,
agarrou-se à sobrecasaca de um figurão, que o fez promotor de justiça do tal
Sernambi, para livrar-se dele.
Aos poucos, com aquele seu faro de adivinhar onde estava o vencedor-qualidade
que lhe vinha da ausência total de emoção, de imaginação, de personalidade
forte e orgulhosa-, Numa foi subindo.
Nas suas mãos, a justiça estava a serviço do governo; e, como juiz de
direito, foi na comarca mais um ditador que um sereno apreciador de litígios.
Era ele juiz de Catimbau, a melhor comarca do Estado, depois da capital, quando
Neves Cogominho foi substituir o tio na presidência de Sernambi.
Numa não queria fazer mediocremente uma carreira de justiça de roça. Sonhava
a câmara, a Cadeia Velha, a Rua do Ouvidor, com dinheiro nas algibeiras, roupas
em alfaiates caros, passeio à Europa; e se lhe antolhou, meio seguro de obter
isso, aproximar-se do novo governador, captar-lhe a confiança e fazer-se
deputado.
Os candidatos à chefatura de polícia eram muitos, mas ele, de tal modo agiu e
ajeitou as coisas, que foi o escolhido.
O primeiro passo estava dado; o resto dependia dele. Veio a posse. Neves
Cogominho trouxera a família para o Estado. Era uma satisfação que dava aos
seus feudatários, pois havia mais de dez anos que lá não punha os pés.
Entre as pessoas da família, vinha a filha, a Gilberta, moça de pouco mais
de vinte anos, cheia de prosápias de nobreza, que as irmãs de caridade de um
colégio de Petrópolis lhe tinham metido na cabeça.
Numa viu logo que o caminho mais fácil para chegar a seu fim era casar-se com a
filha do dono daquela "comarca" longínqua do desmedido império do
Brasil.
Fez a corte, não deixava a moça, trazia-lhe mimos, encheu as tias (Cogominho
era viúvo) de presentes; mas a moça parecia não atinar com os desejos daquele
bacharelinho baço, pequenino, feio e tão roceiramente vestido. Ele não
desanimou; e, por fim, a moça descobriu que aquele homenzinho estava mesmo
apaixonado por ela. Em começo, o seu desprezo foi grande; achava até ser
injúria que aquele tipo a olhasse; mas, vieram os aborrecimentos da vida da
província, a sua falta de festas, o tédio daquela reclusão em palácio,
aquela necessidade de namoro que há em toda a moça, e ela deu-lhe mais
atenção.
Casaram-se, e Numa Pompílio de Castro foi logo eleito deputado pelo Estado
de Sernambi.
Em começo, a vida de ambos não foi das mais perfeitas. Não que houvesse
rusgas; mas, o retraimento dela e a gau cherie dele toldavam a vida íntima de
ambos.
No casarão de São Clemente, ele vivia só, calado a um canto; e Gilberta,
afastada dele, mergulhada na leitura; e, não fosse um acontecimento político
de certa importância, talvez a desarmonia viesse a ser completa.
Ela lhe havia descoberto a simulação do talento e o seu desgosto foi imenso
porque contava com um verdadeiro sábio, para que o marido lhe desse realce na
sociedade e no mundo. Ser mulher de deputado não lhe bastava; queria ser mulher
de um deputado notável, que falasse, fizesse lindos discursos, fosse apontado
nas ruas.
Já desanimava, quando, uma madrugada, ao chegar da manifestação do Senador
Sofonias, naquele tempo o mais poderoso chefe da política nacional, quase
chorando, Numa dirigiu-se à mulher:
- Minha filha, estou perdido!...
- Mas que há, Numa?
- Ele... O Sofonias...
- Que tem? que há? por quê?
A mulher sentia bem o desespero do marido e tentava soltar-lhe a língua. Numa,
porém, estava alanceado e hesitava, vexado em confessar a verdadeira causa do
seu desgosto. Gilberta, porém, era tenaz; e, de uns tempos para cá, dera em
tratar com mais carinho o seu pobre marido. Afinal, ele confessou quase em
pranto:
- Ele quer que eu fale, Gilberta.
- Mas, você fala...
- E fácil dizer... Você não vê que não posso... Ando esquecido... Há tanto
tempo... Na faculdade, ainda fiz um ou outro discurso; mas era lá, e eu
decorava, depois pronunciava.
- Faz agora o mesmo...
- E... Sim... Mas, preciso idéias... Um estudo sobre o novo Estado! Qual!
- Estudando a questão, você terá idéias...
Ele parou um pouco, olhou a mulher demoradamente e lhe perguntou de sopetão:
- Você não sabe aí alguma coisa de história e geografia do Brasil?
Ela sorriu indefinidamente com os seus grandes olhos claros, apanhou com uma das
mãos os cabelos que lhe caíram sobre a testa; e depois de ter estendido
molemente o braço meio nu sobre a cama, onde a fora encontrar o marido,
respondeu:
- Pouco... Aquilo que as irmãs ensinam; por exemplo: que o rio São Francisco
nasce na serra da Canastra.
Sem olhar a mulher, bocejando, mas já um tanto aliviado, o legislador disse:
- Você deve ver se arranja algumas idéias, e fazemos o discurso.
Gilberta pregou os seus grandes olhos na armação do cortinado, e ficou assim
um bom pedaço de tempo, como a recordar-se. Quando o marido ia para o aposento
próximo, despir-se, disse com vagar e doçura:
-Talvez.
Numa fez o discurso e foi um triunfo. Os representantes dos jornais, não
esperando tão extraordinária revelação, denunciaram o seu entusiasmo, e não
lhe pouparam elogios. O José Vieira escreveu uma crônica; e a glória do
representante de Sernambi encheu a cidade. Nos bondes, nos trens, nos cafés,
era motivo de conversa o sucesso do deputado dos Cogominhos:
- Quem diria, hein? Vá a gente fiar-se em idiotas. Lá vem um dia que eles se
saem. Não há homem burro - diziam-, a questão é querer...
E foi daí em diante que a união do casal começou a ser admirada nas ruas. Ao
passarem os dois, os homens de altos pensamentos não podiam deixar de olhar
agradecidos aquela moça que erguera do nada um talento humilde; e as meninas
olhavam com inveja aquele casamento desigual e feliz.
Daí por diante, os sucessos de Numa continuaram. Não havia questão em debate
na câmara sobre a qual ele não falasse, não desse o seu parecer, sempre
sólido, sempre brilhante, mantendo a coerência do partido, mas aproveitando
idéias pessoais e vistas novas. Estava apontado para ministro e todos esperavam
vê-lo na secretaria do Largo do Rossio, para que ele pusesse em prática as
suas extraordinárias idéias sobre instrução e justiça.
Era tal o conceito de que gozava que a câmara não viu com bons olhos
furtar-se, naquele dia, ao debate que ele mesmo provocara, dando um intempestivo
aparte ao discurso do Deputado Cardoso Laranja, o formidável orador da
oposição.
Os governistas esperavam que tomasse a palavra e logo esmagasse o adversário;
mas não fez isso.
Pediu a palavra para o dia seguinte e o seu pretexto de moléstia não foi bem
aceito.
Numa não perdeu tempo: tomou um tílburi, correu à mulher e deu-lhe parte da
atrapalhação em que estava. Pela primeira vez, a mulher lhe pareceu com pouca
disposição de fazer o discurso.
- Mas, Gilberta, se eu não o fizer amanhã, estou perdido!... E o ministério?
Vai-se tudo por água abaixo... Um esforço... E pequeno... De manhã, eu
decoro... Sim, Gilberta?
A moça pensou e, ao jeito da primeira vez, olhou o teto com os seus grandes
olhos cheios de luz, como a lembrar-se, e disse:
- Faço; mas você precisa ir buscar já, já, dois ou três volumes sobre
colonização... Trata-se dessa questão, e eu não sou forte. E preciso fingir
que se tem leituras disso... Vá!
- E os nomes dos autores?
- Não é preciso... O caixeiro sabe... Vá!
Logo que o marido saiu, Gilberta redigiu um telegrama e mandou a criada
transmiti-lo.
Numa voltou com os livros; marido e mulher jantaram em grande intimidade e não
sem apreensões. Ao anoitecer, ela recolheu-se à biblioteca e ele ao quarto.
No começo, o parlamentar dormiu bem; mas bem cedo despertou e ficou
surpreendido em não encontrar a mulher a seu lado. Teve remorsos. Pobre
Gilberta! Trabalhar até àquela hora, para o nome dele, assim obscuramente! Que
dedicação! E-coitadinha!-tão moça e ter que empregar o seu tempo em leituras
árduas! Que boa mulher ele tinha! Não havia duas... Se não fosse ela... Ah!
Onde estaria a sua cadeira? Nunca seria candidato a ministro... Vou fazer-lhe
uma mesura, disse ele
consigo. Acendeu a vela, calçou as chinelas e foi pé ante pé até ao
compartimento que servia de biblioteca.
A porta estava fechada; ele quis bater, mas parou a meio. Vozes abaladas...
Que seria? Talvez a Idalina, a criada... Não, não era; era voz de homem.
Diabo! Abaixou-se e olhou pelo buraco da fechadura. Quem era? Aquele tipo... Ah!
Era o tal primo... Então, era ele, era aquele valdevinos, vagabundo, sem eira
nem beira, poeta sem poesias, frequentador de chopes; então, era ele quem lhe
fazia os discursos? Por que preço?
Olhou ainda mais um instante e viu que os dois acabavam de beijar-se. A vista
se lhe turvou; quis arrombar a porta; mas logo lhe veio a idéia do escândalo e
refletiu. Se o fizesse, vinha a coisa a público; todos saberiam do segredo da
sua "inteligência" e adeus câmara, ministério e-quem sabe?-a
presidência da república. Que é que se jogava ali? A sua honra? Era pouco. O
que se jogava ali eram a sua inteligência, a sua carreira; era tudo! Não,
pensou ele de si para si, vou deitar-me.
No dia seguinte, teve mais um triunfo.