Clara dos Anjos
Lima Barreto
I
O carteiro Joaquim dos Anjos não era homem de serestas e serenatas; mas gostava
de violão e de modinhas. Ele mesmo tocava flauta, instrumento que já foi muito
estimado em outras épocas, não o sendo atualmente como outrora. Os velhos do
Rio de Janeiro, ainda hoje, se lembram do famoso Calado e das suas polcas, uma
das quais - "Cruzes, minha prima!" - é uma lembrança emocionante
para os cariocas que estão a roçar pelos setenta. De uns tempos a esta parte,
porém, a flauta caiu de importância, e só um único flautista dos nossos dias
conseguiu, por instantes, reabilitar o mavioso instrumento - delícia, que foi,
dos nossos pais e avós. Quero falar do Patápio Silva. Com a morte dele a
flauta voltou a ocupar um lugar secundário como instrumento musical, a que os
doutores em música, quer executantes, quer os críticos eruditos, não dão
nenhuma importância. Voltou a ser novamente plebeu.
Apesar disso, na sua simplicidade de nascimento, origem e condição, Joaquim
dos Anjos acreditava-se músico de certa ordem, pois, além de tocar flauta,
compunha valsas, tangos e acompanhamentos de modinhas.
Uma polca sua - "Siri sem unha" - e uma valsa - "Mágoas do
coração" - tiveram algum sucesso, a ponto de vender ele a propriedade de
cada uma, por cinqüenta mil-réis, a uma casa de músicas e pianos da rua do
Ouvidor.
O seu saber musical era fraco; adivinhava mais do que empregava noções
teóricas que tivesse estudado.
Aprendeu a "artinha" musical na terra do seu nascimento, nos arredores
de Diamantina, em cujas festas de igreja a sua flauta brilhara, e era tido por
muitos como o primeiro flautista do lugar. Embora gozando desta fama animadora,
nunca quis ampliar os seus conhecimentos musicais. Ficara na "artinha"
de Francisco Manuel, que sabia de cor; mas não saíra dela, para ir além.
Pouco ambicioso em musica, ele o era também nas demais manifestações de sua
vida. Desgostoso com a existência medíocre na sua pequena cidade natal, um
belo dia, aí pelos seus vinte e dois anos, aceitara o convite de um engenheiro
inglês que, por aquelas bandas, andava, a explorar terras e terrenos
diamantíferos, Todos julgavam que o "seu" mister andasse fazendo
isso; a verdade, porém, é que o sábio inglês fazia estudos desinteressados,
Fazia puras e platônicas pesquisas geológicas e mineralógicas. O diamante
não era o fim dos seus trabalhos; mas o povo, que teimava em ver, pelos
arredores da cidade, o ventre da terra cheio de diamantes, não podia supor que
um inglês que levava a catar pedras, pela manhã e até à noite, tomando notas
e com uns instrumentos rebarbativos, não estivesse com tais gatimonhas a caçar
diamantes. Não havia meio do mister convencer à simplória gente do lugar que
ele não queria saber de diamantes; e dia não havia em que o súdito de Sua
Graciosa Majestade não recebesse uma proposta de venda de terrenos, em que
forçosamente havia de existir a preciosa pedra abundantemente, por tais ou
quais indícios, seguros aos olhos de "garimpeiro" experimentado.
Logo ao chegar o geólogo, Joaquim empregou-se como seu pajem, guia,
encaixotador, servente, etc., e tanto foi obediente e serviu a contento o
sábio, que este, ao dar por terminadas as suas pesquisas, convidou-o a vir ao
Rio de Janeiro, encarregando-se de movimentar a sua pedregulhenta ou pedregosa
bagagem, até que ela fosse posta a bordo, O sábio comprometeuse a pagar-lhe a
estadia no Rio, o que fez, até embarcar-se para a Europa. Deu-lhe dinheiro para
voltar, um chapéu de cortiça, umas perneiras, um cachimbo e uma lata de fumo
"Navy Cut"; Joaquim já se havia habituado ao Rio de Janeiro, no mês
e pouco em que estivera aqui, a serviço do Senhor John Herbert Brown, da Real
Sociedade de Londres; e resolveu não voltar para Diamantina. Vendeu as
perneiras num belchior e o chapéu de cortiça também; e pôs-se a fumar o
saboroso fumo inglês no cachimbo que lhe fora ofertado, passeando pelo Rio,
enquanto teve dinheiro. Quando acabou, procurou conhecidos que já tinha; e, em
breve, entrou para o serviço de empregado de escritório de um grande advogado,
seu patrício, isto é, mineiro.
-Não te darei coisa que valha a pena - disse-lhe logo o doutor - -, mas aqui
irás travando conhecimentos e podes arranjar coisa melhor mais tarde.
Viu bem que o "doutor" lhe falava a verdade, e toda sua ambição se
cifrou em obter um pequeno emprego público que lhe desse direito a
aposentadoria e a montepio, para a família que ia fundar. Conseguira, ao fim de
dois anos de trabalho, aquele de carteiro, havia bem quatro lustros, com o qual
estava muito contente e satisfeito da vida, tanto mais que merecera sucessivas
promoções.
Casara meses depois de nomeado; e, tendo morrido sua mãe, em Diamantina, como
filho único, herdara-lhe a casa e umas poucas terras em Inhaí, uma freguesia
daquela cidade mineira. Vendeu a modesta herança e tratou de adquirir aquela
casita nos subúrbios em que ainda morava e era dele. O seu preço fora módico,
mas, mesmo assim, o dinheiro da herança não chegara, e pagou o resto em
prestações. Agora, porém, e mesmo há vários anos, estava em plena posse do
seu "buraco", como ele chamava a sua humilde casucha. Era simples.
Tinha dois quartos; um que dava para a sala de visitas e outro para a sala de
jantar, aquele ficava à direita e este à esquerda de quem entrava nela. À de
visitas, seguia-se imediatamente a sala de jantar. Correspondendo a pouco mais
de um terço da largura total da casa, havia, nos fundos, um puxadito, onde
estavam a cozinha e uma despensa minúscula. Comunicava-se esse puxadito com a
sala de jantar por uma porta; e a despensa, à esquerda, apertava o puxado, a
jeito de um curto corredor, até à cozinha, que se alargava em toda a largura
dele. A porta que o ligava à sala de jantar ficava bem junto daquela, por onde
se ia dessa sala para o quintal. Era assim o plano da propriedade de Joaquim dos
Anjos.
Fora do corpo da casa, existia um barracão para banheiro, tanque, etc., e o
quintal era de superfície razoável, onde cresciam goiabeiras, dois pés ou
três de laranjeiras, um de limão galego, mamoeiros e um grande tamarineiro
copado, bem aos fundos.
A rua em que estava situada a sua casa desenvolvia-se no plano e, quando chovia,
encharcava e ficava que nem um pântano; entretanto, era povoada e se fazia
caminho obrigado das margens da Central para a longínqua e habitada freguesia
de Inhaúma. Carroções, carros, autocaminhões que, quase diariamente, andam
por aquelas bandas a suprir os retalhistas de gêneros que os atacadistas lhes
fornecem, percorriam-na do começo ao fim, indicando que tal via pública devia
merecer mais atenção da edilidade.
Era uma rua sossegada e toda ela, ou quase toda, edificada ao gosto antigo do
subúrbio, ao gosto do chalet. Estava povoada e edificada quase inteiramente, de
um lado e de outro. Dela, descortinava-se um lindo panorama de montanhas de
cores cambiantes, conforme fosse a hora do dia e o estado da atmosfera.
Ficavam-lhe muito distantes, mas pareciam cercála, e ela, a rua, ser o eixo
daquele redondel de montes, em que, pelo dia em fora, pareciam ser iluminados
por projeções luminosas, revestindo-se de toda a gama do verde, de tons azuis;
e, pelo crepúsculo, ficavam cobertos de ouro e púrpura.
Além dos clássicos chalets suburbanos, encontravam-se outros tipos de casas.
Algumas relativamente recentes, uns certos requififes e galanteios modernos,
para lhes encobrir a estreiteza dos cômodos e justificar o exagero dos
aluguéis. Havia, porém, uma casa digna de ser vista. Erguia-se quase ao centro
de uma grande chácara e era a característica das casas das velhas chácaras
dos outros tempos; longa fachada, pouco fundo, teto acaçapado, forrada de
azulejos até a metade do pé-direito, Um tanto feia, é verdade, que ela era,
sem garridice; mas casando-se perfeitamente com as mangueiras, com as robustas
jaqueiras e os coqueiros petulantes e com todas aquelas grandes e pequenas
árvores avelhantadas, que, talvez, os que as plantaram não as tivessem visto
frutificar. Por entre elas, onde se podiam ver vestígios do antigo jardim,
havia estatuetas de louça portuguesa, com letreiros azuis. Uma era a
"Primavera"; outra era a "Aurora", quase todas, porém,
estavam mutiladas; umas, num braço; outras não tinham cabeça, e ainda outras
jaziam no chão, derrubadas dos seus toscos suportes.
Os muros que cercavam a casa, a razoável distância, e mesmo aquele em que se
apoiava o gradil de ferro da frente do imóvel, estavam cobertos de hera, que os
envolvia em todo ou em parte, não como um sudário, mas como um severo,
cerimonioso e vivo manto de outras épocas e de outras gentes, a provocar
saudades e evocações, animando a ruína. Hoje, é raro ver-se, no Rio de
Janeiro, um muro coberto de hera; entretanto, há trinta anos, nas Laranjeiras,
na rua Conde de Bonfim, no Rio Comprido, no Andaraí, no Engenho Novo, enfim, em
todos os bairros que foram antigamente estações de repouso e prazer,
encontravam-se, a cada passo, longos muros cobertos de hera, exalando melancolia
e sugerindo recordações.
Joaquim dos Anjos ainda conhecera a "chácara" habitada pelos
proprietários respectivos; mas, ultimamente, eles se tinham retirado para fora
e alugado aos "bíblias", Os seus cânticos, aos sábados (era o seu
dia da semana de descanso sagrado, entoados quase de hora em hora, enchiam a
redondeza e punham na sua audiência uma soturna sombra de misticismo. O povo
não os via com hostilidade, mesmo alguns humildes homens e pobres raparigas dos
arredores freqüentavam-nos, já por encontrar nisso um sinal de superioridade
intelectual sobre os seus iguais, já por procurarem, em outra casa religiosa
que não a tradicional, lenitivo para suas pobres almas alanceadas, além das
dores que seguem toda e qualquer existência humana.
Alguns, entre os quais o João Pintor, justificavam freqüentar os
"bíblias", porque estes - dizia ele - não eram como os padres, que,
para tudo, querem dinheiro.
Esse João Pintor trabalhava nas oficinas do Engenho de Dentro, no oficio de que
proviera o seu apelido. Era um preto retinto, grossos lábios, malares
proeminentes, testa curta, dentes muito bons e muito claros, longos braços,
manoplas enormes, longas pernas e uns tais pés, que não havia calçado, nas
sapatarias, que coubessem neles. Mandava-os fazer de encomenda; mas assim mesmo,
mal os punha hoje, no dia seguinte tinha que os retalhar a navalha, se queria
dar alguns passos e manquejar menos até o "Mafuá".
Dizia o "Turuna", adepto do padre Sodré, capelão do Santuário de
Nossa Senhora de Lourdes, que João Pintor se metera com os
"bíblias", porque estes lhe haviam dado um quarto, na chácara, para
ele morar de graça, com certas obrigações pequenas a cumprir. João Pintor
contestava com veemência; o certo, porém, é que ele morava na
"chácara".
Chefiava os protestantes um americano, Mr. Quick Shays, homem tenaz e cheio de
uma eloqüência bíblica, que devia ser magnífica em inglês; mas que, no seu
duvidoso português, se tornava simplesmente pitoresca. Era Shays Quick ou Quick
Shays daquela raça curiosa de yankees fundadores de novas seitas cristãs. De
quando em quando, um cidadão protestante dessa raça que deseja a felicidade de
nós outros, na terra e no céu, à luz de uma sua interpretação de um ou mais
versículos da Bíblia, funda uma novíssima seita, põe-se a propagá-la e logo
encontra dedicados adeptos, os quais não sabem muito bem por que foram para tal
novíssima religiãozinha e qual a diferença que há entre esta e a de que
vieram.
Lá, na sua terra, como aqui, esses pequenos luteros fazem prosélitos; lá,
mais do que aqui. Mr. Shays obtinha, nas vizinhanças do carteiro Joaquim dos
Anjos, não prosélitos, mas muitos ouvintes, dos quais uma quinta parte afinal
se convertia. Quando se tratava de iniciar uma turma, os noviços dormiam em
barracas de campanha, erguidas ao redor da casa, nos vãos existentes entre as
velhas árvores da chácara, maltratada e desprezada.
As cerimônias preparatórias à iniciação, na religião de Mr. Quick Shays,
duravam uma semana, farta de jejuns e cânticos religiosos, cheios de unção e
apelos contrictos a Deus, Nosso Pai; e a velha propriedade de recreio, com as
barracas militares e salmodias continuas, adquiria um aspecto esquisito e
imprevisto, o de convento ao ar livre, mascarado por uma rebarbativa carranca de
acampamento guerreiro. Dir-se-ia um destacamento de uma ordem de cavalaria
monástico-guerreira que se preparava para combater o turco ou o mouro infiel,
na Palestina ou em Marrocos.
Da redondeza, não eram muitos os adeptos ortodoxos à doutrinação religiosa
de Mr. Shays; entretanto, além das espécies que já foram aludidas, havia as
daqueles que assistiam às suas prédicas, por mera curiosidade ou para
deliciar-se com a oratória do pastor americano. O templo estava sempre cheio,
nos seus dias solenes.
Os freqüentadores dessa ou daquela natureza lá iam sem nenhuma repugnância,
pois é próprio do nosso pequeno povo fazer uma extravagante amálgama de
religiões e crenças de toda a sorte, e socorrer-se desta ou daquela, conforme
os transes e momentâneas agruras de sua existência. Se se trata de afastar
atrasos de vida, apela para a feitiçaria; se se trata de curar uma moléstia
tenaz e renitente, procura o espírita; mas não falem à nossa gente humilde em
deixar de batizar o filho pelo sacerdote católico, porque não há, dentre ela,
quem não se zangue: "Está doido! Meu filho ficar pagão! Deus me defenda!
Joaquim dos Anjos não freqüentava Mr. Shays nem o reverendo padre Sodré, do
Santuário de Nossa Senhora de Lourdes, pois, apesar de ter nascido numa cidade
embalsamada de incenso e plena de ecos sonoros de litanias e o continuo repicar
de sinos festivos, não era animado de grande fervor religioso. Sua mulher, Dona
Engrácia, porém, o era em extremo, embora fosse pouco à igreja, devido às
suas obrigações caseiras. Ambos, porém, estavam de acordo num ponto religioso
católico-romano: batizar quanto antes os filhos, na Igreja Católica
Apostólica Romana. Foi assim que procederam, não só com a Clara, o único
filho sobrevivente, como com os demais, que haviam morrido.
Eram casados há quase vinte anos, e esta Clara, sua filha, sendo o segundo
filho do casal, orçava pelos seus dezessete anos.
Era tratada pelos pais com muito desvelo, recato e carinho; e, a não ser com a
mãe ou pai, só saia com Dona Margarida, uma viúva muito séria, que morava
nas vizinhanças e ensinava a Clara bordados e costuras.
No mais, isto era raro e só acontecia aos domingos, Clara deixava, às vezes, a
casa paterna, para ir ao cinema do Méier ou Engenho de Dentro, quando a sua
professora de costuras se prestava a acompanhá-la, porque Joaquim não se
prestava, pois não gostava de sair aos domingos, dia escolhido a fim de se
entregar ao seu prazer predileto de jogar o solo com os companheiros habituais;
e sua mulher não só não gostava de sair aos domingos, como em outro dia da
semana qualquer. Era sedentária e caseira.
Os companheiros habituais do solo com Joaquim eram quase sempre estes dois: o
Senhor Antônio da Silva Marramaque, seu compadre, pois era padrinho de sua
filha única; e o Senhor Eduardo Lafões. Não variavam. Todos os domingos, ai
pelas nove horas, lá batiam à porteira da casa do "postal"; não
entravam no corpo da habitação e, pelo corredor que mediava entre ela e a
vizinha, dirigiam-se ao grande tamarineiro, aos fundos do quintal, debaixo do
qual estava armada a mesa, com os seus tentos, vermelhos e pupilas negras, de
grão de aroeira, o seu baralho, os seus pires, um cálice e um litro de parati,
ao centro, muito pimpão e arrogante, impondo um cínico desafio às
conveniências protocolares.
Joaquim dos Anjos já esperava, lendo o jornal de sua predileção. Mal
chegavam, trocavam algumas palavras, sentavam-se, "molhavam a
palavra", no litro de cachaça, e punham-se a jogar. Ficha a vintém.
Horas e horas, esperando o "ajantarado", que quase sempre ia para a
mesa à hora do jantar habitual, deixavam-se ficar jogando, bebericando
aguardente, sem dar uma vista d'olhos sobre as montanhas circundantes, nuas e
pedroucentas, que recortavam o alto horizonte.
De quando em quando, mas sem grandes espaços, Joaquim gritava para a cozinha:
-Clara! Engrácia! Café!
De lá, respondiam, com algum amuo na voz:
-Já vai!
É que as duas mulheres, para preparar o café, tinham que retirar, de um dos
dois fogareiros de carvão vegetal, uma panela do "ajantarado" que
aprontavam, a fim de aquecer o café reclamado; e isto lhes atrasava o jantar.
Enquanto esperavam o café, os três suspendiam o jogo e conversavam um pouco.
Marramaque era e sempre havia sido mais ou menos político, a seu modo.
Embora atualmente fosse um simples contínuo de ministério, em que não fazia o
serviço respectivo, nem outro qualquer, devido a seu estado de invalidez, de
semi-aleijado e semiparalítico do lado esquerdo, tinha, entretanto, pertencido
a uma modesta roda de boêmios literatos e poetas, na qual, a par da poesia e de
coisas de literatura, se discutia muita política, hábito que lhe ficou. Quando
veio a revolta de 93, a roda se dissolveu. Uns foram acompanhar o Almirante
Custódio; e outros, o Marechal Floriano. Marramaque foi um destes e até obteve
as honras de alferes do Exército. Por ai é que teve a primeira congestão,
isto é, nos fins do governo do marechal, em 94.
A sua roda não tinha ninguém de destaque, mas alguns eram estimáveis. Mesmo
alguns de rodas mais cotadas procuravam a dele.
Quando narrava episódios dessa parte de sua vida, tinha grande garbo e orgulho
em dizer que havia conhecido Paula Nei e se dava com Luís Murat. Não mentia,
enquanto não confessasse a todos em que qualidade fizera parte do grupo
literário. Os que o conheciam, daquela época, não ocultavam o título com que
partilhava a honra de ser membro de um cenáculo poético. Tendo tentado
versejar, o seu bom senso e a integridade de seu caráter fizeram-lhe ver logo
que não dava para a coisa. Abandonou e cultivou as charadas, os logogrifos,
etc. Ficou sendo um hábil charadista e, como tal, figurava quase sempre como
redator ou colaborador dos jornais, que os seus companheiros e amigos de boêmia
literária, poetas e literatos, improvisavam do pé para a mão, quase sempre
sem dinheiro para um terno novo. Envelhecendo e ficando semi-inutilizado, depois
de dois ataques de apoplexia, foi obrigado a aceitar aquele humilde lugar de
contínuo, para ter com que viver. Os seus méritos e saber, porém, não
estavam muito acima do cargo. Aprendera muita coisa de ouvido e, de ouvido,
falava de muitas delas. Tivera, em moço, uma boa convivência. Estava ai o
segredo de sua ilustração. Marramaque, apesar de tudo, do seu estado de
saúde, da sua dificuldade de locomover-se, não deixava a mania inócua da
política e ia votar, com risco de se ver envolvido num barulho de sufrágio
universal, puxado a navalha, rabo-de-arraia, cabeçadas, tiros de revólver e
outras eloqüentes manifestações eleitorais, das quais, em razão do seu
precário estado de pernas, não poderia fugir com segurança e a necessária
rapidez.
Tendo vivido em rodas de gente fina - como já vimos - -, e não pela fortuna,
mas pela educação e instrução; tendo sonhado outro destino que não o que
tivera; acrescendo a tudo isto o seu aleijamento - Marramaque era naturalmente
azedo e oposicionista, Naquele domingo, ele o tirara para falar mal do doutor
Saulo de Clapin.
-Vocês vão ver: o Clapin está aí, está morto na política, Teve o topete de
ir contra a corrente popular, espetou-se. Quem ganhou foi o barbudo Melo
Brandão, esse judeu mestiçado. É um safadão, mas é mestre na política.
Joaquim se interessava mediocremente por essa história de política: mas
Lafões tinha as suas paixões no negócio e acudiu:
-Qual o quê! Então você pensa, Marramaque, que um homem inteligente, tão
superior, como o doutor Clapin, vai se deixar embrulhar por um trapaceiro de
atas e coisas piores como o Melo Brandão! Qual o quê! Demais, o operariado...
-O que é que ele tem feito pelo operariado? - pergunta Marramaque.
-Muito.
Lafões não era operário, como se poderia pensar. Era guarda das obras
públicas. Português de nascimento, viera menino para o Brasil, isto há mais
de quarenta anos; entrara muito cedo para a repartição de águas da cidade,
chamara a atenção dos seus superiores pelo rigor de sua conduta; e, aos
poucos, fizeram-no chegar a seu generalato de guarda de encanamentos e de
torneiras que vazassem nos tanques de lavagem das casas particulares. Vivia
muito contente com a sua posição, a sua portaria de nomeação, a sua carta de
naturalização, e, talvez, não estivesse tanto, se tivesse enriquecido de
centenas de contos de réis. Assim tudo fazia crer, pois era de ver a
importância ingênua do campônio que se faz qualquer coisa do Estado, e a
solenidade de maneiras com que ele atravessava aquelas virtuais ruas dos
subúrbios.
Trazia sempre a farda de cáqui e o boné com as iniciais da repartição; um
chapéu-de-sol de cabo, que, quando não o trazia aberto, a protegê-lo contra
os raios do sol, manejava como a bengala de um vigário de aldeia portuguesa,
furando o chão e levantando-o, para pousá-lo de novo, à medida que executava
as suas longas passadas.
Lafões respondeu assim a Marramaque:
-Muito. Em todas as comissões por que o doutor Clapin tem passado, sempre
procura dar trabalho ao maior número de operários.
-Grande serviço! Arrebenta as verbas; no fim de dois ou três meses, despede
mais da metade... Isto não se chama proteger; chama-se engazopar.
-Seja, mas ele ainda faz isso, e os outros? Não fazem nada. De resto, é um
homem democrata. Desde muito que se bate pela igualdade entre os servidores da
nação. Não quer distinção entre funcionários públicos e jornaleiros. Quem
serve à nação, seja em que serviço for, é funcionário público.
-Honrarias! Isto não enche barriga! Por que ele não trabalha para diminuir a
carestia da vida e dos aluguéis de casa?
-Homessa, Marramaque! Você não leu o projeto dele sobre construção de casas
para famílias pobres e modestas? Você não leu, Joaquim?
O carteiro, que vinha ouvindo a conversa sem dar opinião, à interpelação de
Lafões, interveio:
-Li, de fato; mas li também que ele havia aumentado os aluguéis de suas casas,
que são inúmeras, de quarenta por cento.
-É isto! - acudiu com pressa Marramaque. - Clapin é muito generoso com o
dinheiro dos outros, do Estado. Com o dele, é de uma sovinice de judeu e de uma
ganância de agiota. Jesuíta!
Felizmente Clara chegava com o café. A conversa apaixonada cessava, e os dois
convivas de Joaquim recebiam os cumprimentos da menina:
-A bênção, meu padrinho; bom dia, seu Lafões.
Eles respondiam e punham-se a pilheriar com Clara.
Dizia Marramaque:
-Então, minha afilhada, quando se casa?
-Nem penso nisso - respondia ela, fazendo um trejeito faceiro.
-Qual! - observa Lafões. - A menina já tem algum de olho. Olhe, no dia dos
seus anos... É verdade, Joaquim: uma coisa.
O carteiro descansou a xícara e perguntou:
-O que é?
-Queria pedir a você autorização para cá trazer, no dia dos anos, aqui da
menina, um mestre do violão e da modinha.
Clara não se conteve e perguntou apressada:
-Quem é?
Lafões respondeu:
-É o Cassi. A menina...
O guarda das obras públicas não pôde acabar a frase. Marramaque interrompeu-o
furioso:
-Você dá-se com semelhante pústula? É um sujeito que não pode entrar em
casa de família. Na minha, pelo menos...
-Por quê? - indagou o dono da casa.
-Eu direi, daqui a pouco; eu direi por quê - fez Marramaque transtornado.
Acabaram de tomar café. Clara afastou-se com a bandeja e as xícaras, cheia de
uma forte, tenaz e malsã curiosidade:
-Quem seria esse Cassi?
I
Quem seria esse Cassi? Quem era Cassi?
Cassi Jones de Azevedo era filho legítimo de Manuel Borges de Azevedo e
Salustiana Baeta de Azevedo. O Jones é que ninguém sabia onde ele o fora
buscar, mas usava-o, desde os vinte e um anos, talvez, conforme explicavam
alguns, por achar bonito o apelido inglês. O certo, porém, não era isso. A
mãe, nas suas crises de vaidade, dizia-se descendente de um fantástico Lord
Jones, que fora cônsul da Inglaterra, em Santa Catarina; e o filho julgou de
bom gosto britanizar a firma com o nome do seu problemático e fidalgo avô.
Era Cassi um rapaz de pouco menos de trinta anos, branco, sardento,
insignificante, de rosto e de corpo; e, conquanto fosse conhecido como consumado
"modinhoso", além de o ser também por outras façanhas
verdadeiramente ignóbeis, não tinha as melenas do virtuose do violão, nem
outro qualquer traço de capadócio, Vestia-se seriamente, segundo as modas da
rua do Ouvidor; mas, pelo apuro forçado e o degagé suburbanos, as suas roupas
chamavam a atenção dos outros, que teimavam em descobrir aquele
aperfeiçoadíssimo "Brandão", das margens da Central, que lhe
talhava as roupas. A única pelintragem, adequada ao seu mister, que
apresentava, consistia em trazer o cabelo ensopado de óleo e repartido no alto
da cabeça, dividido muito exatamente ao meio - a famosa "pastinha".
Não usava topete, nem bigode. O calçado era conforme a moda, mas com os
aperfeiçoamentos exigidos por um elegante dos subúrbios, que encanta e seduz
as damas com o seu irresistível violão.
Era bem misterioso esse seu violão; era bem um elixir ou talismã de amor.
Fosse ele ou fosse o violão, fossem ambos conjuntamente, o certo é que, no seu
ativo, o Senhor Cassi Jones, de tão pouca idade, relativamente, contava perto
de dez defloramentos e a sedução de muito maior número de senhoras casadas.
Todas essas proezas eram quase sempre seguidas de escândalo, nos jornais, nas
delegacias, nas pretorias; mas ele, pela boca dos seus advogados, injuriando as
suas vitimas, empregando os mais ignóbeis meios da prova de sua inocência, no
ato incriminado, conseguia livrar-se do casamento forçado ou de alguns anos na
correção.
Quando a polícia ou os responsáveis pelas vítimas, pais, irmãos, tutores,
punham-se em campo para processá-lo convenientemente, ele corria à mãe, Dona
Salustiana, chorando e jurando a sua inocência, asseverando que a tal fulana -
qualquer das vítimas - já estava perdida, por esse ou por aquele; que fora uma
cilada que lhe armaram, para encobrir um mal feito por outrem, e por o saberem
de boa família, etc., etc.
Em geral, as moças que ele desonrava eram de humilde condição e de todas as
cores. Não escolhia. A questão é que não houvesse ninguém, na parentela
delas, capaz de vencer a influência do pai, mediante solicitações maternas.
A mãe recebia-lhe a confissão, mas não acreditava; entretanto, como tinha as
suas presunções fidalgas, repugnava-lhe ver o filho casado com uma criada
preta, ou com uma pobre mulata costureira, ou com uma moça branca lavadeira e
analfabeta.
Graças a esses seus preconceitos de fidalguia e alta estirpe, não trepidava em
ir empenhar-se com o marido, a fim de livrar o filho da cadeia ou do casamento
pela policia.
-Mas é a sexta moça, Salustiana!
-Qual o quê! Calunia-se muito...
-Qual calúnia, qual nada! Este rapaz é um perverso, é sem-vergonha. Eu sei o
nome das outras. Olhe: a Inês, aquela crioulinha que foi nossa copeira e criada
por nós; a Luísa, que era empregada do doutor Camacho; a Santinha, que ajudava
a mãe a costurar para fora e morava na rua Valentim; a Bernarda, que trabalhava
no "Joie de Vivre"...
-Mas tudo isso já passou, Maneco. Você quer que o seu filho vá para a cadeia?
Porque, casar com essas biraias, ele não se casa. Eu não quero.
-Era preferível que ele fosse para a cadeia, ao menos não estava
desmoralizando todo o dia a casa.
-Pois você faça o que quiser. Se você não der os passos, eu dou. Vou
procurar o meu irmão, o doutor Baeta Picanço - rematava a mulher com orgulho.
O pai desse Cassi era verdadeiramente um homem sério, Estreito de idéias,
familiarizado no emprego público, que, há cerca de trinta anos, exercia, ele
tinha profundos sentimentos morais, que lhe guiavam a conduta no seu comércio
com os filhos. Nunca fora afetuoso: evitava até todas as exibições e exageros
sentimentais; era, porém, capaz de estimá-los profundamente, amá-los, sem
abdicar, entretanto, do dever paterno de julgálos lucidamente e puni-los
consoante a natureza das suas respectivas faltas.
Era homem de pouca altura, trazia a cabeça sempre erguida, testa reta e alta,
queixo forte e largo, olhar firme, debaixo do seu pince-nez de aros de ouro.
Conquanto alguma coisa obeso, era deveras um velho simpático e respeitável; e,
apesar da sua imponência de antigo burocrata, dos seus modos um tanto ríspidos
e secos, todos o estimavam na proporção em que seu filho era desprezado e
odiado. Tinham até pena dele, confrontando a severidade de sua vida com a
crapulice de Cassi.
Sua mulher não era lá muito querida, nem prezada. Tinha fumaças de grande
dama, de ser muito superior às pessoas de sua vizinhança e mesmo às dos seus
conhecimentos. O seu orgulho provinha de duas fontes: a primeira, por ter um
irmão médico do Exército, com o posto de capitão; e a segunda, por ter
andado no Colégio das Irmãs de Caridade.
Quando se lhe perguntava - seu pai, o que era? - Dona Salustiana respondia: era
do Exército; e torcia a conversa. Não era seu pai exatamente do Exército.
Fora simplesmente escriturário do Arsenal de Guerra. Com muito sacrifício e
graças a uma pequena fortuna que lhe viera ter por acaso às mãos, pudera
educar melhorzinho os dois únicos filhos que tivera.
A vaidade de Dona Salustiana não deixava que ela confessasse isso; e tanto era
contagioso esse seu sentimento, no que tocava a seu pai, que as suas duas
filhas, Catarina e Irene, sempre se referiam ao avô, como se fosse de verdade
um general do Paraguai. Eram menos vaidosas do que a mãe; mas muito mais
ambiciosas, em matéria de casamento. Dona Salusiana casara-se com o Manuel,
quando este ainda era praticante e revia provas, à noite, nos jornais, para
acudir às despesas da casa. Catarina e Irene sonhavam casar com doutores, bem
empregados ou ricos, porque elas se julgavam prestes a se "formar", a
primeira em música e piano, pelo trampolineiro Instituto Nacional de Música; e
a segunda, pela indigesta Escola Normal desta Capital.
Escusado é dizer que ambas tinham um grande desprezo pelo irmão, não só pela
baixeza de sua conduta moral - o que era merecido - mas, também, pela sua
ignorância cavalar e absoluta falta de maneiras e modos educados.
Em começo, o pai consentia, apesar de tudo, que Cassi, o ínclito Cassi,
tomasse parte na mesa familiar. Ninguém lhe dirigia a palavra, a não ser a
mãe, As moças conversavam com o pai ou com a mãe, ou entre si; e, se ele se
animava a dizer qualquer coisa, o velho Manuel olhava-o severamente e as filhas
calavam-se.
Houve um acontecimento doloroso, provocado pela perversidade de Cassi, que fez o
pai tomar a deliberação extrema de expulsá-lo de casa e da mesa doméstica.
Não foi expulso de todo, devido à intervenção de Dona Salustiana; mas o foi
em meio.
Entre as relações de suas irmãs, havia uma moça muito pobre, que morava na
redondeza. Sua mãe era viúva de um capitão do Exército, e ela, a Nair, era
filha única. Com auxílio de alguns parentes, a viúva ia encaminhando a filha,
nos estudos próprios de seu sexo. Ela tinha tendência para música e procurou
aproximar-se de Catarina, para explicar-lhe a matéria. Contava dezoito anos,
muito risonha, de um amorenado sombrio, cabelos muito negros, pequenina e viva,
com os seus olhinhos irrequietos e luminosos.
Cassi a viu e logo a teve como boa presa, apesar de não ser totalmente sem
apoio. Quis entabular namoro, na própria casa do pai, quando Nair vinha receber
lições da irmã dele. Esta, porém, percebendo a manobra, proibiu-lhe, sob
ameaça de contar ao pai, que ele viesse à sala, quando estivesse dando lição
a Nair. O nome do pai apavorava Cassi, não que o estimasse e, por isso, o
respeitasse deveras; mas porque "o velho", severo como era, bem podia
pô-lo de vez na rua. Se isso viesse a acontecer, não teria para onde ir, e o
pouco que ganhava, no jogo, em brigas de galos e em comissões de agente de
empréstimos, etc., seria absorvido para a casa e comida, pouco ou quase nada
sobrando para roupas, sapatos e gravatas. Ele, sem isto tudo, estava perdido.
Adeus amor! Se o quisesse, tinha que pagar...
Considerando tal hipótese, não relutou em obedecer à irmã; mas começou a
cercar Nair "por fora". Quando ela ia sair, precedia-a, ficava na
porta da padaria, cumprimentava. Afinal, pôde conversar e declarar-se com a
fatídica carta, que era a reprodução de um modelo que lhe dera um companheiro
de malandragem, o Ataliba do Timbó, o qual, por sua vez, tinha obtido de um
poeta "porrista" que morava na Piedade. Esse poeta, a quem o
"intruso" Ataliba qualificava tão superiormente e de tal maneira, era
o célebre Leonardo Flores, que o Brasil todo conhece e viveu uma vida pura,
inteiramente de sonhos.
Enfim, a pequena Nair, inexperiente, em plena crise de confusos sentimentos, sem
ninguém que lhe pudesse orientar, acreditou nas lábias de Cassi e deu o passo
errado. A mãe veio a descobrir-lhe a falta, que se denunciava pelo estado do
seu ventre. Correu ao Senhor Manuel, que não estava. Falou a Dona Salustiana e
esta, empertigando-se toda, disse secamente:
-Minha senhora, eu não posso fazer nada. Meu filho é maior.
-Mas, se a senhora o aconselhasse como mãe que é, e de filhas, talvez
obtivesse alguma coisa. Tenha piedade de mim e da minha, minha senhora.
E pôs-se a chorar e a soluçar.
Dona Salustiana respondeu amuada, sem demonstrar o mínimo enternecimento por
aquela dor inqualificável:
-Não posso fazer nada, no caso, minha senhora. Já lhe disse. A senhora recorra
à justiça, à polícia, se quiser. É o único remédio.
A mãe de Nair acalmou-se um pouco e observou:
-Era o que eu queria evitar. Será uma vergonha para mim e para a senhora e
família.
-Nós nada temos com o que Cassi faz. Se fosse nossa filha...
Não acabou a indireta injuriosa; levantou-se e estendeu a mão à desolada
mãe, como que a despedindo.
A viúva saiu cabisbaixa; e, dali, foi à audiência do delegado distrital e
expôs tudo. O delegado disse-lhe:
-Apesar de estar ainda não há seis meses neste distrito, sei bem quem é esse
patife de Cassi. O meu maior desejo era embrulhá-lo num bom e sólido processo;
mas não posso, no seu caso. A senhora não é miserável, possui as suas
pensões de montepio e meio soldo; e eu só posso tomar a iniciativa do processo
quando a vítima é filha de pais miseráveis, sem recursos.
-Mas, não há remédio, doutor?
-Só a senhora constituindo advogado.
-Ah! Meu Deus! Onde vou buscar dinheiro para isso? Minha filha, desgraçada, meu
Deus!
E pôs-se a chorar copiosamente. Quando serenou, o delegado mandou que um
empregado da delegacia acompanhasse a senhora até em casa e ficou a pensar nas
baixezas, nas dores, nas misérias que as casas encobrem e que, todo o dia,
descobria, por dever de ofício.
No dia seguinte, a mãe de Nair suicidava-se com lisol. Os jornais esgravataram
o acontecimento e contaram as causas do suicídio com todos os pormenores.
Manuel de Azevedo, o pai de Cassi, quando leu no trem o jornal, saltou na
primeira estação, voltou e entrou pela casa adentro que nem um furacão,
transtornado de fisionomia, com rictus de ódio que o fazia outro homem muito
diferente daquele reservado, bondoso e simpático burocrata que era.
-Quedê ele?
-Quem? - perguntou-lhe a mulher.
-Ele, esse Cassi - fez ele com os punhos cerrados, a errar o olhar desvairado,
pelos quatro cantos da sala.
-Mas que há, homem? - fez a mulher assustada.
-Lê isto.
Deu-lhe o jornal, apontando o local do suicídio.
-Mas que culpa tem...
Não acabou a frase, Dona Salustiana; o marido logo a interrompeu:
-Culpa! Esse biltre sem senso moral algum; esse assassino, esse desgraçado que
leva a corromper todas as moças e senhoras que lhe passam debaixo dos olhos,
não o quero mais aqui, não o quero mais na minha mesa. Diga-lhe isto,
Salustiana; diga-lhe isto, enquanto não o mato.
As filhas tinham chegado e adivinharam a causa daquela explosão de ódio e
raiva, coisa rara no pai. Procuraram acalmá-lo:
-Sossegue, papai; sossegue.
Catarina, que passara os olhos pelo jornal, muito sofreu com a desonra de Nair.
Lamentou sinceramente o trágico desfecho da mãe da sua discípula gratuita; e
assim falou ao pai:
-Olhe, papai; eu me sinto em alguma coisa culpada, porque trouxe Nair para aqui,
a fim de estudar música comigo.
Depois de uma pausa acrescentou:
-Que se há de fazer? É a fatalidade.
-Não o quero mais aqui - repetiu o chefe da família.
Os jornais não se deixaram ficar na simples noticia do suicídio. Revolveram a
vida de Cassi; contaram-lhe as proezas; e ele, a conselho de sua mãe, foi
passar uns tempos na casa do tio, o doutor, que tinha uma fazendola em
Guaratiba. Pela narração dos quotidianos, pôde-se organizar toda a rede de
insídias, de cavilosas mentiras, de falsas promessas, com que ele tinha cercado
a pobre e ingênua vítima, cuja desonra determinou o suicídio da mãe. Ele,
como de hábito, não falava de seus namoros a ninguém, muito menos a seu pai e
a sua mãe; entretanto, para ganhar a confiança da pobre menina, dizia na carta
que dissera à mãe que muito a amava ou textualmente: "confessei a mamãe
que lhe amava loucamente" e avisavalhe: "privino-lhe que não ligues
ao que lhe disserem, por isso pesso-te que preze bem o meu sofrimento"; e,
assim nessa ortografia e nessa sintaxe, acabava: "Pense bem e veja se
estás resolvida a fazer o que dissestes na tua cartinha", etc.
Confessava-se um infeliz "que tanto lhe adora" e lamentava não ser
correspondido.
Em outra, mostrava-se interessado pela saúde de Nair; e, depois de dar
instruções como devia deixar a janela para que ele a pulasse, contava:
"tão depressa soube que estavas de cama fui ao doutor R. S. saber o que
você tinha, ele disse-me que você tinha feito a loucura de molhar os peis na
água fria" etc., etc. Nessa altura, entrava em detalhes secretos da vida
feminina e aduzia: "foi uma grande tristeza em saber que o doutor R. S.
sabe de teus particulares moral" (sic).
No fim da missiva, ou quase, dizia: "enfim que eu devo fazer se você não
quer ser inteiramente minha como eu sou teu."
Não se demorou muito na casa do tio. O doutor, orgulho de sua irmã Salustiana
e protetor sempre por ela posto em foco para as despudoradas aventuras do
sobrinho, desconfiando que este tramava uma das suas, nos arredores do seu
sítio, sem mais detença, embarcou-o para a casa da irmã, mãe de Cassi,
dizendo-lhe que ficasse com o filho, porque sobrinho como aquele, ele, doutor
Baeta Picanço, desejava nunca tê-lo em casa.
Não foi logo diretamente para a casa paterna, que era numa das primeiras
estações de quem vem da Central. Ficou pelo Engenho de Dentro, de onde mandou,
por Ataliba do Timbó, um bilhete à mãe, pedindo instruções. A mãe
respondeu-lhe que viesse para casa; mas evitasse, por todos os meios,
encontrar-se com o pai. Tinha ela arranjado as coisas, e ele teria sempre onde
comer e dormir.
Foi-lhe reservado o porão, na parte dos fundos, e a chácara, como recreio,
onde raramente o pai ia. Jantava, almoçava e tomava café, no compartimento do
porão onde morava. Logo na primeira manhã que despertou no seu humilhante
aposento familiar, pensou logo em ir ver as suas gaiolas de galos de briga - o
bicho mais hediondo, mais antipático, mais repugnantemente feroz que é dado a
olhos humanos ver. Estavam em ordem; sua mãe cuidara deles, como lhe pedira.
Galos de briga eram a força de suas indústrias e do seu comércio equívocos.
Às vezes, ganhava bom dinheiro nas apostas de rinhadeiro, o que vinha ressarcir
os prejuízos que, porventura, anteriormente houvesse tido nos dados; e, assim,
conseguia meios para saldar o alfaiate ou comprar sapatos catitas e gravatas
vistosas. Com os galos, fazia todas as operações possíveis, a fim de ganhar
dinheiro; barganhava-os, com "volta", vendia-os, chocava as galinhas,
para venda dos frangos a criar e educar, presenteava pessoas importantes, das
quais supusesse, algum dia, precisar do auxilio e préstimos delas, contra a
polícia e a justiça.
Incapaz de um trabalho continuado, causava pasmo vê-lo cuidar todas as manhãs
daqueles horripilantes galináceos, das ninhadas, às quais dava milho moído,
triguilho, examinando os pintainhos, um por um, a ver se tinham bouba ou gosma.
Fosse se deitar a que hora fosse, pela manhã lá estava ele atrapalhado com os
galos malaios e a sua descendência de frangos e pintos.
Nunca suportara um emprego, e a deficiência de sua instrução impedia-o que
obtivesse um de acordo com as pretensões de muita coisa que herdara da mãe;
além disso, devido à sua educação solta, era incapaz para o trabalho
assíduo, seguido, incapacidade que, agora, roçava pela moléstia. A mórbida
ternura da mãe por ele, a que não eram estranhas as suas vaidades pessoais,
junto à indiferença desdenhosa do pai, com o tempo, fizeram de Cassi o tipo
mais completo de vagabundo doméstico que se pode imaginar. É um tipo bem
brasileiro.
Se já era egoísta, triplicou de egoísmo. Na vida, ele só via o seu prazer,
se esse prazer era o mais imediato possível. Nenhuma consideração de amizade,
de respeito pela dor dos outros, pela desgraça dos semelhantes, de ditame moral
o detinha, quando procurava uma satisfação qualquer. Só se detinha diante da
força, da decisão de um revólver empunhado com decisão. Então, sim...
Algumas boas lhe aconteceram. Tinha ele notado que uma moçoila com livros e
attirail de normalista, na viagem de trem, o olhava muito.
Marcou-lhe a fisionomia e, ao dia seguinte, à mesma hora, pôs-se, na
estação, à espera dela; não veio. Esperou outro trem, não veio. Assim,
esperou diversos. No outro dia, após esse, foi mais feliz; ela veio. Procurou
lugar conveniente e pôs-se a fazer trejeitos. A moça não lhe deu
importância, Durante dias, insistiu. Um belo dia, ele vai muito calmo, à cata
da ingrata, quando ela apareceu acompanhada de um rapaz, que, pela intimidade
com que a tratava e pela idade que revelava à primeira vista, parecia ser
irmão ou marido da moça. Habituado a lidar com parentes dessa natureza, mas
fracos, não se intimidou. Os dois no banco, ao lado dele, seguem viagem,
palestrando calmamente. Cassi os olha insistentemente. Chegam à Central, e o
rapaz despede-se da moça, que segue para a sua escola. Voltase o cavalheiro e
procura com o olhar o Senhor Cassi.
-É o senhor?
Cassi Jones responde:
-Sou eu.
-Desejava muito falar-lhe. Vamos à confeitaria; é coisa particular, e nós lá
estaremos à vontade tomando um vermouth.
Cassi fica com a pulga atrás da orelha e acompanha o desconhecido, que, com ar
risonho e caminhando, vai dizendo:
-O senhor talvez não me conheça. Porém eu, meu caro senhor, o conheço muito
bem. Nos subúrbios, todos conhecem as suas habilidades, Senhor Cassi Jones; e,
embora esteja lá morando há pouco, já tive notícias do seu valimento.
Cassi assustava-se com a calma do rapaz e pôs-se a medir-lhe os músculos. Não
trouxera a navalha, porque tinha medo de ser preso, por causa do negócio da
Nair e do suicídio da mãe dela; e armado... Mediu a musculatura do
desconhecido. Era antes fraco do que forte, mas parecia disposto. Chegaram à
confeitaria e sentaram-se. O caixeiro serviu vermouth; e, quando iam em meio, o
outro disse ex-abrupto para Cassi:
-O senhor sabe quem é aquela moça que vinha a meu lado?
Colhido de surpresa, não pôde tergiversar e disse prontamente:
-Não sei absolutamente.
-É minha irmã - afirmou o desconhecido.
- Também não sabia - respondeu docilmente o terrível Cassi,
- Não podia saber naturalmente - justificou o rapaz. - Saio cedo de casa para o
escritório e volto tarde, pois janto e almoço na cidade. Agora, eu chamei o
senhor para lhe dizer uma coisa: se o senhor continua a perseguir minha irmã,
meto-lhe cinco tiros na cabeça.
Ao dizer isto, foi tirando dos bolsos de dentro do paletó um magnífico Smith
& Wesson, muito reluzente e com um luxuoso cabo de madrepérola.
Cassi redobrou o esforço para não denunciar o susto e, simulando calma, disse:
- Mas, meu caro senhor, creio que nunca faltei com o respeito devido à senhora
sua irmã.
- É verdade; mas é preciso deixar de persegui-la - confirmou o outro e logo
acrescentou, como que dando por acabada a entrevista:
- Quer tomar alguma coisa mais?
- Não; muito obrigado.
Despediram-se, sem se apertarem as mãos; e Cassi foi para a sua roda de Ataliba
do Timbó, Zezé Mateus, Franco Sousa e Arnaldo.
Um deles perguntou-lhe:
- O que queria aquele sujeito contigo?
- Nada. É meu vizinho e, sabendo que sou morador antigo, pediume que lhe
arranjasse um cavalo para vender, que ele me dava uma comissão.
Cassi era assim e assim mantinha a sua fama de valente. Não julguem que tinha
estima e amizade por esses rapazes que andavam sempre com ele. Ele não os
amava, como não amava ninguém e com ninguém simpatizava. Era uma coorte digna
dele, que o iludia do vácuo feito em torno dele, por todos os rapazes daquelas
bandas.
Ataliba do Timbó era um mulato claro, faceiro, bem apessoado, mas antipático
pela sua falsa arrogância e fatuidade. Havia sido operário em uma oficina do
Estado. Meteu-se com Cassi e, aos poucos, abandonou o emprego, abandonou a mãe,
de quem era único arrimo, e quis imitar o mestre até o fim. Foi infeliz.
Arranjou uma complicação policial e matrimonial de donzelas, nas quais Cassi
era useiro e vezeiro, e saiu-se mal. Obrigaram-no a casar; mas teve a hombridade
de ficar com a mulher, embora, resignadamente, ela sofresse toda a espécie de
privações, no horrível subúrbio de Dona Clara, enquanto ele andava sempre
muito suburbanamente e tivesse vários uniformes de football.
Tirava proventos do jogo de dados ou campista, e também do football, em que era
considerado bom jogador - "plêiel", como dizem lá.
De vários clubes, havia sido expulso ou se havia demitido voluntariamente,
porque os companheiros suspeitavam-no ser peitado pelos adversários, para
facilitar estes fazer pontos. Ultimamente, era agente de jogo de bicho, e sua
mulher viera gozar de mais algum conforto.
Pobre Ernestina! Era tão alegre, tão tagarela, era moça, e bonitinha, na sua
fisionomia miúda e na sua tez pardo-clara, um tanto baça, é verdade, mas não
a ponto de enfeá-la, quando conheceu Ataliba; e hoje? Estava escanzelada, cheia
de filhos, a trair sofrimentos de toda a espécie, sempre mal calçada, quando,
nos tempos de solteira, o seu luxo eram os sapatos! Quem te viu e quem te vê!
Zezé Mateus era um verdadeiro imbecil. Não ligava duas idéias; não guardava
coisa alguma dos acontecimentos que assistia. A sua única mania era beber e
dizer-se valente. Topava todos os ofícios; capinava, vendia peixe e verdura,
com cesto à cabeça; era servente de pedreiro, apanhava e vendia passarinhos,
como criança; e tinha outras habilidades desse jaez.
Era branco, com uma fisionomia empastada, cheia de rugas precoces, sem dentes,
todo ele mole, bambo. A sua testa era deprimida, e era longo e estreito o seu
crânio, do feitio daqueles a que o povo chama "cabeça de
mamão-macho".
Totalmente inofensivo, quase inválido pela sua imbecilidade nativa e pela
bebida, uma família a quem ele prestava pequenos serviços - ir às compras, ao
açougue, lavar a casa - dava-lhe um barracão na chácara, onde dormia, e
comida, se estivesse presente às refeições. Encontrava-se nessa ruína humana
o melhor da turma e o único que não tinha maldade no coração. Era um
ex-homem e mais nada.
O Franco Sousa, este, era um malandro mais apurado, que, uma vez ou outra,
aderia ao grupo de Cassi. Intitulava-se advogado e vivia de embrulhar os
crédulos clientes que lhe caíam nas mãos. Todos sabiam que ele não tratava
de coisa alguma, pois não podia absolutamente tratar, já por não saber coisa
alguma das tricas forenses, já por não ser, de verdade, advogado. Assim mesmo,
sempre apareciam ingênuos roceiros, simplórias viúvas, que, no pressuposto de
que os seus serviços, na justiça, sobre a demarcação de terras litigiosas ou
despejos de inquilinos relapsos, fossem mais baratos, procuravam-no. Ele recebia
os adiantamentos e, em seguida, mais algum dinheiro, conforme a ingenuidade e a
falta de experiência do cliente, e não fazia nada. Entretanto, vivia muito
decentemente com a mulher, filhos e filhas. Cassi não lhe pisava em casa, e,
aos poucos, foi se afastando do violeiro, a conselho da mulher, que zelava
extremamente pela reputação das filhas, que se faziam moças.
O último dos asseclas do modinheiro era um tal Arnaldo, Arnaldo tout court.
Nele, talvez, houvesse tipo mais nojento do que mesmo em Cassi. A sua profissão
consistia em furtar, no trem, chapéus-de-sol, bengalas, embrulhos dos
passageiros que estivessem a dormitar ou distraídos. De tarde, ele fazia a
especialidade dos embrulhos; e, à noite, às vezes, a altas horas, postava-se
na beira da plataforma de estação pouco freqüentada e, quando o trem tornava
movimento e impulso, arrebatava rapidamente os chapéus dos passageiros,
através da portinhola, principalmente se de palha e novos. Vendia-os, no dia
seguinte, como vendia os chapéusde-sol, as bengalas e o conteúdo dos
embrulhos, se fosse de coisa vendável; roupas de lã ou branca, livros, louça,
talheres, etc.
Se fossem, porém, doces, frutas, queijos, biscoitos, grãos, ele levava para a
casa e contava à mulher que só arranjara dinheiro para comprar aquelas
guloseimas para as crianças. Usava dos mais imprevistos estratagemas, para não
pagar a casa de sua moradia. Numa, tendo ficado a dever oito meses,
apresentando-se-lhe o cobrador com os recibos, pediu-os para examiná-los e
ficou com eles, alegando que ia consultar pessoa competente em matéria de selo,
porquanto as estampilhas não lhe pareciam legais. Nunca mais os devolveu; e,
apesar de todas as ameaças, ainda ficou morando na casa quatro meses. Os seus
vizinhos contavam que ele tinha também o hábito de arrebatar as notas do
Tesouro das mãos das crianças, quando as encontrava sós também a caminho das
vendas, onde iam fazer compras para as casas paternas, levando-as à mostra, na
imprevidência natural de crianças.
Inútil é repetir que Cassi não tinha nenhuma espécie de amizade por esses
rapazes, não pela baixeza de caráter e de moral deles, no que ele sobrelevava
a todos; mas pela razão muito simples de que a sua natureza moral e sentimental
era sáfara e estéril. A seus pais e às suas irmãs, não o prendia nenhuma
dose de afeição, por mais pequena que fosse. Mesmo com sua mãe, que o tinha
retirado muitas vezes dos xadrezes policiais, em vésperas de seguir para a
detenção, ele só tinha manifestações de ternura, quando estava às voltas
com a polícia ou com os juízes. O seu fundo e os seus princípios explicavam
de algum modo essa sua aridez moral e sentimental.
A sua educação e instrução foram deveras descuradas. Primeiro nascido do
casal, quando as exigências da manutenção da família obrigavam seu pai a
trabalhar dia e noite, não pôde este, pois poucas horas passava em casa,
vigiá-las convenientemente. Rebelde, desde tenra idade, a doçura para com ele,
por parte de sua mãe, e os prejuízos dela impediram-na que o corrigisse
convenientemente, assiduamente, no tempo próprio. Não ia ao colégio; fazia
"gazeta", correndo pelas matas das cercanias da residência dos pais,
então em Itapiru, com outros garotos. O que faziam, pode-se bem adivinhar; mas
a mãe fingia não perceber, passava a mão pela cabeça do filho querido, nada
dizia ao pai, que quase mourejava durante as vinte e quatro horas do dia.
Cresceu assim, sem nenhuma força moral que o comprimisse; e o pai seria a
única.
Ao melhorarem as suas condições financeiras, com uma promoção a propósito e
a compra daquela casa, na estação do Rocha, com o produto de uma herança que
tocara à mulher, Manuel de Azevedo veio encontrar, aos treze anos, o filho
completamente viciado, fumando às escâncaras, mal lendo, aos gaguejos, e
escrevendo ainda muito pior. Pô-lo nos "Salesianos"" de
Niterói, As informações semanais eram péssimas; e, ao fim de três ou quatro
meses de colégio, não sabemos que torpeza cometeu no colégio que, uma bela
tarde, acompanhado de um padre magro, com uma cortante figura angulosa de
asceta, veio a ser entregue Cassi ao pai, em casa. Falou-lhe o reverendo em
particular, e Manuel de Azevedo, quase chorando, despediu-se do reverendo, que
insistia nas desculpas, e respondendo deste único feitio ao eclesiástico:
-Os senhores têm razão, muita razão. Eu é que me sinto infeliz por ter um
filho bastante mau e vicioso com tão pouca idade. Que castigo, meu Deus!
A mulher quis saber o motivo da expulsão, mas a dignidade e a vergonha de pai
fizeram que nem mesmo à sua mulher ele o dissesse.
Propôs, dias depois, à sua esposa, que pusesse o rapazola a aprender um
ofício, a fim de discipliná-lo. Dona Salustiana revoltou-se e esbravejou:
-Meu filho aprender um ofício, ser operário! Qual! Ele é sobrinho de um
doutor e neto de um homem que prestou muitos serviços ao país.
Sempre lembrado dos seus duros começos em que ela muito o ajudara e o animara,
Manuel tinha, pela mulher, uma grande e sincera afeição, evitando o quanto
possível contrariá-la, e, por isso, não teimou dessa feita. Meses depois,
porém, logo que chegou em casa, a mulher e as filhas, chorando, pedem que vá
soltar Cassi, que estava preso em uma delegacia. O menino já roçava pelos
dezesseis anos e mostrava-se assim precoce na carreira de falcatruas. Havia sido
preso, pelo respectivo vigia, no interior de uma casa vazia, quando procurava
arrancar encanamento de chumbo para vender.
O pai, então, voltou à idéia de pô-lo em uma oficina, a ver se o trabalho
manual, já pelo cansaço, já pela convivência com pessoas honestas e de
trabalho, desviava-o do mau caminho que ele estava iniciando. A mãe acedeu com
grande repugnância, e ele foi ser aprendiz de tipógrafo.
No fim de um mês, porém, era despedido, porque, tendo ido receber uma conta de
cartões de visitas, uns cinco mil-réis ou pouco mais do que isso, voltara sem
dinheiro, dizendo que o tinha perdido. Revistado convenientemente, foi-lhe o
dinheiro encontrado quase intacto entre a botina e a meia.
A fascinação pelo dinheiro e sua absorção nele eram o seu fraco. Queria-o;
mas sem trabalho e para ele só. As menores dívidas que fazia, não pagava;
não oferecia nada a ninguém. Houve quem o conhecendo e sabendo dessa sua
sovinice doentia explicasse os seus desvirginamentos seguidos e as suas
constantes seduções a raparigas casadas, como sendo a resultante da aridez de
dinheiro, que o encaminhava a amores gratuitos; e de uma atividade sexual levada
ao extremo, que a sua estupidez explicava.
Seja devido a esta ou aquela causa, a este ou aquele motivo, o certo e que nele
não havia nevrose ou qualquer psicopatia que fosse. Não cedia a impulsos de
doença; fazia tudo muito calculadamente e com todo o vagar. Muito estúpido
para tudo o mais, entretanto, ele traçava os planos de sedução e desonra com
a habilidade consumada dos scrocs de outras natureas. Tudo ele delineava
lucidamente e previamente removia os obstáculos que antevia.
Escolhia bem a vítima, simulava amor, escrevia detestavelmente cartas
langorosas, fingia sofrer, empregava, enfim, todo o arsenal do amor antigo, que
impressiona tanto a fraqueza de coração das pobres moças daquelas paragens,
nas quais a pobreza, a estreiteza de inteligência e a reduzida instrução
concentram a esperança de felicidade num Amor, num grande e eterno Amor, na
Paixão correspondida.
Sem ser psicólogo nem coisa parecida, inconscientemente, Cassi Jones sabia
aproveitar o terreno propício desse mórbido estado d'alma de suas vítimas,
para consumar os seus horripilantes e covardes crimes; e, quase sempre, o
violão e a modinha eram seus cúmplices...
III
Marramaque, apesar de sua instrução defeituosa, senão rudimentar, tinha
vivido em roda de pessoas de instrução desenvolvida e educação, e convivido
em todas as camadas. Era de uma cidadezinha do Estado do Rio, nas proximidades
da Corte, como se dizia então. Feito os seus estudos primários, os pais
empregaram-no num armazém da cidade. Estávamos em plena escravatura, se bem
que nos fins, mas a antiga Província do Rio de Janeiro era próspera e rica,
com as suas rumorosas fazendas de café, que a escravaria negra povoava e penava
sob os açoites e no suplício do tronco.
O armazém em que Marramaque era empregado havia de tudo: ferragens, roupas
feitas, isto é, camisas, calças, ceroulas grosseiras, para trabalhadores;
armas, louças, etc., etc. Comprava diretamente nos atacadistas da Corte; além
disso, o seu proprietário era intermediário entre os pequenos lavradores e as
grandes casas da Capital do Império, isto é, comprava as mercadorias àqueles,
por conta destas, com o que ganhava comissão.
Marramaque era contemplativo e melancólico, e vivia, debruçado ao balcão do
armazém, ouvindo os tropeiros e peões contar histórias de todo o gênero:
façanhas de valentia, maus encontros pelos caminhos desertos, proezas de
desafio à viola e de amor roceiro.
No gênio, não saía ao pai, que era um minhoto ativo, trabalhador, reservado e
econômico. Em poucos anos de Brasil, conseguiu ajuntar dinheiro, comprar um
sítio em que cultivava os chamados "gêneros de pequena lavoura",
aipim, batata-doce, abóboras, tomates, quiabos, laranja, caju e melancia,
dando-lhe esta última cultura, pelos fins do ano e começo do seguinte, lucros
razoáveis. Com o correr do tempo comprara um bote; e, duas vezes por semana,
acompanhado de um companheiro a quem pagava, trazia ele mesmo os produtos de sua
lavoura, navegando por um pequeno rio, mais ou menos canalizado, atravessando a
Guanabara até o Mercado. Vinha com o "terral" e voltava com a
"viração".
O filho não seria capaz dessas proezas; mas, como sua mãe, que, embora quase
branca, tinha ainda evidentes traços de índio, seria capaz de cantar o dia
inteiro modinhas lânguidas e melancólicas.
Havia, quando rapazola, muitas névoas na sua alma, um diluído desejo de vazar
suas mágoas e os sonhos, no papel, em verso ou fosse como fosse; e um forte
sentimento de justiça. O espectro da escravidão, com todo o seu cortejo de
infâmias, causava-lhe secretas revoltas.
Certo dia, um viajante, que pousara no armazém, deixara, por esquecimento, na
mesa do quarto em que fora hospedado, um volume das Primaveras de Casimiro de
Abreu.
Ele nunca havia lido versos seguidamente. Nos jornais que lhe caíam à mão,
mesmo nos retalhos deles e em páginas soltas de revistas que vinham parar ao
armazém para embrulho, é que lera alguns. Dessa forma, encontrando, no seu
natural melancólico, cheio de uma doce tristeza e de um obscuro sentimento da
mesquinhez do seu destino, terreno propício, o livro de Casimiro de Abreu
caiu-lhe n'alma como uma revelação de novas terras e novos céus. Chorou e
sonhou com os doridos queixumes do sabiá de São João da Barra e não deixou
de notar que, entre ele e o poeta das Primaveras, havia a semelhança de
começarem ambos sendo caixeiros de uma casa de negócio da roça. Cristalizada
a emoção profunda que lhe causara a leitura dos versos do gaturamo fluminense,
Marramaque resolveu agir, isto é, instruir-se, educar-se e... fazer versos
também. Para isso, precisava sair dali, ir para a Corte.
De quando em quando, pousavam no armazém, onde dormia também,
caixeiros-viajantes de grandes casas da Corte que tinham negócios com o Senhor
Vicente Aires, patrão de Marramaque. O seu natural bom, prestativo, a sua
irradiação simpática, provinda dos seus sonhos vagos e amontoados, faziam-no
estimado deles todos. Havia um, entretanto, que ele estimava mais. Era um rapaz
português, o Senhor Mendonça, Henrique de Mendonça Souto. Em tudo, ele era o
contrário do pobre Marramaque, Era alegre, folgazão, palrador, bebia o seu
bocado; mas sempre honesto, leal e franco.
Certa noite, estando ele hospedado nos fundos do armazém do Senhor Vicente
Aires, de volta de uma partida de "manilha", na casa do sacristão da
Matriz, o alegre "cometa" veio a encontrar o caixeiro Marramaque lendo
o volume de Casimiro de Abreu. Era alta noite, passava da meia: e, como o
caixeiro tinha que se erguer às cinco da manhã, para abrir o armazém e
atender a tropeiros e viajantes em preparativos de partida, tal fato causou
pasmo a "Seu" Mendonça:
-Ainda lês, menino! E não te lembras que, daqui a pouco, deves estar de pé,
filho de Deus!
-Esperava o senhor.
-E mais esta! Então tu pensas que eu mesmo não sabia despir-me e meter-me à
cama? Que lês?
-Primaveras, de Casimiro de Abreu.
O caixeiro-viajante acabou de vestir-se e deitou-se, Depois de cobrirse,
perguntou a Marramaque:
-Tu gostas de versos, rapaz?
Hesitou em responder, mas Mendonça fez rispidamente:
-Dize lá, rapaz; porque nisto não vai crime algum. Está a ver-se, rapaz!
Dize!
-Gosto, sim senhor - fez o caixeiro timidamente.
- Pois deves ir para o Rio - acudiu Mendonça com pressa - estudar e... quem
sabe lá?
- Se eu arranjasse um emprego na Corte...
Mendonça pensou um pouco e disse:
- Na casa, não te serve. Há muito serviço e tu não te acostumas... És
aprendiz de poeta, tens inclinação para essas coisas de versos e te
aborrecias. O que te serve, era trabalhar numa farmácia. Fala a teu pai que eu
te arranjo a coisa. Escrevo-te logo que chegar ao Rio.
Mendonça cumpriu a palavra, e o pai consentiu que ele viesse para o Rio.
Marramaque foi trabalhar numa farmácia; e, à noite, ia completando a sua
instrução, conforme podia, nas instituições filantrópicas de instrução
que existiam no tempo.
Logo, tratou de fazer versos; e, certa vez, foi surpreendido por um dos
habitués da farmácia, compondo uma poesia. As farmácias, naquele tempo, eram
o lugar de encontro de pessoas graves e sisudas da vizinhança, que, à tarde,
após o jantar, iam a elas espairecer e conversar. Quem surpreendeu o jovem
Marramaque, fazendo versos, foi o Senhor José Brito Condeixa, segundo oficial
da Secretaria de Estrangeiros, poeta também, mas, de uns tempos para cá,
somente festivo e comemorativo. Além de publicar, nos dias de gala, sonetos e
outras espécies de poesias alusivas à festa, não se esquecia nunca de
comemorar as datas domésticas da família imperial, em versos de um lavor
chinês. Esperava o hábito da Rosa; mas, só veio a ter no fim do Império,
quando retirou da Imprensa Nacional o terceiro volume da Sinópsis da
Legislação Nacional, na parte que se refere ao Ministério de Estrangeiros.
Lendo os versos do adolescente, Brito Condeixa gostou e jurou que havia de
proteger o caixeirozinho. Falou ao patrão, e ele foi se empregar numa
papelaria-livraria, na rua da Quitanda. Freqüentada por poetas e literatos que
ensaiavam os primeiros passos, nos últimos quinze anos do Império, com eles se
relacionou e sempre era escolhido para secretário, gerente, tesoureiro, de suas
efêmeras publicações. Deixou o emprego da papelaria, sem zanga; e atirou-se
às refregas e às decepções da pequena imprensa, com ardor e entusiasmo,
sangue republicano e abolicionista, sobretudo abolicionista.
Esse jornalismo contrário e efêmero pouco ou quase nada lhe dava para a sua
manutenção. Vivia uma vida de privações e necessidades prementes. Sem deixar
os companheiros poetas, escritores, parodistas, artistas, ele se improvisou
guarda-livros ambulante, fazendo escritas aqui e ali, com o que ganhava para ter
casa, comida, roupa e até, às vezes, socorrer os camaradas. Manteve-se sempre
absolutamente solteiro.
Guardava, da sua vida de acólito da boêmia literária, recordações muito
vivas, que gostava de contar, ensopando-as de comovida saudade. Anedotas deste,
casos com aquele, expedientes daquele outro, ele narrava com chiste e firmeza de
lembrança; mas, ao que parece, a figura de seu tempo que mais o impressionou
foi a de um pequeno poeta, que nunca teve seu quarto de hora de celebridade e
hoje está totalmente esquecido. A respeito dele, Marramaque se referia com o
sentimento profundo de quem se lembra de um irmão muito amado:
-Ah! O Aquiles! Que alma! Que poeta! O senhor - dirigindo ao interlocutor
ocasional - não o conheceu?
-Não; não me recordo.
-Nem de nome? Ele deixou obras.
O outro com quem conversava, por delicadeza, respondia:
-De nome, pois não, pois não!
-Que alma era esse Aquiles Varejão! Morreu há pouco tempo, em 94 ou 95; e, se
não me falha a memória, na Santa Casa. Morreu na maior miséria; entretanto,
tudo o que ganhava - ele era tipógrafo - estava sempre disposto a distribuir
com os amigos. Não pude ir vê-lo... Tinha tido o primeiro ataque e estava em
tratamento. Lembro-me, porém, do seu último soneto que a Gazeta publicou. Que
lindeza! Aquilo era um poeta que não forçava, nem tinha compasso e régua.
Ouça só!
E, com uma voz difícil, devido à semiparalisia da parte esquerda da boca,
esbugalhando os olhos, devido ao esforço para pronunciar bem as palavras,
recitava:
Prostrado nesta enxerga, sinto a vida
Ir, pouco e pouco, procurando o nada;
Pra mim não há mais sol de madrugada,
Mas sim tremor da luz amortecida.
Prazeres, onde estais? Longa avenida
De amores, que trilhei nesta jornada?
Tudo acabou. E justa esta pousada,
Antes que dobre o sino da partida.
Feliz quem tem família! Tem carinho
De mãe, de esposa, e, em derredor do leito,
Não sofre o horror de achar-se tão sozinho.
Porém ao meu destino estou sujeito;
Devo, batendo as asas, sem ter ninho,
Buscar, quem sabe? um mundo mais perfeito?
O Marramaque, quase sempre, acabava de recitar os versos do amigo com os olhos
úmidos; e o ouvinte, não só peia dor demonstrada pelo declamador, mas também
pelo tom elegíaco do soneto, comovia-se também e, antes de qualquer pergunta,
comentava:
-É bonito! É mesmo lindo.
Marramaque, poeta raté, tinha uma grande virtude, como tal: não denegrir os
companheiros que subitam nem os que ganharam celebridade. A todos gabava, sem
que, por isso, não lhes notasse as falhas de caráter.
Tendo vivido assim, em vários e diferentes meios, ganhando experiência e
conhecimento dos homens e das coisas da vida, estava apto para julgar bem quem
era Cassi Jones. Demais, devido à sua convivência com literatos, poetas e
escritores, adquirira o hábito tirânico de ler diariamente todos os jornais
que apanhava na repartição, e não fazia lá outra coisa, devido a seu estado
de saúde.
De quando em quando, ele encontrava noticias mais que escabrosas, às vezes
sangrentas mesmo, em que estava envolvido o nome do famigerado violeiro. De umas
delas, ele se lembrava perfeitamente, porque lhe havia causado, na sua alma
retardada de idealista e sonhador, de poeta que quis ser amoroso e
cavalheiresco, a maior revolta e um movimento de nojo irreprimível. Joaquim dos
Anjos não estava a par dela, pois não tinha hábito de ler jornais e pouco
tagarelava com as pessoas de suas bandas suburbanas. Marramaque apoiou-se em
contador e por alto.
Num dos subúrbios, na proximidade da casa de Cassi, veio a residir um casal. A
mulher era moça, fruída de carnes, alta, louçã, grandes olhos negros, um
tipo do Sul, ao que parece do Rio Grande. O marido, que era oficial de Marinha,
maquinista, era amorenado tirando a mulato, baixo, sempre triste, curvado e
pensativo. Apesar da diferença de gênios, que se percebia, e de idade, que
estava à mostra, pareciam viver bem. Quase sempre saíam à tarde, iam a
festas, a teatros; aos domingos, procuravam visitar os arrabaldes pitorescos e
voltavam à noite. Tomavam comida fora e só tinham uma rapariguita preta, de
uns dezesseis anos, para os serviços leves da casa. Não se sabe como, Cassi
conseguiu conhecer a gaúcha e seduzi-la. Mal o marido saía, ele se metia em
casa da moça com violão e tudo. A vizinhança murmurava contra aquela
pouca-vergonha. Fosse de que fonte fosse, o marido veio a saber e um dia, de
revólver em punho, furioso, fora de si, louco, totalmente louco, penetrava na
casa e alvejou a mulher com dois tiros de revólver, de cujos ferimentos veio a
morrer horas depois. Após ter alvejado mortalmente a mulher, correu em
perseguição de Cassi, que, descalço, de calças e em mangas de camisa,
saltava cercas e muros, para se pôr fora do alcance do marido indignado.
Entregando-se à prisão, o oficial maquinista contou toda a sua desdita e o
causador dela. O delegado mandou procurar Cassi e conseguiu pilhá-lo à noite,
Os agentes deram uma batida nos matos, e o galã fugitivo foi preso e recolhido
à enxovia.
Por ocasião dessa prisão foi que ele veio a conhecer Lafões. Tinha este sido
detido e recolhido ao xadrez, por ter feito um distúrbio, num botequim, onde
tomara uma carraspana, em comemoração ao ter acertado uma centena no bicho.
Quando Cassi foi recolhido, já Lafões estava no xadrez, havia quatro horas.
Cassi, que fugira do revólver do oficial, sem paletó e sem colete, em cujas
algibeiras estava o seu dinheiro, não pudera comprar cigarros; mas Lafões os
tinha, O profissional da sedução pediu-lhe um, que lhe foi dado, Disse,
então, para Lafões:
-Vou te soltar, meu velho. Tu és uma bela alma.
-Por que vosmecê está preso, meu caro senhor?
Cassi respondeu com muita calma e indiferença, como se tratasse de um
acontecimento vulgar:
-Por nada. Coisas de mulheres, meu velho. É o meu fraco.
Pela grade do xadrez, dirigiu-se a um soldado, a quem conhecia, e falou-lhe
baixo qualquer coisa. Em breve, foi a praça substituída por outra. Vendo isso
Cassi, disse para o velho Lafões:
-Estás aqui, estás na rua. Mandei o soldado falar ao meu chefe político: e
ele vai interessar-se para seres solto,
-E vosmecê?
-Não te importes comigo. Tenho que depor...
Na verdade, Lafões foi solto; não houve, porém, qualquer intervenção do
chefe político de Cassi. Libertou-o o próprio comissário que o prendera e o
conhecia como homem morigerado e qualificado.
Entretanto, o guarda das obras públicas sempre supôs que a sua libertação
tivesse sido obra de Cassi, por isso lhe era grato e o defendia com todo o
ardor.
Lafões era um homem simplório, que só tinha agudeza de sentidos para o
dinheiro que vencia. Vivendo sempre em círculos limitados, habituado a ver o
valor dos homens nas roupas e no parentesco, ele não podia conceber que torvo
indivíduo era o tal Cassi; que alma suja e má era a dele, para se interessar
generosamente por alguém.
Muito diferente do guarda era Marramaque, cujo âmbito de vida sempre fora mais
amplo e mais variado. Abraçava um maior horizonte de existência humana...
Quando aquele lembrou que se convidasse o celebrizado violeiro, o contínuo viu
logo os perigos que a presença do profissional da desonra das famílias podia
trazer à paz e ao sossego que reinavam na casa de Joaquim dos Anjos.
Além de compadre, Marramaque era profundamente amigo do carteiro, que o
auxiliava nos seus transes de toda a ordem: um pouco, originados pelos hábitos
boêmios que, de todo, não perdera; um pouco, pela exigüidade de seus
vencimentos, com os quais sustentava uma irmã viúva e dois filhos dela, ainda
menores, com os quais morava, nas proximidades de Joaquim.
Na sua vida, tão agitada e tão variada, ele sempre observou a atmosfera de
corrupção que cerca as raparigas do nascimento e da cor de sua afilhada; e
também o mau conceito em que se têm as suas virtudes de mulher. A priori,
estão condenadas; e tudo e todos pareciam condenar os seus esforços e os dos
seus para elevar a sua condição moral e social.
Se assim acontecia com as honestas, como não pensaria sobre o mesmo tema um
malandro, um valdevinos, um inconsciente, um vagabundo cínico, como ele sabia
ser o tal Cassi?
Durante o jantar, ainda se falou muito a respeito, mas com as reservas que a
assistência de uma moça pedia fossem tomadas.
-Vamos experimentar, meu caro Marramaque. "Ele" sabe com quem se
mete...
-Eu cá, por mim, nada tenho a dizer dele. Sempre me tratou muito bem e sou-lhe
grato.
-É que você, Lafões, não lê os jornais.
-Qual jornais! Qual nada! Tudo que lá vem neles é mentira.
Clara ouvia esse diálogo com muita atenção e forte curiosidade. Num dado
momento, não se conteve e perguntou:
-O que é que esse Cassi faz, padrinho?
A mãe acudiu ríspida, dizendo:
-Não é de tua conta, bisbilhoteira!
A única filha do carteiro, Clara, fora criada com o recato e os mimos que, na
sua condição, talvez lhe fossem prejudiciais. Puxava a ambos os pais. O
carteiro era pardo-claro, mas com cabelo ruim, como se diz; a mulher, porém,
apesar de mais escura, tinha o cabelo liso.
Na tez, a filha tirava ao pai; e no cabelo, à mãe.
Joaquim era alto, bem alto, acima da média, ombros quadrados e rija
musculatura; a mãe, não sendo muito baixa, escapava à média da altura de
nossas mulheres em geral. Tinha ela uma fisionomia medida, de traços breves,
mas regular; o que não acontecia com o marido, que era possuidor de um grosso
nariz, quase chato, e malares salientes. A filha, a Clara, havia ficado em tudo
entre os dois; média deles, dos seus pais, era bem exatamente a filha de ambos.
Habituada às musicatas do pai e dos amigos, crescera cheia de vapores de
modinhas e enfumaçara a sua pequena alma de rapariga pobre e de cor com os
dengues e o simplório sentimentalismo amoroso dos descantes e cantarolas
populares.
Raramente saía, a não ser para ir bem perto, à casa de Dona Margarida,
aprender a bordar e a costurar, ou com esta ir ao cinema e a compras de fazendas
e calçado. A casa dessa senhora ficava a quatro passos de distância da do
carteiro. Apesar de ser uso, nos subúrbios, irem as senhoras e moças às
vendas fazer compras, Dona Engrácia, sua mãe, nunca consentiu que ela o
fizesse, embora de sua casa se avistasse tudo o que se passava, no armazém do
"Seu" Nascimento, fornecedor da família.
Essa clausura mais alanceava sua alma para sonhos vagos, cuja expansão ela
encontrava nas modinhas e em certas poesias populares.
Com esse estado de espírito, o seu anseio era que o pai consentisse na visita
do famoso violeiro, cuja má fama ela não conhecia nem suspeitava, devido ao
cerco desvelado que a mãe lhe punha à vida; entretanto, supunha que ele tirava
do violão sons mágicos e cantava coisas celestiais.
Joaquim dos Anjos, afinal, tendo o assentimento da mulher e também curioso de
conhecer as habilidades de Cassi, no violão e na trova popular, consentiu que
Lafões o trouxesse em sua casa, no dia do aniversário de Clara. Viria aquela
vez e não viria mais...
Lafões acolheu a resposta com viva alegria e tratou de entender-se com o
tocador mal-afamado. Fez. Quando os seus companheiros de vagabundagem souberam,
comentaram cinicamente o convite:
-Conheço bem esse carteiro. Ele não trabalha aqui; mas na cidade, na zona dos
bancos. Deve ter dinheiro. Tem um pancadão de filha, meu Deus! Que torrão de
açúcar!
-Então estás feito, hein, Cassi? - fez alvarmente Zezé Mateus àquela
tendenciosa observação de Ataliba do Timbó.
Cassi, o mestre suburbano do violão, o dedo da modinha, fingiu-se aborrecido e
retrucou com fingido desgosto:
-Vocês mesmo é que me desacreditam. Dizem coisas que não fiz e não faço, e
todo mundo me enche de desprezo, se não de ódio. Não sou essas coisas que
dizem de mim.
Timbó teve vontade de rir à vontade, mas, embora mais forte do que Cassi,
tinha este sobre ele um ascendente moral que não se explicava. Zezé Mateus,
porém, com o seu peculiar meio-riso de imbecil, fez:
-Estou brincando, meu "nego". Sou teu amigo - tu sabes.
Eles conversavam sempre de pé, parados pelas esquinas. Raramente, sentavam-se a
uma mesa de café. Aquela intempestiva observação do Ataliba, seguida do
comentário de Zezé Mateus, arrefecera a palestra da sociedade. Despediram-se,
e cada um foi para o seu lado.
Cassi, que fingira aborrecer-se com a tendenciosa noticia de Timbó e o
comentário de Zezé, ficou, ao contrário, muito contente com ela. Tinha
resolvido não ir à tal festa; mas, pelo que informara Ataliba, talvez não
tivesse nada a perder. Experimentaria.
Mordeu os lábios e seguiu para o clube, com a consciência leve e o coração
alegre...
IV
Veio o dia da festa; a pequena casa regurgitava; e - coisa curiosa - havia mais
convidados de idade meã que moças e rapazes. Isto se explicava pela estreiteza
de relações de Clara e dos seus pais, devido à vida que levavam. Entre as
moças, havia duas ou três colegas de Clara, a filha de Lafões, uma sobrinha
solteirona, Hermengarda, de Dona Engrácia, e poucas mais. Entre os rapazes,
havia dois jovens colegas de Joaquim, Sabino e Honório; um irmão de
Hermengarda e um afilhado de Lafões, que era vigia do cais do porto. Em
compensação, as senhoras, mães de família, eram inúmeras. Destacava-se
muito Dona Margarida Weber Pestana, pelo seu ar varonil, tendo sempre ao lado o
filho único, de quatorze anos, fardado com uma fardeta de colegial. Tinha, essa
senhora, um temperamento de heroína doméstica. Viera muito cedo para o Brasil,
com o pai, que era alemão; ela, porém, havia nascido em Riga, russa portanto,
como sua mãe o era. Antes dos dezesseis anos, ficara órfã de mãe. Seu pai
emigrara para o Brasil, contratado a trabalhar no acabamento das obras da
Candelária. Era estucador, marmorista, um pouco escultor; enfim, um operário
fino, para essas obras especiais de revestimento e decoração interna de
edifícios suntuosos.
Bem cedo, mostrou ela inclinação por um tipógrafo que comia na
"pensão" que havia montado, na rua da Alfândega, e dirigia
ativamente. Casaram-se, e ele morreu dois anos depois, após o casamento, de
tubelculote pulmonar, deixando-lhe o filho, o Ezequiel, que não a largava. Ano
e meio depois, morreu-lhe o pai, de febre amarela. Continuou com a
"ensão"; mas bem cedo vendeu-a e comprou uma casota nos subúrbios,
aquela em que morava, quase junto de Joaquim. Costurava para fora, bordava,
criava galinhas, patos e perus, e mantinha-se serenamente honesta, O Senhor
Ataliba do Timbó deu em certa ocasião em persegui-la com ditan'os de amor
chulo, Certo dia, ela não teve dúvidas: meteu-lhe o guardachuva com vigor. À
noite, no intuito de defender as suas galinhas da sanha dos ladrões, de quando
em quando, abria um postigo, que abrira na janela da cozinha, e fazia fogo de
revólver. Era respeitada pela sua coragem, pela sua bondade e pelo rigor de sua
viuvez. O Ezequiel, seu filho, puxara muito ao pai, Florêncio Pestana, que era
mulato, mas tinha os olhos glaucos, traislúcidos, de sua mãe meio eslava, meio
alemã, olhos tão estranhos - olhos tão estranhos a nós e, sobretudo, ao
sangue dominante no pequeno.
Afora Dona Margarida Pestana, notava-se Dona Laurentina Jácome, uma velha,
sempre metida com rezas e padres, pensionista do ex-Imperador e empregada numa
capelinha da vizinhança, de cuja limpeza era encarregada, inclusive da lavagem
das toalhas dos altares. Não podia conversar outra coisa que não fossem
acontecimentos eclesiásticos e, quase sempre, os de sua igreja:
-A senhora não sabe, Dona Engrácia, de uma coisa?
-O que é?
-O padre Santos, este mês, disse mais de vinte missas e só recebeu inco. Pobre
padre Santos! É mesmo um santo!
E contraía a fisionomia enrugada e, erguendo-a um pouco, apertava as mãos ao
jeito de quem reza.
Além desta, havia uma digna de nota: era Dona Vicência. Morava na vizinhança
também e vivia de deitar cartas e cortar "coisas-feitas". O seu
procedimento era inatacável e exercia a sua profissão de cartomante com toda a
seriedade e convicção.
Havia outras sem nada de notável, como entre os cavalheiros só havia um que se
destacava. Convém não esquecer que Lafões e Marramaque lá estavam a postos.
O cavalheiro digno de nota era um preto baixo, um tanto corcunda, com o ombro
direito levantado, uma enorme cabeça, uma testa proeminente e abaulada, a face
estreitante até acabar num queixo formando, queixo e face, um V monstruoso, na
parte anterior da cabeça; e, na posterior, no occipital desmedido, acaba o seu
perfil monstruoso. Chamava-se Praxedes Maria dos Santos; mas gostava de ser
tratado por doutor Praxedes.
A monstruosidade de sua cabeça o pusera a perder. Por tê-la assim, julgou-se
uma inteligência, um grande advogado, e pôs a freqüentar cartórios, servindo
de testemunha, quando era preciso, indo comprar estampilhas, etc., etc.
Com o tempo, tomou algumas luzes e atirou-se a tratar de papéis de casamento e
organizou uma biblioteca particular de manuais jurídicos, de índices de
legislação, etc., etc. Vestia-se sempre de fraque, botinas de verniz ou
gaspeadas, e não dispensava a pasta indicadora de homens de leis, Quando foi
moda ser de rolo, ele a usou assim; quando veio a moda de ser em saco, como a
trazem agora os advogados, ele comprou uma luxuosa de marroquim com fechos de
prata.
Não falava senão em leis e decretos: "porque" - dizia ele - "a
Lei 1857, de 14 de outubro de 1879, diz que a mulher casada, no regime do
casamento, não pode dispor dos seus bens, ter dinheiro em bancos, na Caixa
Econômica; entretanto, o Decreto 4572, de 24 de julho de 1899,
determina..."
Afora o seu amor a esse embrulho legislativo, gostava de versos; mas não de
modinha.
Era este o cavalheiro mais notável que havia vindo ao baile de anos de Clara.
É que até àquele momento, com grande desgosto para as moças, o trovador
Cassi não havia ainda aparecido.
Clara não ocultava o seu desapontamento; e uma de suas colegas lhe dizia em
confidência:
-Clara, toma cuidado. Este homem não presta.
A moça não respondia, encaminhava-se para a sala de jantar, a fim de
disfarçar a emoção, simulando ir beber água.
Clara estava bem vestidinha. Era inteiramente de crepom o seu vestido, com
guarnição de renda de indústria caseira, mas bonita e bem trabalhada; o
pescoço saía-lhe nu e a gola do casaco terminava numa pala debruada de rendas.
Calçava sapatos de verniz e meias. Nas orelhas tinha grandes africanas e
penteara-se de bandós, rematando o penteado para trás, na altura do pescoço,
um coque, fixado por um grande pente de tartaruga ou coisa parecida.
Quando ela foi beber água, seguiu-lhe a sua amiga Etelvina, uma crioulinha
espevitada, sua antiga colega do colégio. Vestia-se esta com um mau gosto de
aborrecer. Todo o vestido era azul-celeste, com rendas pretas; os sapatos
amarelos e as meias cor de abóbora. Ao redor da cabeça, dividindo a testa ao
meio, uma fita vermelha, de um vermelho muito berrante. Os gregos chamavam este
adorno feminino de stephané; e, ao que parece, as portadoras não eram lá
tidas como virtuosas,
Essa Etelvina era a primeira dançarina do baile, não tinha até ali perdido
uma contradança.
A orquestra era composta de flauta, cavaquinho e violão - um "terno",
como denominam os seresteiros.
O baile ia adiantado, quando a filha de Lafões veio correndo do portão do
mimoseado jardim que enfrentava a casa, anunciando alegre:
-E vem ai, "Seu" Cassi.
Entrou. Houve um estremecimento que percorreu os convivas, como um choque
elétrico, Todas as moças, das mais diferentes cores, que, ali, a pobreza e a
humildade de condição esbatiam e harmonizavam, logo o admiraram na sua
insignificância geral, tão poderosa é a fascinação da perversidade nas
cabeças femininas. Nem César Bórgia, entrando mascarado, num baile à
fantasia, dado por seu pai, Alexandre VI, no Vaticano, causaria tanta emoção.
Se não disseram: "É César! É César!" - codilharam: "É ele!
É ele!"
Os rapazes, porém, não ficaram contentes, pressentindo essa satisfação das
damas; e, entre eles, puseram-se a contar a biografia escabrosa do modinheiro.
Apresentado, por Lafões, aos donos da casa, e à filha, ninguém lhe notou o
olhar guloso de grosseiro sibarita sexual que deitou para os seios empinados de
Clara.
O baile continuou animado; Cassi, porém, não dançava e foi reforçar o terno
de cavaquinho, flauta e violão, com o seu instrumento.
Dona Margarida, com o seu porte severo, olhava as damas, sentada ao sofá
austríaco, tendo ao lado o filho. A polca era a dança preferida, e todos quase
a dançavam com requebros próprios de samba. Os convidados que não dançavam
se haviam espalhado por várias partes da casa. Joaquim, Lafões e Marramaque
ouviam o doutor Praxedes explicar o que era um habeas corpus preventivo.
-Exemplifico - dizia o doutor Praxedes, erguendo a mão direita
catedraticamente, com o indicador apontado para o teto. - É uma medida
perfeitamente jurídica de profilática, porque...
Nisto acode o "doutor" Meneses, um velho hidrópico, com a mania de
saber todas as ciências, vivendo na maior miséria, apesar de exercer
clandestinamente a profissão de dentista.
-Doutor Praxedes - acudia o doutor Meneses - -, não julgo a comparação
própria. Cada ciência tem seu campo próprio...
A discussão tomava vulto e Joaquim se levantou. Sempre que ele fazia isto,
Meneses seguia com os olhos o carteiro, a ver se ele ia até a cozinha mandar
pôr a ceia. O sábio dentista viera à última hora, na esperança que a
houvesse. Não lograra dinheiro para tomar um caldo. Joaquim, porém, aborrecido
com a discussão, fora simplesmente até a sala de visitas convidar:
-Quem quiser tomar alguma coisa, comer biscoitos, é só vir cá dentro. Não
façam cerimônia.
Toda vez que o anfitrião dizia isso, Meneses comia duas empadas e quatro
sandwiches e bebia uma boa "talagada" de parati.
O dono da casa convidava Cassi especialmente; mas este não bebia, não gostava.
Não era esse o seu prazer...
De uma feita, indo à sala, Joaquim convidou-o:
-Por que não canta, "Seu" Cassi?
Até ali, não se falara nisso, e, repinicando as cordas do violão, não
deixava o famoso mestre violeiro de devorar sorrateiramente com o olhar lascivo
os bamboleios de quadris de Clara, quando dançava.
Ninguém se atrevia a convidá-lo; todos esperavam que o dono da casa o fizesse.
Feito o convite, ele respondeu cheio de uma cerimônia afetada:
-Estou sem voz: esfalfei-me muito ontem, no baile do doutor Raposo e...
Vendo que seu pai o havia convidado, Clara animou-se:
-Por que não canta "Seu" Cassi? Dizem que o senhor canta tão bem...
Esse - "tão bem" - foi alongado maciamente. Cassi concertou, com
apurada pelintragem e com ambas as mãos, a pastinha oleosa; limpou, em seguida,
os dedos no lenço e respondeu dengoso:
-Qual, minha senhora! São bondades dos camaradas...
Clara insistiu:
-Cante, "Seu" Cassi! Vá!
Ele, então, torcendo a cabeça para o lado esquerdo, cuja mão espalmada abria
para o alto, e fingindo constrangimento, respondeu:
-Já que a senhora manda, vou cantar.
Marramaque, que tinha ouvido tudo, ficou espantado com o desembaraço da
afilhada. Diabo! fez ele de si para si.
O violeiro, com todo o dengue, agarrou o violão, fez estalar as cordas e
avisou:
-Vou cantar uma modinha velha, mas muito gentil e literária - "Na
Roça".
Muitos circunstantes ficaram desapontados, porque já a conheciam; mas outros
gostavam muito da modinha e aprovaram a escolha.
Cassi começou:
Mostraram-me um dia
Na roça dançando
Mestiça formosa
De olhar azougado...
Isto tudo era dito quase aos poucos, sem modulação alguma, enquanto o violão
repinicava as mesmas notas, numa indigência musical, numa monotonia de sons,
que dava sono. Quando chegava ao estribilho:
Sorria a mulata
Por quem o feitor
Diziam que andava
Perdido de amor
Por aí ele empregava o seu tic invencível de tocador de violão e cantor de
modinha. Cantando, revirava os olhos e como que os deixava morrer. O cardeal de
Retz diz, nas suas famosas Memórias, que Mme. de Montayon, ou uma outra
qualquer duquesa, ficava mais bela quando os seus olhos morriam. Cassi talvez
ficasse mais, se ele tivesse alguma beleza; entretanto, esse seu tic
impressionava as damas.
Clara, que sempre a modinha transfigurava, levando-a a regiões de perpétua
felicidade, de amor, de satisfação, de alegria, a ponto de quase ela
suspender, quando as ouvia, a vida de relação, ficar num êxtase místico,
absorvida totalmente nas palavras sonoras da trova, impressionou-se
profundamente com aquele jogo de olhar, com que Cassi comentava os versos da
modinha. Ele sofria, por força, senão não punha tanta expressão de mágoa,
quando cantava - pensava ela.
Tão embevecida estava, tão longe pairava o seu pensamento que, quando Cassi
acabou, esqueceu-se de aplaudir o troveiro que, para o seu rudimentar gosto, lhe
tinha proporcionado tão forte prazer artístico.
Comentava-se ainda a execução do maestro Cassi; e ele ao lado percebia os
gabos e criticas. Por esse tempo, como uma aparição em alçapão de mágica,
surgiu repentinamente, no centro da sala, o "doutor" Praxedes,
célebre advogado nos auditórios suburbanos, Iniciou:
-Minhas senhoras e meus senhores. Peço-lhes a devida vênia, para recitar uma
mimosa poesia de um nosso patrício. É uma obra-prima de chiquismo e de
moralidade. O seu autor é o Major Urbano Duarte, que morreu, se não me falha a
memória, general-de-brigada, Vou recitá-la, se me permitem. Chama-se "A
Lágrima".
Dizendo isto, o seu todo grotesco ainda mais grotesco ficava, com a
gesticulação desordenada dos braços, que rodavam, duros e hirtos, em torno
dos ombros, de cima para baixo. Pareciam asas de um antigo moinho de vento.
Começou gritando a primeira estrofe e já se babando pelos cantos dos seus
lábios violáceos:
Cismava à beira-mar, a linda Marieta,
Seguindo tristemente o sulco do vapor,
O qual, fugindo além, sumiu-se no horizonte,
Levando a longe terra o seu primeiro amor.
O seu gritar, o seu babujar, o seu gesticular foram crescendo. Quando chegou ao
primeiro terceto do soneto, quase não tinha mais voz. Da assistência,
apossara-se uma louca vontade de rir; muitos se contiveram; outros, porém, se
retiraram para gargalhar longe. O doutor Praxedes nada via e continuava
impertérrito, afinal acabou:
Depois, quando o luar banhando a natureza
Em pálidos clarões de luz misteriosa,
Eu vi no arrebentar do mar embravecido
A lágrima a boiar na pétala de rosa.
Ao terminar, recebeu palmas, e, sentando-se, cansado de tão estúrdio esforço
muscular, ainda disse:
-Essa lágrima é a da Marieta de que "o verso" fala no começo. É
preciso que os senhores e as senhoras não se esqueçam desse pormenor.
Marramaque, que até ali, sem ser notado, seguira a insistência com que o
trovador Cassi olhava Clara, resolveu pregar-lhe uma peça. Apoiado na sua
bengala amiga, com a perna esquerda encolhida, devido aos ataques, e o
respectivo braço fixado em ângulo reto, conseqüência também dos ataques -
encaminhou-se para o centro da sala, capengando, a fim de recitar, por sua vez.
A parte esquerda da boca era defeituosa também, e isso provocava-lhe muito
esforço para pronunciar bem as palavras.
Não atendeu a nenhuma consideração e pôs-se em pé para recitar.
Assim é que ia fazer; deu o título da poesia - "Persistência" - e
começou naturalmente, como quem já soubera recitar com relativa perfeição,
quando estava são. Recitando, olhava sempre para Cassi, que, calado, numa
reserva de moço bem-comportado, ficara de pé, encostado ao vão da janela de
frente.
Marramaque atacou os versos, saltitando na sala:
Se às vezes contigo esbarro
e grito, esperneio e berro,
que me traz de há muito zarro
a paixão que aqui encerro,
Tu foges. E a ti me agarro,
cismando: (e nisto não erro)
Se eu tenho uma alma de barro,
tu mostras que a tens de ferro.
E se nada mais espirro
é porque, então, se não corro,
a coisa já cheira a esturro.
Que queres? Eu próprio embirro
com este amor por que morro,
mas é que sou muito burro.
O final causou uma franca hilaridade na assistência, e até Clara riuse a
perder; mas ninguém perguntou quem era o autor; e, se lhe perguntassem,
Marramaque não lhe sabia o nome. Era a poesia sem assinatura, num jornal
antigo, gostara dela e a decorara.
O povo é avesso a guardar os nomes dos autores, mesmo os dos romances,
folhetins que custam dias e dias de leitura. A obra é tudo, para o pequeno
povo; o autor, nada.
Cassi, que, logo, antipatizara com Marramaque, percebeu que a coisa era com ele.
Perceberia outro mais burro do que o gabado artista da modinha, tanto era a
teimosia com que o velho aleijado o olhava. Cassi pensou, de si para si:
"Este pobre-diabo me paga".
O que espantava, na ação de Marramaque, era a sua coragem. Ele, semi-aleijado,
velho, pobre, lançava um solene desafio àquele valdevinos forte, são,
habituado a rolos e rixas.
Cassi não se demorou mais por muito tempo, Pediu o chapéu, despediu-se dos
donos da casa e da filha destes, fez um cumprimento em roda e, quando deu com o
rosto de Marramaque, com os olhos estranhamente fixos nele, a boca semi-aberta,
o braço esquerdo fixado em ângulo reto, pela moléstia, arrastou-se, Parecia
uma aparição... Deixara de ser o contínuo aleijado que ele antes tinha visto;
era outra coisa, mais do que o simples Marramaque, que o espantava e o fazia
tremer.
Com a atitude desassombrada daquele velho aleijado em face dele e que havia
adivinhado, não sabia ele como, os seus maus propósitos em relação à Clara,
Cassi sentiu, apesar do seu quase congênito embotamento moral, que havia na
vida, ou, por outra, nas relações entre os homens, um guia silencioso e
secreto, que pesava os nossos atos e pedia, para darlhes apoio e encaminhar-nos
para uma paz interior e um contentamento conosco mesmos, o emprego, em todas as
nossas ações, do Justo, do Leal, do Verdadeiro e do Generoso; e esse guia -
ele via agora com o caso de Marramaque - dava forças aos fracos, coragem aos
tímidos e uma seráfica e íntima satisfação, quando cumpríamos o nosso
dever com honra e dignidade. Esse guia era a Consciência.
Confusamente, ele pensou isso; mas, ao passar o terror, o pavor, que lhe causara
o olhar fixo, vitrificado, sobrenatural do velho Marramaque; olhar que o fizera
um instante voltar-se para dentro de si mesmo e examinar-se - tornou com pressa
ao que era e, fazendo um desdenhoso - ora! - -, repetiu de si para si a ameaça
que já fizera: "Aquele boneco de engonço me paga".
Depois da saída de Cassi, ainda se bailou até os primeiros albores da aurora.
Meneses, que tinha cochilado bastante, pôde, afinal, pela madrugada, comer um
pouco de galinha assada e porco, que havia sobrado do jantar; mas não encetou
discussão mais alguma com o doutor Praxedes; mesmo porque este já se havia
despedido, por ter de comparecer muito cedo à audiência de um pretor, a fim de
inquirir testemunhas num feito importante em que funcionava como advogado.
Quando todos se foram e Clara recolheu-se a seu quarto, que dava para a sala de
jantar, Joaquim e a mulher ficaram nela, comendo ainda alguma coisa que sobrara,
Foi então que Engrácia disse para o marido:
-Tudo foi muito bem. Todos se portaram decentemente, com respeito; mas uma coisa
não quero mais.
-O que é?
-É que esse Cassi venha mais aqui. Dona Margarida me disse que ele é, é um
devasso. Você não vê como ele canta indecentemente, revirando os olhos...
Não o quero mais aqui; se ele vier...
-Não é preciso você se zangar, Engrácia; não gostei também dele e não
porá mais os pés na minha casa.
Clara, que, deitada, no quarto, havia ouvido toda a conversa, pôsse, em
silêncio, a chorar.
V
Quem conhecesse intimamente Engrácia, havia de ficar espantado com a atitude
decisiva que tomou em relação à visita de Cassi. O seu temperamento era
completamente inerte, passivo. Muito boa, muito honesta, ativa no desempenho dos
trabalhos domésticos; entretanto, era incapaz de tomar uma iniciativa em
qualquer emergência. Entregava tudo ao marido, que, a bem dizer, era quem
dirigia a casa. Rol de compras a fazer na venda do "Seu" Nascimento,
diariamente, e também o de legumes e verduras, quem os organizava era o marido,
especificando tudo por escrito e deixando o dinheiro para o quitandeiro, todas
as manhãs, quando ia para o trabalho. De caminho, deixava a lista de gêneros
no "Seu" Nascimento, onde pagava tudo por mês.
Qualquer acontecimento inesperado que lhe surgisse no lar, punha-a tonta e
desvairada. Quando ainda tinham a velha preta Babá, que a criara na casa dos
seus protetores e antigos senhores de sua avó, talvez um deles, pai dela, ficou
Engrácia quase doida, ao ser a velha Babá acometida de um ataque súbito. Não
sabia o que fazer. Foi preciso que Dona Margarida interviesse, mandasse chamar o
médico, fizesse aviar a receita, tomasse, enfim, as providências que o caso
exigia. A velha morreu daí a pouco, de embolia cerebral. Muito Engrácia sofreu
com essa morte, pois, não tendo conhecido sua mãe, que lhe morrera aos sete
anos, fora Babá que a criara. Os seus protetores tinham sido abastados; eram
descendentes de um alferes de milícias, que tinha terras, para as bandas de
São Gonçalo, em Cubandê. Pouco depois da Maioridade, com a morte do chefe da
casa, filhos e filhas se transportaram para a Corte, procurando aqueles
empregaram-se nas repartições do governo. Um dos irmãos já habitava a
capital do Império e era cirurgião do Exército, tendo chegado a
cirurgião-mor, gozando de grande fama. Para a cidade não trouxeram nenhum
escravo. Venderam a maioria e os de estimação libertaram. Com eles, só vieram
os libertos que eram como da família. Pelo tempo do nascimento de Engrácia,
havia poucos deles e delas em casa. Só a Babá, sua mãe e um preto ainda
estavam sob o teto patriarcal dos Teles de Carvalho.
Engrácia foi criada com mimo de filha, como os outros rapazes e raparigas,
filhos de antigos escravos, nascidos em casa dos Teles.
Por isso, corria, de boca em boca, serem filhos dos varões da casa. O cochicho
não era destituído de fundamento, naquela família, composta de irmãs e
irmãos, ainda abastada, que se comprazia, tanto uns como as outras, em tratar
filialmente aquela espécie de ingênuos, que viam a luz do dia, pela primeira
vez, em sua casa. As senhoras, então, eram de uma meiguice de verdadeiras
mães.
Engrácia recebeu boa instrução, para a sua condição e sexo; mas, logo que
se casou - como em geral acontece com as nossas moças - -, tratou de esquecer o
que tinha estudado. O seu consórcio com Joaquim, ela o efetuara na idade de
dezoito anos.
Fosse a educação mimosa que recebera, fosse uma fatalidade de sua compleição
individual, o certo é que, a não ser para os serviços domésticos, Engrácia
evitava todo o esforço de qualquer natureza.
Não saía quase. Era regra que só o fizesse duas vezes por ano: no dia 15 de
agosto, em que subia o outeiro da Glória, a fim de deixar uma espórtula à
Nossa Senhora de sua íntima devoção; e, no dia de Nossa Senhora da
Conceição, em que se confessava. Levava sempre a filha e não a largava de a
vigiar, Tinha um enorme temor que sua filha errasse, se perdesse... A não ser
com ela, Clara, muito a contragosto da mãe, saía de casa para ir ao cinema, no
Méier e Engenho de Dentro, e outras vezes - poucas - para fazer compras nas
lojas de fazendas, de sapatos e outras congêneres, acreditadas nos subúrbios.
Essa reclusão e, mais do que isso, a constante vigilância com que sua mãe
seguia os seus passos, longe de fazê-la fugir aos perigos a que estava exposta
a sua honestidade de donzela, já pela sua condição, já pela sua cor,
fustigava-lhe a curiosidade em descobrir a razão do procedimento de sua mãe.
Clara via todas as moças saírem com seus pais, com suas mães, com suas
amigas, passearem e divertirem-se, por que seria então que ela não o podia
fazer?
A pergunta ficava sempre sem resposta, porque não havia meio, naquele
isolamento em que vivia, de tudo e de todos, de encontrar a que cabia.
Engrácia, cujos cuidados maternos eram louváveis e meritórios, era incapaz do
que é verdadeiramente educação. Ela não sabia apontar, comentar exemplos e
fatos que iluminassem a consciência da filha e reforçassem-lhe o caráter, de
forma que ela mesma pudesse resistir aos perigos que corria.
A mulher de Joaquim dos Anjos tinha a superstição dos processos mecânicos,
daí o seu proceder monástico em relação à Clara.
Enganava-se com a eficiência dela; porque, reclusa, sem convivência, sem
relações, a filha não podia adquirir uma pequena experiência da vida e
notícia das abjeções de que está cheia, como também a sua pequenina alma de
mulher, por demais comprimida, havia de se extravasar em sonhos, em sonhos de
amor, de um amor extra-real, com estranhas reações físicas e psíquicas.
Acresce, ainda, que era geral em sua casa o gosto de modinhas. Sua mãe gostava,
seu pai e seu padrinho também. Quase sempre havia sessões de modinhas e
violão na sua residência. Esse gosto é contagioso e encontrava, no estado
sentimental e moral de Clara, terreno propício para propagar-se, As modinhas
falam muito de amor, algumas delas são lúbricas até; e ela, aos poucos, foi
organizando uma teoria do amor, com os descantes do pai e de seus amigos. O amor
tudo pode, para ele não há obstáculos de raça, de fortuna, de condição;
ele vence, com ou sem pretor, zomba da Igreja e da Fortuna, e o estado amoroso
é a maior delicia da nossa existência, que se deve procurar gozá-lo e
sofrê-lo, seja como for. O martírio até dá-lhe mais requinte...
As emolientes modinhas e as suas adequadas reações mentais ao áspero proceder
da mãe tiraram-lhe muito da firmeza de caráter e de vontade que podia ter,
tornando-a uma alma amolecida, capaz de render-se às lábias de um qualquer
perverso, mais ou menos ousado, farsante e ignorante, que tivesse a animá-lo o
conceito que os bordelengos fazem das raparigas de sua cor.
Cassi era dessa laia: entretanto, Clara, na sua justificável ignorância do
mecanismo da nossa vida social, julgava que seus pais eram com ele injustos e
grosseiros.
Depois do baile de seu aniversário, quinze ou vinte dias depois, num domingo,
Cassi bateu à porta da casa de seus pais. Engrácia estava justamente arrumando
a sala de visitas; recebeu-o com visível desgosto e gritou ara a cozinha, onde
estava Clara:
-Chama teu pai, que está ai "Seu" Cassi.
A moça ia se aproximar para falar ao modinheiro, quando a mãe lhe disse
rapidamente:
-Vá chamar seu pai! Ande!
Joaquim não custou a vir; e, após os cumprimentos, dirigiu-se ao rapaz:
-Que é que manda nesta casa, meu caro senhor?
-Nada. Fui visitar um amigo e, passando pela sua porta, resolvi cumprimentá-lo.
-Muito obrigado. A partida de solo está fervendo e eu não me posso demorar.
Cassi olhou um instante, com seu olhar mau, o velho mulato; mas a nada se
atreveu. Estiveram calados dois ou três minutos um diante do outro, até que o
famoso violeiro tomou o alvitre de despedir-se. Clara veio saber da cena, pela
narração que seu pai fez à sua mãe, e ficou aborrecida, cheia de desgostos
com eles e com a situação em que estava, imposta por eles, para o seu
sofrimento.
Avaliou em algum ressaibo de revolta o procedimento dos pais. O que queriam
fazer dela? Deixá-la ficar para "tia" ou fazê-la freira? E ela
precisava casar-se? Era evidente; sua mãe e seu pai tinham, pela força das
coisas, que morrer antes dela; e, então, ela ficaria pelo mundo desamparada?
Cochichavam que Cassi era isto e era aquilo, Dona Margarida e o padrinho eram os
que mais mal falavam dele; que era um devasso, um malvado, um desencaminhador de
donzelas e senhoras casadas. Como ele poderia ser tanta coisa ruim, se
freqüentava casas de doutores, de coronéis, de políticos? Naturalmente havia
nisso muita inveja dos méritos do rapaz, em que ela não via senão delicadeza
e modéstia e, também, os suspiros e os dengues de violeiro consumado.
Uma dúvida lhe veio; ele era branco; e ela, mulata. Mas que tinha isso? Havia
tantos casos... Lembra-se de alguns... E ela estava tão convencida de haver uma
paixão sincera no valdevinos, que, ao fazer esse inquérito, já recolhida,
ofegava, suspirava, chorava; e os seus seios duros quase estouravam de
virgindade e ansiedade de amar.
De resto, era preciso libertar-se, passear, conhecer a cidade, teatros,
cinemas... Ela não conhecia nada disso. Até ir de um pulo à venda do
"Seu" Nascimento não tinha licença. Um dia, por inadvertência,
faltou sal para preparar o jantar; pois, nem mesmo assim, teve licença de ir à
venda, e sua mãe não foi, para não deixá-la só, Tiveram de esperar uma
hora, até que o caixeiro passasse. Entretanto, o armazém do "Seu"
Nascimento não era mal freqüentado, e todos que lá paravam eram pessoas de
certa consideração e sem pecha alguma. Esta última observação de Clara era
inteiramente verdadeira.
Mesmo a Rosalina, mais conhecida pelo apelido pejorativo de Mme. Bacamarte,
apesar da vida má e desgraçada que levava, no armazém se portava com todo o
rigor. Era verdadeiramente infeliz, essa rapariga. Seduzida em tenra idade, a
polícia obrigou o sedutor a casar-se com ela. Nos três primeiros anos, as
coisas correram mais ou menos naturalmente. Ao fim deles, devido a reveses, o
marido começou a embirrar com ela, a atribuir-lhe toda a sua desgraça, a
espancá-la, mas dando alguma coisa com que ela se sustentasse e aos filhos. Já
bebia, o marido dela; e, por esse tempo, fazia-o sem método nem medida. Bebia a
mais não poder, em casa, nos botequins, em toda a parte. Faltava à oficina
para beber. Rosalina "pegou" o vicio do marido e, do pouco dinheiro
que ele lhe dava ou com o seu trabalho obtinha, comprava parati. O marido devia
seis meses de casa - um modesto barracão de madeira, com uma sala, um quarto e
um pequeno adendo para a cozinha. O senhorio perseguia-o; ele fugia e deixava
com a mulher o encargo de explicar os atrasos. Um belo dia, ela vê entrar o
proprietário com dois homens. Nada dizem. Encostam sua escada no telhado e
destelham a choupana. Deixou tudo o que tinha na mão dos desalmados. Pede a uma
vizinha que fique com um filho; e uma outra, que fique com o mais moço, e
correu a atirar-se debaixo do primeiro trem que passou. Sofreu escoriações e
fraturas em um braço e uma perna; mas os médicos da Santa Casa conseguiram
salvá-la. Saiu renovada, e o seu rostinho de mulatinha sapeca tinha recuperado
um pouco o viço e a petulância que devia ter pela puberdade,
Os filhos, a mãe - uma pobre lavadeira - os tinha recolhido; e o marido nunca
mais o vira. Em começo, portou-se bem; mas bem depressa foi correndo de mão em
mão, até que as moléstias venéreas a tomaram de todo, obrigando-a a visitas
constantes à Santa Casa, para levar injeções e sofrer operações. Proibida
de beber, não obedecia à prescrição médica. Quando não tinha dinheiro,
obtido de que maneira fosse, esperava pacientemente que as suas galinhas ou as
de sua mãe, com quem morava, "pusessem", e logo corria à venda a
trocá-los, por duzentos ou trezentos réis de parati.
Ela, porém, não fazia "ponto" no armazém do "Seu"
Nascimento. Educado e criado na roça, tendo negociado no interior do Estado do
Rio, onde ainda tinha fazenda, ele gostava que pessoas de certa ordem fossem ao
seu negócio ler os jornais e conversar - hábito do interior, como todos
sabemos. A sua venda tinha até aqueles tradicionais tamboretes de abrir e
fechar das antigas vendas e ainda são conservados nos armazéns roceiros.
Demais, a sua casa de negócio ficava num lugar pitoresco, calmo, pouco
transitado, diante das velhas árvores da chácara de Mr. Quick Shays e olhando
para uns cumes caprichosos de montanhas distantes. Compravam muitas pessoas,
para as quais tinha freguesia certa.
Um deles era o Alípio, um tipo curioso de rapaz que, conquanto pobre e ter amor
à cachaça, não deixava de ser delicado e conveniente de maneiras, gestos e
palavras. Tinha um aspecto de galo de briga; entretanto, estava longe de possuir
a ferocidade repugnante desses galos malaios de rinhadeiro, não possuindo -
convém saber-se - nenhuma. Sem ser instruído, não era ignorante; mas era
inteligente e curioso de invenções e aperfeiçoamentos mecânicos.
O velho Valentim era um outro freqüentador da venda, muito curioso e pitoresco.
Português, com muito mais de sessenta anos, não deixava de trabalhar, chovesse
ou fizesse sol. Era chacareiro e, devido talvez ao ofício, que ele o devia
exercer há bem perto de quarenta anos, tinha o corpo curvado de modo
interessante. Não se sabia se era para trás ou para diante; fazia uma espécie
de S, em que faltassem as extremidades.
Contava longos "casos" que não se acabavam mais, especialmente o
João de Calais - como ele pronunciava - -, pontilhando a sua longa e enfadonha
narração, com rifões portugueses de uma graça saborosa e uma filosofia
saloia. Era o que se aproveitava da sua conversa.
Aparecia, também, em certas ocasiões, o Leonardo Flores, poeta, um verdadeiro
poeta, que tivera o seu momento de celebridade no Brasil inteiro e cuja
influência havia sido grande na geração de poetas que se lhe seguiram.
Naquela época, porém, devido ao álcool e desgostos íntimos, nos quais
predominava a loucura irremediável de um irmão, não era mais que uma triste
ruína de homem, amnésico, semi-imbecilizado, a ponto de não poder seguir o
fio da mais simples conversa. Havia publicado cerca de dez volumes, dez
sucessos, com os quais todos ganharam dinheiro, menos ele, tanto assim que,
muito pobremente, ele, mulher e filhos agora viviam com o produto de uma
mesquinha aposentadoria sua, do governo federal.
Raro era sair, porque a mulher punha todo o esforço em que ele o não fizesse.
Mandava buscar parati, comprava-lhe os jornais de sua estimação, a fim de que
ele permanecesse em casa. As mais das vezes, ele obedecia; mas, em algumas
raras, recalcitrava, saia, com quinhentos réis em cobre, na algibeira, bebia
aqui, ali, dormia debaixo das árvores das estradas e ruas pouco freqüentadas,
e, mesmo, quando o delírio alcoólico o tornava forte, despia-se todo e gritava
heroicamente numa doentia e vaidosa manifestação de personalidade:
-Eu sou Leonardo Flores.
O povo sabia vagamente que ele tinha celebridade. Chamava-o - o poeta. No
começo, caçoava com ele, mas ao saber de sua reputação, deram em cercá-lo
de uma piedosa curiosidade.
-Um homem desses acabar assim - que castigo! - dizia um.
-É "cosa" feita! Foi inveja da "inteligença" dele! - dizia
uma preta velha. - Gentes da nossa "cô" não pode "tê
inteligença"! Chega logo os "marvado" e lá vai reza e
"fetiço", "pá perdê" o homem - rematava a preta velha.
Aparecia um circunstante mais prático na sua piedade, vestia novamente o poeta
e levava-o para a casa.
Era justamente a ele, Leonardo Flores, que o doutor Meneses procurava, quando,
naquela manhã de dia santo e não feriado, entrou na venda de "Seu"
Nascimento, mancando, devido à inchação das pernas, e com as suas barbas
brancas, abundantes, mas não cerradas, aparadas e tratadas à imitação do
nosso último Imperador.
O doutor Meneses galgou a soleira da porta com esforço; parou um instante, logo
que se viu no interior da venda, pôs as mãos nas cadeiras e respirou com
força.
Após os cumprimentos, perguntou:
-O Flores não tem aparecido?
-Há muito tempo que não vem aqui - fez o "Seu" Nascimento do
interior do balcão.
-Fui à casa dele, e disse-me a mulher que havia saído... Preciso tanto dele...
Ao dizer isto, sentava-se no tamborete que o caixeiro lhe abrira e o pusera onde
ele estava, o dentista.
Descansou mais um pouco, sorveu mais uma forte dose de ar e, dirigindo-se ao
Alípio, perguntou:
-Como vai você, Alípio?
Só estavam na venda Alípio e o velho Valentim, este em pé, encostado ao
umbral de uma porta lateral; e aquele, sentado, lendo um jornal.
Alípio respondeu:
-Vou bem; não tão bem como o senhor, que anda agora em companhia de
"almofadinhas" artistas.
-Como? - fez espantado o dentista particular.
-É o que dizem. Corre aqui que o senhor está toda a noite com o
mestre-violeiro Cassi e vários companheiros, num botequim do Engenho Novo.
-É verdade. São todos rapazes decentes, que...
-Então, o Cassi, este é de colete?
-Dizem - interveio "Seu" Nascimento - que esse rapaz...
-É um bandido - acudiu Alípio. - Ele merecia mais do que cadeia; merecia ser
queimado vivo. Tem desgraçado mais de dez moças e não sei quantas senhoras
casadas.
-Isto é calúnia! - protestou Meneses. - Fala-se muito por aí...
-Que o quê! Os processos têm corrido, os jornais têm publicado, e ele arranja
meios e modos, para livrar-se das penalidades e lançar na desgraça moças e
senhoras - confirmou Alípio.
-Como ele consegue isso? - indagou "Seu" Nascimento.
-No começo, com a proteção do pai. Ao fim do segundo ou terceiro caso que
veio a público, o pai não lhe falou mais e nunca mais se interessou pela sua
liberdade. Sucederam-se outros, e, graças à intervenção da mãe junto a um
irmão, médico do Exército, ele pôde arranjar rábulas sem escrúpulos, que,
pelos meios mais nojentos, conseguiram retirá-lo das grades da detenção.
Caluniava as vítimas com justificações em que eram testemunhas Timbó,
Arnaldo e outros tais. Contou-me a Vicência - o senhor não a conhece,
"Seu" Nascimento? - perguntou Alípio.
-Quem é? - perguntou por sua vez o taberneiro.
-É aquela crioula velha que vem aqui, às vezes, fazer compras, para a casa do
Maior Carvalho. Ela foi empregada na casa do pai de Cassi muito tempo. Um dia -
ela não sabe bem por quê - o pai expulsou-o de casa. A mãe mandou-o para a
casa do irmão em Guaratiba. Lá, ele fez ou pretendeu fazer uma das suas, mas o
tio não esteve pelos autos; despachou-o para a irmã. A muito custo, a mãe
conseguiu que ficasse num porão dos fundos, que mal tem a altura dele, Nesse
"socavão" é que ele mora e come. Nunca sobe nas dependências
superiores da casa, com medo do pai. Se, por acaso, este tiver notícia dessa
sua ousadia, põe-no definitivamente na rua.
-Que diz a isso, doutor Meneses? - chasqueou Nascimento.
-Não sei, porque pouco me preocupo com a vida dos outros - tergiversou Meneses.
-Não é da vida dos outros - fez impetuosamente Alípio - ; é com a vida de um
pirata como Cassi, que não respeita família, nem amizades, nem a miséria, nem
a pobreza, para fazer das suas porcarias. É por isso que eu...
"Seu" Nascimento interveio suasoriamente e pediu calma. Era um homem
alto, claro, um tanto obeso, tipo do antigo agricultor patriarcal, das nossas
velhas fazendas. Ele assim disse:
-Não é necessário indignar-se, Alípio, fique calmo. O monstro não tem mais
protetores, como você já disse.
-Tem, "Seu" Nascimento - afirmou Alípio. - Ele é esperto, "é
manata escovado".
-Quem é, Alípio? - perguntou Nascimento, indo servir de açúcar a um pequeno.
Os fregueses continuavam a chegar; em geral, eram crianças e mulheres. As suas
compras eram pobres: dois tostões disso, quatrocentos réis daquilo - compras
de gente pobre, em que raramente se via nelas incluído meio quilo de carne-seca
ou um de feijão. Tudo não excedia a tostões. Mesmo atendendo aos fregueses,
sozinho, pois os caixeiros tinham ido correr a clientela fixa do armazém,
"Seu" Nascimento não perdia o fio da conversa, e ela continuava
naturalmente.
Alípio, habituado a isso, não suspendeu a narração e deu a resposta pedida.
-O protetor dele, agora, é um tal Capitão Barcelos, chefe político na
estação de***. Tem influência e foi por saber disso que Cassi aderiu a ele.
Já nessa última eleição para uma vaga de intendente, ele funcionou com o seu
rancho ao lado de Barcelos. Não houve desordens, porque não apareceu outro
candidato; mas ele queria fazer uma para ganhar prestígio. Assim e aos poucos,
vai ganhando a confiança de Barcelos, a ponto do Freitas, que é o subcabo
deste, sentir-se magoado e preterido.
-Quem é esse Barcelos? - fez Nascimento.
-É um português, já com seus cinqüenta anos, bom, bom mesmo; mas, tendo ido
para a detenção, pronunciado que estava devido a uns tiros que dera em um
sujeito, por lhe ter insultado a mulher, produzindo no meliante ferimentos
graves, isto há vinte anos, ganhou lá o gosto pela política e lá aprendeu as
primeiras noções dessa difícil ciência. Foi na detenção que...
-Ué! - exclamou Nascimento.
-Também você, Alípio... - fez duvidoso Meneses.
Alípio continuou:
-Lá, ele encontrou um político daqui da Capital, que estava na chácara, a
responder processo, como mandante de um assassínio. O homem aproximou-se de
Barcelos, e puseram-se a conversar. Não estavam no cubículo; estavam na
enfermaria, ou na sala livre, ou em outro compartimento especial. Barcelos
narrou sua vida, que, apesar daquele transtorno, não corria
- Mas, "Seu" Alípio, o senhor acredita que haja gente tão malvada,
como esse Cassi?
- Há, e não pouca. Sei de tudo que contei de fonte limpa. É a pura verdade.
O doutor Meneses tinha ficado aborrecido com o tom da conversa. Tinha ido à
venda, procurar Leonardo Flores, para um negócio particular; e encontrara o
Alípio a par das suas relações com Cassi e inteirado da vida deste. Diabo!
Estaria se comprometendo? Havia já tomado quatro copitos de parati; mas, quando
se despediu, tomou um grande. Caminhando pôsse a pensar;
- Que devia fazer?
Pegou diversas hipóteses e concluiu:
- Ir até o fim.
A coisa não oferecia nenhum perigo para ele...
Isso não o contentou de todo. Procurou distrair-se.
VI
A recepção que tivera Cassi, na sua segunda visita, seca, hostil, quase sendo
despedido à soleira da porta, ao contrário da primeira vez que fora à casa de
Joaquim dos Anjos, fizera-o meditar e açulara-lhe o desejo de remover todos os
obstáculos que se opunham à sua aproximação de Clara. Por exclusão, ele só
viu duas pessoas capazes de lhe estarem atrasando seu "trabalho",
começado com tanta rapidez e sem esforço. Quem eram? Só podiam ser Dona
Margarida, por causa do "negócio" do Timbó; e o tal aleijado, que
lhe lançara a indireta, em verso, de chamá-lo de burro.
Se na sedução, propriamente, ele não empregava absolutamente força, no que
era o contrário dos conquistadores suburbanos, a ponto dos jornais noticiarem,
de quando em quando, o desespero das vítimas que se fazem assassinas, para se
defenderem de tão torpes sujeitos; Cassi, entretanto, quando no decorrer de
suas conquistas, encontrava obstáculos, fosse mesmo da parte do próprio irmão
da vítima em alvo, logo procurava empregar violência, para arredá-lo.
É bem de ver que ele sabia com quem se metia; mas, no caso, tratando-se de um
quase inválido, a força a empregar seria mínima; e, no que toca a Dona
Margarida, ele saberia enganá-la e embaí-la.
A sua força de valente e navalhista era mais fama do que realidade; mas tinha
fama, e muitos se intimidavam. Dava-lhe isso um ascendente sobre os que, de boa
fé e honestamente, podiam prevenir as moças que ele cobiçava, não as
prevenindo, não as avisando, não o desmascarando totalmente. Cheios de temor,
deixavam o caminho franco ao modinheiro.
A tal respeito, com o seu cinismo de sedutor de quinta ordem, tinha uma oportuna
teoria, condensada numa sentença: "não se pode contrariar dois corações
que se amam com sincera paixão."
Colocando ao lado dessa teoria, bem sua, a consideração de que não empregava
violência nem ato de força de qualquer natureza, ele, na sua singular moral de
amoroso-modinheiro, não se sentia absolutamente criminoso, por ter até ali
seduzido cerca de dez donzelas e muito maior número de senhoras casadas. Os
suicídios, os assassínios, o povoamento de bordéis de todo o gênero, que os
seus torpes atos provocaram, no seu parecer, eram acontecimentos estranhos à
sua ação e se haviam de dar de qualquer forma. Disso, ele não tinha culpa.
Para certificar-se quem era que, na casa do "carteiro", fermentava o
seu descrédito, Cassi resolveu ir sondar Lafões, em sua casa.
Lafões morava bem próximo do reservatório do Engenho de Dentro. Uma tarde,
Cassi tomou o bonde de Piedade, que, para ir a essa estação, logo após o
Méier, interna-se para os lados da serra, toma ruas despovoadas e, por fim, a
do Engenho de Dentro. O caminho era então pitoresco, não só pelos restos de
capoeira grossa que ainda havia, mas também pelas casas roceiras de varanda e
pequenas janelas de outros tempos. Caminho de "tropa", talvez, os
engenheiros da Light só se deram ao trabalho de fazer sumários nivelamentos.
Os altos e baixos, os atoleiros e atascadeiros, consolidados com gravetos e
varreduras de capinas, transformaram o caminho do bonde, naquele trecho, numa
montanha-russa, com a lembrança, de um lado e outro, do espetáculo do que
seriam ou do que são os caminhos do nosso interior, pelos quais nos chegam os
cereais e a carne que comemos.
Às vezes, o bonde cruzava com uma tropa de carvoeiros de Jacarepaguá, da Serra
do Mateus e outras localidades ainda com florestas aproveitáveis; e tínhamos
uma imagem mais viva. Os tropeiros eram gente de sangue muito mesclado, ossudos,
jarretes nervosos e finos, pés espalmados, às vezes de feições regulares,
mas sempre cobertos de barbas maltratadas e de uma insondável tristeza. Não
eram só homens feitos; havia crianças também, a guiar os burros em fila.
Quando o bonde apontava a sacolejar as suas ferragens, estourando que nem um
besouro, avisando-os da sua presença próxima com o zunido contínuo do
tímpano, ou, senão, com um apito, ao grito de locomotiva, aqueles homens,
vivendo tão perto da terra e da natureza espontânea, não deixavam de se
assustar e tomar precauções, para sua segurança e dos seus pacientes
animalejos. Encostavam bem a tropa a uma ribanceira lateral da rua, quando na
encosta; ou afastavam-se para o lado, se havia terreno baldio e sem cerca,
quando ela era planície; e ficavam pasmos, diante daquele monstro zunidor que
se movia por intermédio de um grosso fio de arame. Os burros, quer num, quer
noutro caso, permaneciam indiferentes e punham-se a roer a erva escassa do campo
ou a pastar a folhagem que lhes dava sombra e crescia no alto da chanfradura do
corte.
Chegou Cassi Jones à casa de Lafões quase à noite, Era uma pequena casa, mas
bem tratada e limpa. O pequeno jardim na frente merecia cuidados e, no quintal,
aos fundos, cresciam couves e repolhos, a dar saudades de um bom caldo à
portuguesa.
Lafões, por aquelas horas, após o jantar, tinha por hábito pôr-se em camisa
de meia, tamancos e calça, e completar a leitura do jornal que iniciara pela
manhã. Sentava-se a uma cadeira de balanço, austríaca, que a punha bem junto
à janela, tendo, à esquerda, uma cadeira, em que repousavam o isqueiro (não
usava fósforo) e os cigarros "Fuzileiros".
Estava assim, naquela postura, e enrolava melhor um cigarro pacientemente,
quando lhe bateram no portão de ripas de madeira. Ergueu um tanto o busto e,
pondo um pouco a cabeça à mostra, quase rente ao peitoril da janela,
perguntou:
-Quem é?
Reconheceu logo:
-É o Senhor Cassi.
Ergueu-se e foi ao encontro dele, abrindo a porta de entrada. Tomoulhe o chapéu
pelintra, a bengala ultra-aperfeiçoada e foi dizendo prazenteiramente:
-Por aqui? Sente-se, ora esta! Seja bem-vindo!
O rapaz sentou-se, respondendo:
-Muito obrigado, meu caro "Seu" Lafões.
-Por que não aparece mais vezes, Senhor Cassi? - continuou Lafões com amizade.
-Não tenho tido tempo. Nos dias da semana, são os negócios; nos domingos,
não dou para os convites. Eu vinha aqui...
-Para quê, Senhor Cassi?
-Pedir-lhe uma informação.
-Qual é, Senhor Cassi?
-Disseram-me que, no seu escritório, o inspetor está admitindo escreventes,
para não sei que serviço extraordinário. O senhor não podia saber se isto é
verdade?
-Pois não. Indago ao Braga, que é contínuo, vivo que nem azougue, e sabe de
tudo que lá se passa - explicou Lafões.
-Quando posso vir buscar a resposta?
-Olhe, Senhor Cassi: amanhã, à tarde, não, porque tenho que ir à sessão da
minha sociedade; mas, se tem pressa, pode vir depois de amanhã, logo pelas sete
ou oito horas.
-Bem - fez Cassi, simulando contentamento. - Desde já agradecido. Como vão sua
senhora e seus filhos?
-Bem. A mulher saiu mais o mais moço; foram a não sei que ladainha por ai. É
um inferno! Estes padres têm invadido estes subúrbios com mais rapidez que os
"turcos" de prestações. É dinheiro para esse santo, é dinheiro
para as obras da igreja... Não posso mais! Edméia, porém, está lá no fundo
do quintal. Quer tomar café, Senhor Cassi?
-É incômodo... Se a sua senhora estivesse, sim; mas...
-Não há incômodo algum. Edméia o aquece no espírito... Só se o Senhor
Cassi não gosta aquecido?
-Gosto.
-Pois bem, vamos a ele - e gritou pela filha, com possante voz de homem são: -
Edméia! Edméia!
Não tardou em aparecer a filha. Era uma gentil menina de doze anos, risonha,
com uma fisionomia redonda de traços firmes e finos, cabelos tirando para o
louro, cortados à inglesa. Entrando, exclamou logo:
-Oh! Estava aqui "Seu" Cassi. Que surpresa! Não sabia...
Falou ao rapaz e este lhe disse a esmo;
-Há muito que não a via.
-É verdade, desde o dia de anos de Clarinha... Tem ido lá?
-Não tenho podido.
-Por quê? Parece que lá não gostam do senhor... Principalmente aquele
"pé-pe"...
-Menina - ralhou-lhe o pai. - Não te metas a intrigar os outros... Vá aquecer
o café e traze-nos duas xícaras. Vá.
Saindo a menina, Cassi julgou de bom alvitre, para preencher o fim verdadeiro de
sua visita, dizer;
-Podem não gostar de mim. Mas a implicância é sem motivo, Nunca...
-Ora, Senhor Cassi, o senhor vai dar ouvido a crianças. Elas não sabem o que
dizem.
-Agora, meu caro "Seu" Lafões, eu notei no dia da festa que o
compadre do Senhor Joaquim dos Anjos não me tragava - disse Cassi.
-Isto se explica. Ele foi ou é poeta e tem em conta de coisa nenhuma os
cantadores de modinhas. Lá na minha terra, os poetas fidalgos e das idalgas
não tragam os fadistas do campo, aos quais chamam de rústicos e outras coisas
piores. Em cada ofício, há sempre disso. O senhor não vê como os cocheiros
desprezam os barbeiros? Cocheiro que não presta é barbeiro. Marramaque, velho,
doente, não sabe disfarçar o seu mau juízo pelos que apreciam o violão e o
tocam, cantando modinhas.
-Mas... o "Seu" Joaquim?
-É que eles são compadres e amigos, meu caro Senhor Cassi, Está explicado.
Vieram as xícaras de café e a conversa tomou outro rumo. Falaram sobre as
festas próximas do centenário da Independência, sobre o crise financeira, mas
Cassi em nada disso pensava. Pensava em Marramaque, o audacioso aleijado, que
queria se intrometer no seu amor por Clara. Pagaria bem caro. Despediu-se em
breve e, lentamente, deixou-se ir a pé subúrbios abaixo. Eram estranhos aquele
ódio e aquela obstinação. Cassi não era absolutamente, nem mesmo de forma
elementar, um amoroso. A atração por uma qualquer mulher não lhe desdobrava
em sentimentos outros, às vezes contraditórios, em sonhos, em anseios e
depressões desta ou daquela natureza. O seu sentimento ficava reduzido ao mais
simples elemento do Amor - a posse. Obtida esta, bem cedo se enfarava,
desprezava a vítima, com a qual não sentia ter mais nenhuma ligação
especial; e procurava outra.
A sua instrução era mais que rudimentar; mas, assim mesmo, talvez devido a uma
necessidade íntima de desculpar-se, gostava de ler versos líricos,
principalmente os de amor. Não lia jornais, nem coisa alguma; mas, num retalho
apanhado aqui, num almanaque acolá, num livro que lhe ia ter às mãos, sem
saber como, conseguia ler alguns e os entender pela metade. Deles, desses
sonetos e mais poesias que, por acaso, iam parar em seu poder, ele concluía,
com a sua estupidez congênita, com a sua perversidade inata, que tinha o
direito de fazer o que fazia, porque os poetas proclamam o dever de amar e dão
ao Amor todos os direitos, e estava acima de tudo a Paixão. Vê-se bem que ele
não sentia nada do que, poetas medíocres que o guiavam nas suas torpezas,
falavam; e, sem querer apelar para grandes ou pequenos poetas, percebia-se
perfeitamente que nele não havia Amor de nenhuma natureza e em nenhum grau. Era
concupiscência aliada à sórdida economia, com uma falta de senso moral digna
de um criminoso nato - o que havia nele.
O verdadeiro estado amoroso supõe um estado de semiloucura correspondente, de
obsessão, determinando uma desordem emocional que vai da mais intensa alegria
até à mais cruciante dor, que dá entusiasmo e abatimento, que encoraja e
entibia; que faz esperar e desesperar, isto tudo, quase a um tempo, sem que a
causa mude de qualquer forma.
Em Cassi, nunca se dava disso. Escolhida a vítima de sua concupiscência, se,
de antemão, já não as sabia, procurava inteirar-se da situação dos pais,
das suas posses e das suas relações. Em seguida, tratava de encontrar-se com
ela num baile ou uma sala de festas e impressioná-la com os seus dengues no
violão. Se percebia que tinha obtido algum sucesso, esforçava-se em reiterar
os encontros nos cinemas, nos bondes, nas estações, e, na ocasião propícia,
pespegava-lhe a carta fatal. Isto tudo era feito com muita calma e
discernimento, pacientemente, sem ser perturbado em nenhum movimento de
impaciência ou arrebatamento. Se a moça ou a senhora aceitava-lhe os
galanteios e as cartas, ele tinha o final como certo; se não, ele não perdia
tempo, abandonava os esforços preliminares e esperava que outra mais suasória
aparecesse.
No caso de Clara, ele não estava disposto a acreditar que se houvesse dado a
primeira hipótese, porquanto lhe davam certeza disso o embevecimento com que o
ouvira cantar, na noite da festa dos anos dela, e a insistência que mostrara em
vir falar com ele, quando lhe foi à casa do pai pela segunda e última vez. O
que lhe parecia, por indícios aqui e ali, é que alguém se havia interposto
entre ele e ela, "entre dois corações que se amam", denunciando aos
pais dela os seus maus precedentes de conquistador contumaz, de forma a
trancarem-lhe aqueles as portas de sua casa, a ele, Cassi.
Agora mesmo, tivera a confirmação dessa suspeita com a ingênua denúncia de
Edméia, a filha de Lafões, de que Marramaque, padrinho de Clara, não gostava
dele. Era, portanto, prevenir-se contra as "intrigas" do aleijado e
arredá-lo de vez. Cassi sabia que, quase sempre, Marramaque parava na venda do
"Seu" Nascimento, quando vinha do trabalho. Lá ficava bebericando com
outros, até que o negócio se fechasse. A ele, Cassi, não convinha ir por
todos os motivos; Timbó não podia também, por ser muito conhecido na
localidade, devido à surra que levara; Zezé Mateus era um idiota. Quem iria,
então, sondar aquele terreno? O Arnaldo, que não era conhecido no local, nem
sabidas eram as suas relações com ele. Muito a contragosto, dirigiu-se para a
casa dos pais. Não tinha dinheiro que prestasse, para "escorvar" o
jogo.
O seu "socavão" doméstico ficava bem debaixo da sala de jantar da
casa, que aí acabava o seu corpo principal. As dependências restantes ocupavam
um puxado longo. Quando ele entrou, percebeu que na sala de jantar, além do
pai, mãe e irmãs, havia alguém que não era de hábito e dissera, ouvindo-lhe
os passos:
-Há alguém aí?
-É Cassi - dissera a mãe,
-Ele não sobe aqui? - perguntou a visita.
Todos se calaram e se entreolharam, enquanto o velho Manuel de Azevedo explicava
o fato em quatro palavras:
-Você queria, Augusto, que eu, chefe de família, que prezo a honra das filhas
dos outros como a das minhas, deixasse semelhante miserável sentar-se ao meu
lado? Se não o pus de todo para a rua, foi devido à mãe.
-Você tem razão, mano; mas tudo isto que se diz dele pode ser calúnia.
-É também o meu pensamento, Augusto - falou Dona Salustiana.
As moças se haviam calado por pudor, mas o velho Azevedo cortou de vez o
argumento da mulher e do irmão:
-Você não leu esses papéis escritos a máquina, que mandaram a você, dois
dias após você chegar, para o hotel?
-Li.
-Leu as datas, a narração dos fatos, as cartas?
-Li, também, mas o tempo...
-Pois tudo é verdade; e ninguém mais do que eu, infelizmente, pode assegurar
isso. Em menos de dez anos, esse meu indigno filho fez tudo isso. Não o posso
negar em sã consciência. Se não posso...
Ao entrar, Cassi, tendo percebido que a conversa ia versar sobre ele, colocou-se
de ouvido atento, embaixo da janela, nada perdendo e conseguindo ouvir esse
trecho em que tomava parte o seu tio Augusto, irmão de seu pai, que, havia
muito tempo, andava destacado numa alfândega do Norte. Quando o velho Manuel de
Azevedo falou em papéis escritos a máquina, trazendo indicações de datas e a
narração dos fatos de suas complicações com a polícia e a justiça, Cassi
assustou-se. Quem estaria fazendo aquele trabalho surdo? Não era a primeira vez
que tivera notícia da existência desse caderno misterioso e misteriosamente
distribuído pelo correio. Dissera-lhe um investigador de uma delegacia
suburbana que, logo que havia mudança de delegado ou de comissário, numa
delas, o novo delegado ou o novo comissário recebia o tal caderno.
Apavorava-lhe essa perseguição nas trevas, talvez segura, que, aos poucos, o
ia minando. Tão indiferente era ele pela sorte de suas vitimas e tão estúpido
se mostrara sempre em não compreendê-las, que não podia encadear raciocínios
seguros, para ter a procedência, mais ou menos provável, da remessa de tais
cadernos.
Precisava fugir - era o que concluía; e ele se sentia ameaçado, não por
duendes, mas por alçapões, homens mascarados, cárceres privados, suplícios,
etc. - todo o arsenal do maravilhoso das fitas de cinema.
Entretanto, queria antes resolver o caso de Clara, que, apesar de tudo,
considerava em meio.
Deitou-se e dormiu regaladamente, até o alvorecer do dia. Logo que a luz do sol
ganhou uma relativa nitidez, ele foi passar revista nas suas gaiolas de galos de
briga. Estava tudo a postos, e foi lhes dando milho, tirado de uma lata que
tinha em uma das mãos, e olhando todos aqueles bichos hediondos, com a ternura
de um honesto criador, que revê o seu trabalho nas travessas pesquisas ou na
doçura de olhar de seus cordeiros. Aos pintos, deu milho moído, triguilho, e
só não deu ovo picado porque não era dia. O seu embevecimento por aquelas
horrendas aves era sincero: elas lhe faziam ganhar dinheiro. Olhou-as e
perguntou de si para si:
-Quanto valeriam ao todo?
Alguns já lhe haviam oferecido quinhentos mil-réis e ele estava disposto a
vendê-las, por esse preço, depois que a "coisa" estivesse acabada...
Veio tomar café no "socavão", onde a velha Romualda lho trazia todas
as manhãs. Era velha, e a sua velhice a defendia perfeitamente contra qualquer
assalto de Cassi. Perguntou-lhe este:
-Meu tio ainda está aí?
-Quem é seu tio, nhonhô?
-Aquele moço que esteve ontem, à noite.
-Ah! Foi embora logo depois do chá.
Não trocaram mais palavras. Depois de servido o café e comido o pão com
manteiga, a velha Romualda levou a bandeja com a xícara, e Cassi tratou de
vestir-se e sair.
Quase nunca parava em casa. Temia encontrar-se com o pai, que, por isto ou por
aquilo, houvesse resolvido ficar no lar, e também por não poder suportar o
desdém de suas irmãs. A casa era-lhe mais penosa do que os xadrezes, por onde
passara dezenas de vezes.
Ia à procura de Arnaldo, que, morando na Estrada Real, vinha no bonde de
Cascadura, para tomar o trem no Méier. Arnaldo não deixava de um só dia ir
"lá embaixo". Esperava sempre fazer um biscate e, quando não o
fizesse, arranjar algum "magote" no trem.
Não se enganara. Às nove e pouco, Arnaldo, com o seu nariz de tromba de tapir,
os seus olhos arredios e catadores, chegara; Cassi disselhe que dele precisava,
às cinco horas, ali; e pagou-lhe o café.
-Pois não, Cassi; nas ocasiões é que se vêem os amigos. Cá estarei.
Fazendo o sacrifício de perder uma tarde de colheita, Arnaldo chegou na hora
marcada, ao ponto ajustado.
Cassi explicou-lhe então que devia ir, naquela tarde, à venda do Nascimento,
cuja rua e cujo número lhe deu. Chegando lá, simularia ter ido procurar por
"Seu" Meneses, que ele conhecia.
-Se ele não estiver? - indagou Arnaldo.
-Você diz que fica à espera e ouve o que se conversa lá. Nela, devem estar,
entre outros, o aleijadinho que anda sempre fardado. Ele não conhece você,
como os outros, conforme espero. O que você ouvir, guarda e me conte. Se
Meneses aparecer, você diz que quero falar com ele, negócio de interesse dele.
Cassi deu-lhe dois mil-réis e ele se pôs a caminho, mas a pé, para poupar o
tostão do bonde. Chegou à venda de "Seu" Nascimento, teve duas
decepções. Encontrara dois sujeitos, que o conheciam perfeitamente: um era um
engenheiro inglês, Mr. Persons, de quem "abafara" uma capa de
borracha, e o outro era o Alípio, que até o sabia da roda de Cassi.
Não se deu por vencido e, atravessando por entre Alípio e o velho Marramaque,
que conversavam, foi direto ao balcão e perguntou naturalmente:
-O senhor não conhece um velho dentista, por nome Meneses?
E acrescentou:
-Ele tem vindo aqui?
O taverneiro respondeu:
-Há dias que não - e, dirigindo-se aos circunstantes, por sua vez indagou: -
vocês têm visto o doutor Meneses?
Todos, porém, responderam: não.
Arnaldo ia dizer obrigado, para retirar-se, quando Mr. Persons perguntou-lhe:
-Sinhor, vem cá!
Arnaldo fez-se jovial.
-Oh! "Seu" mister como vai?
-Não diga "Seu" mister, é "error". Bem... Onde está mia
capa?
-Trago por esses dias, tenho me esquecido.
-Já é duas vezes que "sinhor" diz isso. Eu precisa da capa.
-Não me esquecerei.
E saiu apressado. O negócio da capa fora simples. Persons não viera da cidade
são de seu juízo e deixara a capa descansando no banco, ao lado, recostando-se
na parede do carro. Pouco antes de certa estação, Arnaldo sentou-se a seu
lado, no intento de carregar-lhe a capa. Ao pôr em prática o seu propósito,
Persons despertou, mas só pôde dar com o furto, quando Arnaldo ia saindo do
carro. Gritou: "minha capa". Um condutor ainda agarrou Arnaldo com a
carga, mas, quando o Persons deu com o lugar em que estavam ambos, já o
auxiliar o tinha largado e o trem se pusera em movimento. Guardara, porém, a
fisionomia do gatuno; e, vindo a encontrar-se com ele, perguntara-lhe por essa
peça de vestuário, e Arnaldo lhe dissera que a havia levado por engano.
Ele saiu corrido de vergonha; mas, vendo que ninguém vinha até às portas da
venda, ele voltou e se pôs a ouvir o que diziam.
O mister já acabara de contar a história da capa, quando Alípio, em tom de
comentário, dissera:
-Isto que saiu daí é uma peste. Não sabia dessa história de furtos nos
trens; mas basta ele ser do bando do tal Cassi, para não prestar.
Marramaque acudiu:
-Eu ainda não conhecia este. Vou indicá-lo ao compadre. O tal Trembó ou
Tipó, como é?
-Timbó, fez Alípio.
-O tal de Timbó já conheço e já o apontei ao compadre. Por falar nisto, o
senhor sabe, "Seu" Nascimento e meus senhores, o que recebi, há dias,
pelo correio, na secretaria?
-Não - responderam todos, por sinais ou por palavras,
-A vida desse Cassi.
-Impressa?
-Não. Copiada a máquina de escrever, com fotografias dele, cópias de
notícias dos jornais do tempo, indicação das datas dos processos e dos
juízes e delegados - tudo!
-Quem lhe mandou? - perguntou Alípio.
-Não sei. Recebi a coisa na secretaria, lá a li e dei-a ao compadre, para se
prevenir.
-Com uma boa garrucha - observou Nascimento.
-Ou revólver - obtemperou Marramaque.
Ouvindo tudo isto e percebendo que alguém se dirigia à venda, cuja hora de
fechar não tardaria, Arnaldo deixou o lugar em que estava e correu ao encontro
de Cassi, que devia estar no Engenho Novo.
Encontraram-se, e ele, no que não tinha o menor hábito, contou-lhe toda a
verdade vista e ouvida.
Cassi nem Arnaldo não eram dados à bebida; mas o momento a pedia. Aquele
convidou o seu dedicado companheiro a tomar uma garrafa de cerveja, o que
fizeram quase sem conversar.
Acabada, pagaram e levantaram-se. Arnaldo procurou o seu rumo e Cassi meteu-se
pela sombria rua do Barão de Bom Retiro.
Embora não fosse tarde, já se ouviam os tiros que os suburbanos dão, de
quando em quando, para afugentar os ladrões dos seus galinheiros.
Um estourou bem perto dele, e Cassi, fingindo-se calmo e sem apreensões, disse
à meia voz:
-Ainda não foi desta vez.
VII
O subúrbio propriamente dito é uma longa faixa de terra que se alonga, desde o
Rocha ou São Francisco Xavier, até Sapopemba, tendo para eixo a linha férrea
da Central.
Para os lados, não se aprofunda muito, sobretudo quando encontra colinas e
montanhas que tenham a sua expansão; mas, assim mesmo, o subúrbio continua
invadindo, com as suas azinhagas e trilhos, charnecas e morrotes. Passamos por
um lugar que supomos deserto, e olhamos, por acaso, o fundo de uma grota, donde
brotam ainda árvores de capoeira, lá damos com um casebre tosco, que, para ser
alcançado, torna-se preciso descer uma ladeirota quase a prumo; andamos mais e
levantamos o olhar para um canto do horizonte e lá vemos, em cima de uma
elevação, um ou mais barracões, para os quais não topamos logo da primeira
vista com a ladeira de acesso.
Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por toda a parte onde se
possa fincar quatro estacas de pau e uni-las por paredes duvidosas. Todo o
material para essas construções serve: são latas de fósforos distendidas,
telhas velhas, folhas de zinco, e, para as nervuras das paredes de taipa, o
bambu, que não é barato.
Há verdadeiros aldeamentos dessas barracas, nas coroas dos morros, que as
árvores e os bambuais escondem aos olhos dos transeuntes. Nelas, há quase
sempre uma bica para todos os habitantes e nenhuma espécie de esgoto. Toda essa
população, pobríssima, vive sob a ameaça constante da varíola e, quando ela
dá para aquelas bandas, é um verdadeiro flagelo.
Afastando-nos do eixo da zona suburbana, logo o aspecto das ruas muda. Não há
mais gradis de ferros, nem casas com tendências aristocráticas: há o
barracão, a choça e uma ou outra casa que tal. Tudo isto muito espaçado e
separado; entretanto, encontram-se, por vezes, "correres" de pequenas
casas, de duas janelas e porta ao centro, formando o que chamamos
"avenida".
As ruas distantes da linha da Central vivem cheias de tabuleiros de grama e de
capim, que são aproveitados pelas famílias para coradouro. De manhã até à
noite, ficam povoadas de toda a espécie de pequenos animais domésticos:
galinhas, patos, marrecos, cabritos, carneiros e porcos, sem esquecer os cães,
que, com todos aqueles, fraternizam.
Quando chega a tardinha, de cada portão se ouve o "toque de reunir":
"Mimoso"! É um bode que a dona chama. "Sereia"! É uma
leitoa que uma criança faz entrar em casa; e assim por diante.
Carneiros, cabritos, marrecos, galinhas, perus - tudo entra pela porta
principal, atravessa a casa toda e vai se recolher ao quintalejo aos fundos.
Se acontece faltar um dos seus "bichos", a dona da casa faz um barulho
de todos os diabos, descompõe os filhos e filhas, atribui o furto à vizinha
tal. Esta vem a saber, e eis um bate-boca formado, que às vezes desanda em
pugilato entre os maridos.
A gente pobre é difícil de se suportar mutuamente; por qualquer ninharia,
encontrando ponto de honra, brigando, especialmente as mulheres.
O estado de irritabilidade, provindo das constantes dificuldades por que passam,
a incapacidade de encontrar fora de seu habitual campo de visão motivo para
explicar o seu mal-estar, fazem-nas descarregar as suas queixas, em forma de
desaforos velados, nas vizinhas com que antipatizam por lhes parecer mais
felizes. Todas elas se têm na mais alta conta, provindas da mais alta
prosápia; mas são pobríssimas e necessitadas. Uma diferença acidental de cor
é causa para que possa se julgar superior à vizinha; o fato do marido desta
ganhar mais do que o daquela é outro, Um "belchior" de mesquinharias
açula-lhes a vaidade e alimenta-lhes o despeito.
Em geral, essas brigas duram pouco. Lá vem uma moléstia num dos pequenos
desta, e logo aquela a socorre com os seus vidros de homeopatia.
Por esse intrincado labirinto de ruas e bibocas é que vive uma grande parte da
população da cidade, a cuja existência o governo fecha os olhos, embora lhe
cobre atrozes impostos, empregados em obras inúteis e suntuárias noutros
pontos do Rio de Janeiro.
Nem lhes facilita a morte, isto é, o acesso aos cemitérios locais.
Para o de Inhaúma, procurado por uma vasta zona suburbana, os caminhos são
maus, e pior do que isto: dão voltas inúteis, que poderiam ser evitadas sem
grandes despesas. Os enterros da gente mais pobre são feitos a pé, e é fácil
imaginar como chegam, os que carregam o morto, no campo-santo municipal. Quem
passa por aqueles caminhos, quase sempre topa com um. Os de "anjos"
são carregados por moças e os destas também pelas da sua idade. Não há,
para elas, nenhuma toilette especial. Levam a mesma que para os bailes e
mafuás; e lá vão de rosa, de azul-celeste, de branco, carregando a pobre
amiga, debaixo de um sol inclemente, e respirando uma poeira de sufocar; quando
chove, ou choveu recentemente, carregam o caixão aos saltos, para evitar
atoleiros e poças d'água,
Os de adultos são carregados por adultos. Nestes, porém, há sempre uma
modificação do indumento dos que acompanham. Os cavalheiros procuram roupas
escuras, se não pretas; mas, às vezes, surge o escândalo da sua calça
branca. Vão muito pouco tristes e, em cada venda que passam, "quebram o
corpo", isto é, bebem uma boa dose de parati. Ao chegarem ao cemitério,
aquelas cabeças não regulam bem, mas o defunto é enterrado.
Houve, porém, uma ocasião, que o corpo não chegou a seu destino. Beberam
tanto, que o esqueceram no caminho. Cada qual que saía da venda, olhava o
caixão e dizia: Eles que estão lá dentro, que o carreguem. Chegaram ao
cemitério e deram por falta do defunto. "Mas não era você que o vinha
carregando?" - perguntava um. "Era você" - respondia o outro; e,
assim, cada um empurrava a culpa para o outro. Estavam cansadíssimos e
semi-embriagados. Resolveram alugar uma carroça e ir buscar o camarada
falecido, que já tinha duas velas piedosas a arder-lhe à cabeceira. E o pobre
homem, que devia receber dos amigos aquela tocante homenagem, dos camaradas
levarem-no a pé ao cemitério, só a recebeu a meio, pois, o resto do caminho
para a última morada, ele a fez graças aos esforços de dois burros, que
estavam habituados a puxar carga bem diferente e muito menos respeitável.
Mais ou menos é assim o subúrbio, na sua pobreza e no abandono em que os
poderes públicos o deixam. Pelas primeiras horas da manhã, de todas aquelas
bibocas, alforjas, trilhos, morros, travessas, grotas, ruas, sai gente, que se
encaminha para a estação mais próxima; alguns, morando mais longe, em
Inhaúma, em Caxambi, em Jacarepaguá, perdem amor a alguns níqueis e tomam
bondes que chegam cheios às estações. Esse movimento dura até às dez horas
da manhã e há toda uma população de certo ponto da cidade no número dos que
nele tomam parte. São operários, pequenos empregados, militares de todas as
patentes, inferiores de milícias prestantes, funcionários públicos e gente
que, apesar de honesta, vive de pequenas transações, do dia a dia, em que
ganham penosamente alguns mil-réis. O subúrbio é o refúgio dos infelizes. Os
que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos
os que perderam a sua situação normal vão se aninhar lá; e todos os dias,
bem cedo, lá descem à procura de amigos fiéis que os amparem, que lhes dêem
alguma coisa, para o sustento seu e dos filhos.
Nessas horas, as estações se enchem e os trens descem cheios. Mais cheios,
porém, descem os que vêm do limite do Distrito com o Estado do Rio. Esses são
os expressos. Há gente por toda a parte. O interior dos carros está apinhado e
os vãos entre eles como que trazem quase a metade da lotação de um deles.
Muitos viajam com um pé num carro e o outro no imediato, agarrando-se com as
mãos às grades das plataformas. Outros descem para a cidade sentados na escada
de acesso para o interior do vagão; e alguns, mais ousados, dependurados no
corrimão de ferro, com um único pé no estribo do veículo.
Toda essa gente que vai morar para as bandas de Maxambomba e adjacências, só
é levada a isso pela relativa modicidade do aluguel de casa. Aquela zona não
lhes oferece outra vantagem. Tudo é tão caro como no subúrbio, propriamente.
Não há água, ou, onde há, é ainda nos lugarejos do Distrito Federal que o
governo federal caridosamente supre em algumas bicas públicas; não há
esgotos; não há médicos, não há farmácias. Ainda dentro do Rio de Janeiro,
há algumas estradas construídas pela Prefeitura, que se podem considerar como
tal; mas, logo que se chega ao Estado, tudo falta, nem nada há embrionário.
O viajante que se detém um pouco a olhar aqueles campos de vegetação rala e
amarelada, aqueles morros escalavrados, cobertos de intrincados carrascais, onde
pasta um gado magro e ossudo, fica confrangido e triste. Não há nenhuma
cultura; as árvores de porte são raras; nas casas, é raro uma laranjeira
virente, nem um mamoeiro semi-espontâneo desce-lhes à entrada.
Os córregos são em geral vales de lama pútrida, que, quando chegam as grandes
chuvas, se transformam em torrentes, a carregar os mais nauseabundos detritos. A
tabatinga impermeável, o barro compacto e a falta d'água não permitem a
existência de hortas; e um repolho é lá mais raro que na avenida Central.
O Rio de Janeiro, que tem, na fronte, na parte anterior, um tão lindo diadema
de montanhas e árvores, não consegue fazê-lo coroa a cingi-lo todo em roda. A
parte posterior, como se vê, não chega a ser um neobarbante que prenda
dignamente o diadema que lhe cinge a testa olímpica...
Cassi Jones, em pé, na estação do Méier, via passar aqueles trens cheios de
homens de trabalho, sem considerar que, quase com trinta anos, até ali, na
verdade, não havia nunca trabalhado. O seu pensamento ia para outra parte.
Desde que Arnaldo lhe trouxera notícias do que ouvira na venda, ele se sentia
um pouco desanimado nos seus propósitos, em relação à filha do carteiro. Ao
mesmo tempo, porém, ele percebia que todas aquelas precauções contra ele eram
tomadas porque a rapariga não lhe era indiferente. De modo que - concluía ele
- precisava saber ao certo os sentimentos de Clara, para então agir. Era
necessário ouvir-lhe a palavra; mas como? A ele, não onvinha rondar a casa da
filha do carteiro. Era conhecido, seria denunciado ao pai, que, naturalmente,
lhe tomaria satisfações. Qualquer que fosse o desfecho do pugilato, ele só
teria a perder. A sua fama, a sua má fama, se tinha corporificado naquele
fantástico caderno que ia ter a todas as mãos. Não era mais formada de
boquejos daqui e dali, em geral anônimos; agora, vinha documentada, com todas
as indicações e referências precisas.
Havia nele com o que se pudesse condenar um santo: e, se ele agredisse o
carteiro Joaquim, toda a simpatia iria para o pai, que defendia até à última
extremidade a honra de sua filha, e não para ele, um contumaz e cínico
sedutor. Até ali, ele contava com a benevolência secreta de juízes e
delegados, que, no íntimo, julgavam absurdo o casamento dele com as suas
vítimas, devido à diferença de educação, de nascimento, de cor, de
instrução. Quanto à segunda e terceira causa, embora nem sempre se
verificasse a segunda, podia-se admitir; mas, quanto às duas outras
considerações, eram errôneas, porque ele era tão ignorante e tão
mal-educado como eram, em geral, as humildes raparigas que ele desgraçava
irremediavelmente.
De resto, ele já não contava com proteção alguma.
No começo, foi seu pai; depois, seu tio, o capitão-médico - ambos solicitados
tenazmente por sua mãe; mas agora? Agora, ele estava certo de que nenhum deles
se abalaria e gastaria um ceitil por causa dele. Restava o Capitão Barcelos.
Neste, porém, ele não depositava grande confiança. Fosse coisa pequena em que
nada se gastasse, o capitão mover-se-ia; no caso contrário, porém, fugiria
com o corpo. Era preciso cautela, senão...
Cassi continuou a pesar os meios que podia encontrar para entenderse com Clara.
Com Lafões, ele já não contava. Vira, na última visita que lhe fizera, que o
velho português era matreiro. Com ele, não levaria vantagem alguma. Como havia
de ser?
Dos bondes continuava a descer gente aos magotes, que se encaminhava
apressadamente para a plataforma da estrada de ferro. Alguns iam tomar um café,
antes de se encaminharem, definitivamente, para os "varais" da
repartição; outros iam até às casas de "bicho" e deixavam lá o
jogo; mas todos iam afinal trabalhar, fazer alguma coisa para ganhar dinheiro.
Só o Senhor Cassi Jones de Azevedo ficava...
-Oh! "Seu" Cassi, como vai essa força?
O menestrel suburbano da modinha lânguida e acompanhamento luxurioso de olhares
revirados voltou-se e reconheceu quem falava:
-Como vai você, Praxedes?
-Eu, "Seu" Cassi, vou bem. Mas esse negócio de foro... Ontem,
apresentei uma exceção de incompetência; pensei que fosse julgada logo, mas o
juiz transformou o julgamento em diligência... Borrou-me a pintura... Hoje, vou
ver se uns embargos meus são recebidos. Tenho que ir lá embaixo... Às vezes,
dá-se uma penada e lá vêm vinte, trinta e mesmo cinqüenta...
Vendo que a conversa não interessava Cassi, mudou-a de sentido e perguntou:
-Tem ido à casa do carteiro, lá na rua Teresina?
-Há muito tempo que não; e você?
-Eu só fui lá a convite de um dos músicos. Não tenho relações particulares
com a família. Por falar nisso: sabe quem saiu agora mesmo daqui?
-Não.
-O doutor Meneses, aquele velho barbado, que sabe muito - não conhece?
Correu alguma coisa na cabeça de Cassi, que o fez perguntar com pressa, antes
de responder:
-Para onde ele foi?
-Foi para a casa do carteiro. Está tratando dos dentes da filha e almoça quase
sempre lá. Ele precisava, coitado do doutor Meneses! - um homem ilustrado,
velho, doente - quase não comia; era só beber. Isso lhe fazia mal, estava
requeimando "ele" por dentro... Pode-se beber; mas é preciso comer -
não acha?
Praxedes não deixava, durante toda a conversa, de mover com os braços, sem
medida nem compasso, e esticar a medonha cabeça, que teimava cada vez mais em
se enterrar pelos ombros adentro.
-É um achado para ele - fez Cassi, reprimindo a alegria. - Tenho também um
trabalho para o Meneses... Se você o encontrar, diga-lhe que eu quero falar com
ele.
-Não me esquecerei; mas, caso o senhor tenha pressa, pode procurá-lo à noite,
ali, no botequim do Fagundes, perto do posto de bombeiros. Até logo, que tenho
que chegar cedo à cidade!
Cassi despediu-se também e encaminhou toda a sua esperança de entender-se
diretamente com Clara, por intermédio de Meneses, Ele sabia-o velho,
alquebrado, necessitado, viciado na bebida, sem dinheiro - seria fácil vencer
as suas repugnâncias. Pela primeira vez, pensou o modinheiro, tinha que gastar
algum...
Em parte ele se enganava, porquanto, embora Meneses estivesse nas últimas
extremidades, até agora não fizera ato menos liso na sua vida. Podia-se
classificá-lo de puro, Meneses, José Castanho de Meneses, nascera de pais
portugueses, numa cidade do litoral - sul do Estado do Rio de Janeiro. Naqueles
tempos, essas cidades eram prósperas; mas, atualmente, têm, para demonstrar a
sua irremediável decadência, o fato de não se ter notícia de haver sido
construída em qualquer delas, de quarenta anos a esta parte, uma única casa,
O pai tinha uma loja, um bazar, que ia próspero; mas, com a decadência da
localidade, de que foi um dos fatores a construção da Central, o
estabelecimento comercial foi decaindo. O pai viu-se obrigado a suprimir
despesas, uma das quais era a da educação e instrução dos filhos. O José,
que já tinha dezessete anos, veio para a loja, os outros foram colocados aqui e
ali, nas pescarias de "currais", que o pai tinha, e na salga de peixe,
levada a efeito muito rudimentarmente, também do velho Meneses.
Aos vinte e dois anos, José, que se aborrecia com aquela vida, pôs o pé no
mundo e correu, durante uns trinta, o interior das antigas províncias do Rio,
Minas e São Paulo. Tudo ele foi; tudo sofreu, mas sempre inquebrantavelmente
honesto. Aqui, foi guarda-livros de um armazém; numa fazenda, administrador;
num vilarejo, professor das primeiras letras; em certa idade, encontrou um
boticário simpático, que se fez seu amigo, ensinou-lhe a manipular drogas,
também a obturar e limpar dentes, e a passar pequenas receitas. Foi onde se
demorou mais; mas isto se veio a dar já no fim da sua carreira vagabunda,
quando já não podia mudar de rumo. Na vizinhança da cidade, construía-se um
depósito e modestas oficinas de pequenos reparos, para as máquinas de um ramal
férreo que lá ia ter. José, que seguia as obras e via as máquinas, ficou
assombrado com aquelas maravilhas de caldeiras, fornalhas, bielas, manivelas,
alavancas, que se coordenavam para mover e parar aqueles hediondos monstros de
ferro - as locomotivas. Quis entrar no segredo de tudo aquilo e fazia perguntas
sobre perguntas. No começo, os operários explicavam; mas as perguntas eram
tais e tantas, que eles acabaram por se aborrecer com elas e com o velho
perguntador. Meneses não se aborreceu, pois se sentia com a vocação de
engenharia e de engenheiro. Ali, porém, não tinha onde estudar. Convinha
descer para o Rio de Janeiro, freqüentar aulas teóricas e aperfeiçoar-se em
oficinas adequadas. O dinheiro que tinha era pouco, mas o boticão sempre dava
alguma coisa, e a renda tinha aumentado, graças à afluência de operários
para acabamento da estradinha local. Demais, também receitava. Fazia alguma
coisa: a questão era economizar. Assim fez e, durante um ano, poupou o dinheiro
necessário para ir estabelecer-se no Rio e esperar uma colocação qualquer.
O seu amigo farmacêutico não o quis dissuadir, mas disse-lhe:
-Se você fosse mais moço, aconselharia até, porque se projetam grandes obras,
no Rio; mas, já tendo passado dos cinqüenta, é fazer o que parecer melhor a
você. Em todo o caso, vou pedir ao Coronel Carvalho uma recomendação.
Durante esse longo lapso de tempo que vivera fora da família, recebera vagas
notícias de seus pais e irmãos. Sabia que os pais tinham morrido e quase todos
os irmãos; e que o único que lhe restava era remador da Capitania do Porto e
mantinha a irmã solteira, a única que tivera. Moravam lá para a Saúde.
Meneses embarcou contente; ia afinal realizar a sua vocação. Até agora, não
a tinha encontrado; mas, desde que vira aquelas máquinas e maquinismos, sentira
outra coisa dentro de si. Não deixou, entretanto, de levar a mala dos ferros de
dentista e a carta de recomendação.
No dia seguinte, depois de uma noite insípida no hotel, foi, indagando daqui,
informando-se dali, até à Capitania do Porto.
Perguntou pelo remador seu irmão e, sem dificuldades, lhe informaram que, em
breve, ele viria. Não esperou muito. Um homenzarrão forte, tostado, com um
vestuário de marinheiro, chegou-se ao porteiro e perguntou:
-Quem é que me procura?
O porteiro apontou Meneses, sentado a um banco, e disse:
-É aquele senhor ali.
O irmão não deu muitos passos em sua direção; Meneses ergueu-se logo,
correu-lhe ao encontro, perguntando:
-Você não me conhece mais?
-Não, senhor.
-Sou o seu irmão Juca.
Abraçaram-se muito, e o irmão Leopoldo foi dizer ao porteiro quem era e o que
havia.
-Há trinta anos! - exclamou o porteiro. - Você devia ser muito criança -
hein, Leopoldo?
O marinheiro respondeu:
-Devia ter cinco anos.
-É verdade - informou Meneses.
Leopoldo foi arranjar licença para acompanhar o irmão que não via há trinta
anos; e Meneses ficou a conversar com o porteiro sobre coisas da roça.
-Ah! Então o Senhor é engenheiro?
-Sim, mas mecânico. Trabalho, porém, com o nível e com o trânsito.
-Agora, deve haver muito trabalho para engenheiro; vão-se fazer grandes
obras... Aproveite, doutor!
-Trago aqui uma carta para o Deputado Sepúlveda. Tem influência?
-Muita! É o pensamento da política mineira... Não lhe deixe a aba do fraque,
doutor!
A conversa foi interrompida pela chegada de Leopoldo, que obtivera a licença.
Pelo caminho, porém, contou a Meneses como todos morreram; como ele se
empregara na Capitania e casara a irmã com um colega, o Pedro Rocha, rapaz bom,
bem comportado, do qual tinha um sobrinho, Edmundo, com seis anos, e com o qual
morava, na rua do Livramento.
Chegando à casa do cunhado e do irmão, a sua irmã Etelvina, que ele deixara
com sete ou oito anos, não o reconheceu; e, em breve, tendolhe chegado o
marido, foi uma festa de que só não participou o sobrinho de seis anos, sempre
de nariz sujo e vestes rotas, arredio e agarrado às saias da mãe, mas sem
querer tornar a bênção ao tio.
A irmã logo convidou o irmão mais velho a ficar com eles. Havia um barracão
no quintal, que, bem reparado, podia servir para Leopoldo, e o quarto deste
ficaria para o Juca. Enquanto não estivesse em estado, ele teria a paciência
de dormir com Leopoldo. Meneses aceitou o alvitre, dizendo:
-Se eu tenho que gastar em outra parte...
Logo foi interrompido por todos:
-Oh! Não, não Juca!
-Não é esse motivo! - fez o cunhado.
-Não seja essa a dúvida, mano Juca.
Meneses ficou muito agradecido e acrescentou:
-Mesmo porque quero que um de vocês consiga meios e modos de falar ao doutor
Sarmento Sepúlveda, na Câmara. Tenho uma carta para ele.
O cunhado logo exclamou:
-O quê! É um bicho.
Combinado tudo isto, Meneses instalou-se na casa dos parentes, com a sua mala e
os seus ferros de dentista. Levou a carta do Coronel Carvalho ao deputado, que o
atendeu muito bem, perguntou-lhe pelas pessoas gradas do lugar onde estivera e
deu-lhe outra para o chefe da construção da avenida. No dia seguinte, estava
admitido. Ganhou dinheiro, não o guardou, mas, se assim foi, motivo não houve
em desperdício de sua parte. O irmão em breve adoecia e morria; o cunhado
seguia-se-lhe logo. Custeou o tratamento de ambos; e, quando foi dispensado da
comissão da avenida, pouco após a morte de ambos, pouco ou nada tinha. A irmã
ficara com uma pequena pensão mensal da Caixa dos Remadores, cerca de trinta
milréis, e um filho; e ele, com seus ferros de dentista. É verdade que fizera
uma pequena biblioteca de engenharia mecânica: As Grandes Invenções, de Luís
Figuier; As Maravilhas da Ciência, de Tirrandier; manuais de toda a sorte de
ofícios e recortes de jornais que tratavam de coisas científicas ou parecidas,
colados em cadernos encadernados. Dessa biblioteca, nunca se separou; e,
conquanto já bebesse, com o tempo, os desgostos e a miséria atraíram-no mais
para o álcool, e o furor de beber o tomou inteiramente. A toda hora, naquele
casebre dos subúrbios, onde morava com a irmã e o palerma do sobrinho, ele
esperava, adivinhava, construía uma catástrofe que lhe devia cair sobre os
ombros; e essa visão de uma próxima catástrofe na sua vida entibiava-lhe o
ânimo, descoroçoava-o e pedia-lhe para afastar - a bebida. Na rua, se só, era
a mesma coisa. Só a tinha longe dos olhos, quando de súcia com outros.
Contudo, apesar das duras necessidades que curtia, com a irmã e o filho desta,
jamais ato algum de sua vida incidira na censura de sua consciência. O pouco
dinheiro que os ferros lhe davam ou os amigos, era empregado no sustento deles,
pois a casa era paga com a pensão de Etelvina, a irmã.
Cassi, para vencê-lo, para ladeá-lo, tinha imaginado o plano de, aos poucos,
pô-lo a seu dispor, prendê-lo de pés e mãos, como se diz, sem ele perceber.
Sabendo onde encontrá-lo à noite, nessa mesma do dia em que soube, procurou-o,
Meneses estava triste a um canto, lendo um jornal, com um cálice vazio ao lado.
O homem das modinhas chegou-se e, sem dizer palavra, foi se abancando:
-Boa noite, doutor!
-Boa noite, "Seu" Cassi - fez Meneses, erguendo a cabeça do
periódico.
-Que há de novo, por aí? Trabalha-se muito?
-Alguma coisa. Agora, as coisas me correm melhor. O Joaquim dos Anjos deu-me os
dentes da filha a tratar, e ele, embora pouco, sempre me paga pontualmente. É
um alívio!
-O doutor é um sonhador. Tem sido explorado...
-Nem tanto. Quando fiz aquele trabalho para uma de suas irmãs, fui muito bem
pago. A minha dificuldade é não ser formado; demais, não tenho roupas... Às
vezes, "Seu" Cassi, para arranjar esses sapatos de duraque que uso,
por não poder usar outros, suo sangue e faço das tripas coração...
-Paciência, doutor. Tome alguma coisa - fez Cassi amável.
Meneses aceitou e disse amargamente:
-Estou com setenta anos e não sei o que fiz na vida.
Cassi regozijava-se, intimamente pensando: o homem está cheio de dificuldades.
-Não desanime. O Capitão Sebastião, aquele da Prefeitura, há dias me disse
que ia precisar de um dentista modesto para consertar os dentes de um filho,
que, na "muda", deixou acavalar. É pouca coisa, mas, talvez, daí...
-Aceito tudo...
-Outra coisa, doutor Meneses.
-Que há?
-O senhor se dá muito com o Leonardo Flores, o poeta?
-Muito. Por quê?
-É que eu queria uns versos...
Meneses não escondeu o espanto, que Cassi percebeu, e, sem dissimular, procurou
explicar-se melhor:
-É coisa séria. Não há compromisso nenhum para os senhores... Eu daria
alguma coisa até!...
-É que o senhor não sabe como o Flores é orgulhoso. Dentro daquela sujeira
toda, esfarrapado, alagado de cachaça, ele é um Deus; e não lhe toque em
coisas de poesia, porque senão...
-Sei bem; mas sei também que o senhor tem grande influência sobre ele. Veja se
me arranja? Olhe, doutor, não é para afrontar; tem aqui dez mil-réis para as
primeiras despesas. Cinco são para o senhor e cinco para ele.
-Não é preciso - disse Meneses, já um tanto convertido.
A sua miséria lhe falava. Não havia quebra de honestidade, tanto mais que não
se tratava de injúrias e insultos a ninguém.
-Não, doutor; leve, leve! Tudo deve ser pago. Não é preciso grande coisa;
bastam uns versos amorosos, mas delicados e finos, morais - está ouvindo,
doutor?
Cassi foi-se, depois que Meneses prometeu arranjar a versalhada. Já passavam
das sete horas, e, logo que o violeiro desapareceu, o dentista levantou, foi a
um ângulo do balcão e disse para o caixeiro, dando-lhe a nota de dez mil-réis
que havia recebido das mãos de Cassi:
-Paga aqueles seiscentos réis que estou devendo e me dá mais outra
"lambada".
Tomou-a e voltou a sentar-se na mesa. Comprou num jornaleiro os jornais da noite
e foi se deixando ficar, levantando-se, de quando em quando, para sorver às
escondidas um "calisto". Aí, pelas proximidades das dez horas,
sobraçando um maço de jornais, encaminhou-se para casa, no firme intuito de
dar cumprimento à promessa que fizera a Cassi. A casa era um tanto longe, pelos
bons caminhos; mas, cortando-se caminhos desertos, subindo e descendo morros,
chegava-se a ela com mais presteza.
Não hesitou e tomou os atalhos, que conhecia bem; e, quase por instinto, os
seguia até à sua residência. Ficava esta numa campina nua; e só era cercada
na frente, toscamente, e, do lado direito, graças ao vizinho. Tinha um cajueiro
mofino, que disfarçava a casinha e dava uma escassa sombra à torneira d'água,
onde a irmã lavava roupa, de casa e de fora. De onde em onde, Meneses cismava
em plantar algumas árvores de rápido crescimento, para sombra; mas lá vinham
os cabritos da vizinhança e matavam-lhe os brotos. A muito custo, conseguiu
fazer um caramanchão tosco com que ensombrasse a sala de jantar, onde dormia, e
que se prestasse a cozinha, nos dias normais. A casa só tinha dois aposentos
iguais, que se comunicavam por uma porta. Não fora a rua, não teria frente nem
fundos, tão semelhantes eram essas extremidades dela. A irmã habitava o
aposento da frente, dividido por uma cortina, que corria do portal da porta
interior até ao da que dava para a rua. Era de telha-vã e de chão.
Chegou em casa e comeu o feijão e arroz com pirão de fubá de milho, que a
irmã lhe guardava sempre. Fez isto à luz de um "vagabundo", espécie
de lanterna, de querosene, reduzida aos seus últimos elementos. Bebeu dois ou
três cálices de parati, pois sempre o tinha em casa; e estirou-se num velho
canapé, com um fundo de tábuas de caixões, acolchoado com jornais. A roupa,
ele a tinha tirado com todo o cuidado e com todo o cuidado depositado na guarda
de uma cadeira de pau, a única existente na casa. A mesa de pinho, uma
carcomida velha mesa de cozinha, tomava o resto do aposento; e, nela, roncava o
palerma do sobrinho. Cobriu-se com uma manta, feita de metades de duas outras, e
dormiu serenamente.
Logo pela manhã, no dia seguinte, a irmã despertou-o assustada:
-Juca! Juca!
-Que é mulher? Não se pode dormir mais nesta casa...
Depois, mudando de tom:
-Que há, Etelvina?
-Precisamos de açúcar, café, e já devemos ao padeiro seiscentos réis.
-Você vai até o bolso do colete e tira de lá todas as pratas e níqueis que
encontrares. Deixa só quatrocentos réis. Julgo que deve haver uns três mil e
tantos a quatro mil-réis. Fica com tudo. Dá-me um cálice, ai!
A irmã não parecia mais moça do que ele quinze anos. Era velha,
encarquilhada, magra, quase desdentada, cabelos completamente brancos, toda ela
respirando cansaço e desânimo.
Ela chamou o filho - Edmundo! - que logo apareceu. Mole, bambo, a muito custo
aprendera a ler e a rabiscar, a esforços do tio; mas não ficava em lugar
nenhum. Tal era a sua inércia e moleza, que logo era despedido. O seu ofício
era caçar preás, rãs, para vender aos estrangeiros da "fábrica",
apanhar passarinhos e, de onde em onde, ajudar a fazer pescarias, no porto de
Inhaúma.
A mãe, com o produto de suas pobres lavagens para fora, era afinal quem o
vestia, porque ele bebia tudo o que ganhava, mas raramente tocava na garrafa que
o tio tinha em casa e não trazia bebida para casa, absolutamente.
Tendo Etelvina servido o irmão de parati, este verificou que a garrafa continha
pouco e, à nota das compras a fazer, mandou que juntasse mais meia garrafa de
aguardente. A que restava, passou-a para um vidro de farmácia.
A irmã não se conteve, que não exclamasse:
-Ah! Santo Deus! Esse parati é uma desgraça...
-Não há dúvida, mana; mas, agora, não posso mais parar, senão morro... Olha
o jornal! - gritou ele para Edmundo,
-Sim, titio - respondeu-lhe o sobrinho, do meio da rua.
Como também tivesse pressa em tomar café, Edmundo fez prestamente as compras.
A fogo de gravetos, em breve o café estava pronto. Meneses, a irmã e o
sobrinho tomaram-no em redor da mesa; ela, sentada na cadeira, e eles, no velho
canapé.
Bebericando e lendo o jornal, o velho dentista deixou-se ficar deitado. Era dia
santo, quase feriado, dia de ponto facultativo - que iria fazer? Lembrou-se de
procurar Leonardo Flores. Era a sua obrigação. Almoçaria e iria até à casa
dele. Assim fez. Encaminhou-se imediatamente para a casa de Leonardo Flores, que
não ficava muito longe, pela Estrada Real, em cujas margens residiam ele e sua
irmã Etelvina com o filho.
Em lá chegando, foi recebido pela mulher, Dona Castorina, que o fez entrar.
Estava avelhantada, gasta, já não pela idade, que não podia ser ainda de
cinqüenta anos, mas pelos trabalhos por que tinha passado com o marido, mais do
que com os próprios filhos. Nunca se lhe ouvia um queixume, nunca articulou uma
acusação contra Flores. Sofria todos os desmandos do marido com resignação e
longanimidade. Esse seu gênio, esse seu temperamento de doçura e perdão em
face da exaltação, da exacerbação, até quase delírio, do marido, fizera
que este produzisse o que produziu. Não fora ela, aquela pequena mulata, magra,
de olhos negros e tristes, rindo-se sempre com uma profunda expressão de
melancolia; não fora aquela humilde mulatinha, que estava ali defronte de
Meneses, talvez Flores não fizesse nada. Este sabia disso e a amava, apesar de
tudo o que pudesse depor contra eles, e ela tinha, no fundo d'alma, apesar dos
desregramentos do seu marido, um grande orgulho de sua Glória.
Dona Castorina informou-o que Leonardo havia saído, para visitar um amigo, em
companhia de um filho; e talvez passasse o dia em casa dele. Meneses ainda
conversou um pouco, tomou dois cálices de parati de Mangaratiba, que um filho
seu, auxiliar de trem, trouxera para o pai.
Na hipótese - e muito plausível, consoante o gênio de Leonardo - de que ele
houvesse parado na venda do "Seu" Nascimento, foi até lá. Não o
encontrou e saiu com a consciência dolorida pelo que ouvira da boca de
Marramaque, de Alípio e demais.
Teve remorso e vergonha do que estava fazendo? Para que iria ele, arranjando
aqueles versos, contribuir? Dirigiu-se para o Engenho de Dentro, a ver se
encontrava alguém com quem conversar e disfarçar aquele começo de acusação,
que, à sua fraqueza, se debuxava na sua consciência. Encontrou um grupo de
rapazes da estrada de ferro, que eram sempre generosos com ele. Estavam ruidosos
e contentes. Meneses sentou-se na roda, mas não houve meio de despregar a
língua.
-Que é isto, Meneses? Bebe! - fez um.
Ele bebia, mas o espinho não saía. Conversava afinal um pouco. Num dado
momento, vendo que era demais na conversa com a sua tristeza e o seu
arrependimento reprimido, despediu-se. Um lhe perguntou:
-Vais para casa? Tens dinheiro?
Ele respondeu:
-Vou já para casa; mas dinheiro não tenho.
Os rapazes fizeram-lhe um rateio, que perfez dois mil-réis; e, quando saía, um
outro, levantando os braços, de um dos quais pendia uma antiquada bengala de
cerejeira, gritou para o caixeiro:
-Antunes, dá uma garrafa de "cachaça" - "cachaça", estás
ouvindo? - "cachaça"! - dá uma garrafa de "cachaça" para
o nosso querido Meneses espantar as suas mágoas.
Quando Meneses apareceu em casa, a irmã foi-lhe logo dizendo:
-Juca, foi bom você aparecer. Estou sem dinheiro para carvão, farinha e
querosene. O que você deu não chegou... Fui comprar carne-seca - lá se foi
todo o dinheiro.
O velho Meneses, semi-embriagado, já sem decidir perfeitamente, tirou os cinco
mil-réis que estavam escondidos na algibeira e destinados a Flores, juntou mais
dez tostões e disse para a irmã:
-Tens aí seis mil-réis até segunda-feira, Mana, você até lá não tem
direito de me pedir mais dinheiro. Hoje é sexta-feira, temos sábado e domingo
garantidos.
Bebeu um cálice do parati que trouxera, deitou-se e tentou ler os jornais que
os rapazes lhe deram; mas não pôde. O sono o tomou até à hora do jantar.
Quando abriu os olhos e se lembrou de ter dado os cinco milréis, destinados a
Flores, em troca de versos, aborreceu-se um pouco; mas pensou e fez de si para
si: eu me arranjo. Comeu bem e, enquanto houve luz do sol, leu e releu os
jornais que tinha; quando veio a noite, continuou a lê-los, sempre bebericando
aguardente.
No dia seguinte, logo que amanheceu, ainda não se havia feito o dia totalmente,
foi até à bica, lavou-se quase inteiramente, aproveitando a escuridão,
preparou o café, tomou uma xícara, seguida de alguns cálices de parati, e
pôs-se na rua antes das sete horas. Era ainda cedo para ir à casa de Leonardo
Flores. Foi à estação, comprou um jornal, leu-o e seguiu para a residência
do amigo. Flores já se encontrava de pé e quase todos de casa. Recebeu-o
vestido com uma calça velha e de camisa de meia. Estava escrevendo. Ao se lhe
deparar o amigo, olhou-o muito demoradamente; e, em seguida, fazendo com os
braços um gesto perfeitamente teatral, inclinando para trás a cabeça e
estufando o peito, conforme o consagrado na ribalta para encontros sensacionais,
falou com voz cava e solene:
-Tu, Meneses! És tu, Pítias da minha alma! Notícias há muitos sóis que não
hei recebido de ti. Entra neste solar amigo e repousa a fadiga da jornada
naquela credência de Córdova que o Abd-El-Málek, caído do Atlas, me mandou
de Marrocos e foi o último rei de Granada, Boabdil, que chorou...
-Flores, estás discursivo demais... - disse Meneses, sentado na tal credência
de Córdova, que não era nada mais do que uma vulgar cadeira austríaca de
palhinha.
-Bebe tu agora o licor de boa amizade. É produto genuíno das minhas terras
solarengas e avoengas de Mangaratiba.
Tomaram o "licor de boa amizade"; e, após, o poeta, falando em tom
natural, perguntou ao amigo:
-Como vais, Meneses?
-Assim; e tu?
-Às vezes, bem; às vezes, mal - conforme a lua. Já tomaste café?
Embora dissesse que sim, Flores teimou em servir-lhe outra xícara, que foi
buscar à cozinha. A sala de visitas era a mesma de há vinte anos. Tinha
resistido a todas as mudanças e todas as despesas. Um sofá austríaco, velho,
esburacado; duas cadeiras de braço da mesma marca, um trio de cadeiras de todos
os feitios. Pela parede, além de outros, um magnífico retrato a óleo de
pintor, feito por uma celebridade, quando nos seus começos. Uma velha estante
de ferro com brochuras espandongadas e uma mesa furada com toalha de aniagem,
bordada a lã de várias cores. Tinteiro, canetas e o mais para escrever,
Flores voltou com as xícaras cheias, pão e manteiga. Depositou tudo na mesa e
sentou-se. Meneses notava com admiração que o amigo não dava nenhum sinal de
desequilíbrio, nem de embriaguez, Isso fez-lhe prazer e, pondo-se a tomar
café, perguntou-lhe:
-Flores, tu ainda fazes versos?
-Bárbaro que tu és! Pois então tu podes imaginar que eu, Leonardo Flores,
deixe de fazer versos? Eu vivo de versos e no verso. Minha cabeça é um poema,
interminável, que minh'alma ritma soberbamente. Não sei outra língua, senão
a divina das Musas... Contraria-me falar como estou falando...
Calou-se um pouco e ambos sorveram o café a grandes goles, mastigando grandes
pedaços de pão com manteiga. Flores cessou de mastigar e perguntou:
-Por que tu me perguntaste se eu ainda fazia versos?
Ingenuamente, Meneses respondeu:
-Tinha encomenda deles a fazer-te.
-O quê? - fez indignado Flores, erguendo-se, num só e rápido movimento, da
cadeira, e deixando a xícara sobre a mesa. - Pois tu não sabes quem sou eu,
quem é Leonardo Flores? Pois tu não sabes que a poesia para mim é a minha dor
e é a minha alegria, é a minha própria vida? Pois tu não sabes que tenho
sofrido tudo, dores, humilhações, vexames, para atingir o meu ideal? Pois tu
não sabes que abandonei todas as honrarias da vida, não dei o conforto que
minha mulher merecia, não eduquei convenientemente meus filhos, unicamente para
não desviar dos meus propósitos artísticos? Nasci pobre, nasci mulato, tive
uma instrução rudimentar, sozinho completei-a conforme pude; dia e noite lia e
relia versos e autores; dia e noite procurava na rudeza aparente das coisas
achar a ordem oculta que as ligava, o pensamento que as unia; o perfume à cor,
o som aos anseios de mudez de minha alma; a luz à alegoria dos pássaros pela
manhã; o crepúsculo ao cicio melancólico das cigarras - tudo isto eu fiz com
sacrifícios de coisas mais proveitosas, não pensando em fortuna, em posição,
em respeitabilidade. Humilharam-me, ridicularizaram-me, e eu, que sou homem de
combate, tudo sofri resignadamente. Meu nome afinal soou, correu todo este
Brasil ingrato e mesquinho; e eu fiquei cada vez mais pobre, a viver de uma
aposentadoria miserável, com a cabeça cheia de imagens de ouro e a alma
iluminada pela luz imaterial dos espaços celestes. O fulgor do meu ideal me
cegou; a vida, quando não me fosse traduzida em poesia, aborrecia-me. Pairei
sempre no ideal; e se este me rebaixou aos olhos dos homens, por não
compreender certos atos desarticulados da minha existência; entretanto,
elevou-me aos meus próprios, perante a minha consciência, porque cumpri o meu
dever, executei a minha missão: fui poeta! Para isto, fiz todo o sacrifício. A
Arte só ama a quem a ama inteiramente, só e unicamente; e eu precisava
amá-la, porque ela representava, não só a minha Redenção, mas toda a dos
meus irmãos, na mesma dor. Louco?! Haverá cabeça cujo maquinismo impunemente
possa resistir a tão inesperados embates, a tão fortes conflitos, a colisões
com o meio tão bruscas e imprevistas? Haverá?
Flores havia falado até agora de pé, no meio da sala, sublinhando tudo com
grandes e largos gestos e modulando a voz conforme a paixão lhe tocava.
Fatigou-se, calou-se um pouco, cruzou os braços adiante do corpo, enterrou o
queixo pontiagudo e barbado no peito e, assim, sempre calado, ficou instantes a
sacudir levemente a cabeça, um tanto virada para a esquerda, olhando o amigo
desoladamente. Era ele pardo-claro e cabelos negros e lisos, com abundantes fios
brancos; tinha malares salientes e a boca bem-feita. Altura média. Diante da
explosão do amigo, Meneses não encontrou nada que dizer. Calou-se
prudentemente e evitou o olhar de Flores, onde este lhe censurava e, ao mesmo
tempo, se apiedava pela incompreensão que não podia existir num velho amigo,
tal como Meneses, pela verdadeira natureza e poder do seu estro e pelo seu ardor
artístico.
Leonardo, com menos paixão e entusiasmo, continuou:
-Sim, meu velho Meneses, fui poeta, só poeta! Por isso, nada tenho e nada me
deram. Se tivesse feito alambicados jeitosos, colchas de retalhos de sedas da
China ou do Japão, talvez fosse embaixador ou ministro; mas fiz o que a dor me
imaginou e a mágoa me ditou. A saudade escreveu e eu translado, disse Camões;
e eu transladei, nos meus versos, a dor, a mágoa, o sonho que as muitas
gerações que resumo escreveram com sangue e lágrimas, no sangue que me corre
nas veias. Quem sente isto, meu caro Meneses, pode vender versos? Dize, Meneses!
-Não. Deve sempre assiná-los.
-Pois eu não vendo, passe por que passar. Sofram, sonhem e bebam cachaça, se o
quiserem fazer. Isto não será bastante - disse ele com melancolia - é preciso
ter nascido como eu, ter perdido todos os seus irmãos na pobreza e ter um, há
vinte anos, atacado da mais estúpida forma de loucura, para os poder fazer.
Isto, porém, ninguém pode obter por sua própria vontade. Bendito seja Deus!
Sentou-se com os olhos úmidos, tomou uma "talagada" do
"Mangaratiba" e dispôs-se a escrever, recomendando ao amigo:
-Deita-te no sofá e lê os jornais, enquanto escrevo alguma coisa, até o
"ajantarado".
Meneses assim fez. Veio a dormir e, quando despertou, ficou admirado da
amplitude da sala e ter as pernas livres. Sonhara que estava preso e
acorrentado...
VIII
Um dos traços mais simpáticos do caráter de Joaquim dos Anjos era a
confiança que depositava nos outros, e a boa fé. Ele não tinha, como diz o
povo, malícia no coração. Não era inteligente, mas também não era peco;
não era sagaz, mas também não era tolo; entretanto, não podia desconfiar de
ninguém, porque isso lhe fazia mal à consciência. Não se diga que, às
vezes, não recebesse certos conhecimentos com reservas e cautelas; tal coisa,
porém, era rara, e gracioso era estar já prevenido de antemão com o sujeito.
Em geral, fosse quem fosse, ele acolhia com simpatia, de braços abertos. Na sua
simplicidade, a maldade, a má fé, a perversidade, a duplicidade dos homens lhe
pareciam coisas tão raras, tão difíceis de medrar numa criatura de Deus, que
só topariam com elas os que lhes andassem à procura, para estudos e
coleções.
A sua vida se havia desenvolvido até ali na maior boa fé e, como houvesse sido
feliz, no seu ponto de vista, os seus cinqüenta anos julgavam o mundo como um
reino de paz, de concórdia, de honestidade e lealdade, apesar das notícias de
jornais.
Jamais lera jornais habitualmente. Se tomava um e tentava ler qualquer coisa,
logo lhe vinha o sono. Tudo que não viesse ferir-lhe o ouvido, não suportava e
não lhe ia à inteligência. Não compreendia um desenho, uma caricatura, por
mais grosseira e elementar que fosse. Para que pudesse receber qualquer
sensação duradoura e agradável, era-lhe preciso o "som", o
"ouvido".
Música, desde que fosse aquela a que estava habituado, encantava-lhe; canto,
mesmo acima da trivial modinha, arrebatava-o; versos, quando recitados,
apreciava muito; e um grande discurso, cujos primeiros períodos ele não seria
capaz de lê-los até o fim, entusiasmava-o, fosse qual fosse o assunto, desde
que o dissesse grande orador. Era pobre de visão e o funcionamento do seu
aparelho visual era limitado às necessidades rudimentares da vida.
Conquanto razoavelmente empregado, nunca deixara a música. Não tocava em
bandas nem em orquestra; mas tirava partes, instrumentava, compunha de quando em
quando, ganhando algum dinheiro com isso. Todas as tardes, após o serviço,
reunia-se com outros músicos militantes, bebericavam, conversavam, falavam
sobre a "Arte", as orquestras de cinemas, a música de tal peça ou
daquela outra, relembravam colegas mortos; e, às seis horas, por aí assim,
encaminhava-se para a casa, sempre com um rolo de papel de música.
Trabalhava nas encomendas, após o jantar. Punha-se de calças e camisa de meia,
nos dias quentes, ou com um paletó velho, nos frios, e enfronhava-se nos
compassos, nos sustenidos, nos acordes, até alta noite. Tinha ensinado à filha
os rudimentos da arte musical e a caligrafia respectiva. Não lhe ensinara um
instrumento, porque só queria piano, Flauta não era próprio, para uma moça;
violino era agourento, e o violão era desmoralizado e desmoralizava. Os outros
que o tocassem, sem música ou com ela; sua filha, não. Só piano, mas não
tinha posses para comprar um. Podia alugar, mas tinha que pagar professora para
a filha. Eram duas despesas com que não poderia arcar. O rendimento da música
não era coisa certa; e os seus vencimentos tinham emprego obrigado no
vestuário seu, da mulher e da filha, no armazém, etc., etc.
Por isso, não levou avante os estudos musicais da filha, os quais, por falta de
convivência e tempo, não passaram da pouca coisa que ele podia ensinar. Mesmo
ela não tinha nenhum ardor musical, nem de repetir, de reproduzir, nem de
criar; aprazia-lhe ouvir, e era o bastante para a sua natureza elementar. Nem a
relativa independência que o ensino da música e piano lhe poderia fornecer,
animava-a a aperfeiçoar os seus estudos. O seu ideal na vida não era adquirir
uma personalidade, não era ser ela, mesmo ao lado do pai ou do futuro marido.
Era constituir função do pai, enquanto solteira, e do marido, quando casada.
Não imaginava as catástrofes imprevistas da vida, que nos empurram, às vezes,
para onde nunca sonhamos ter de parar. Não via que, adquirida uma pequena
profissão honesta e digna do seu sexo, auxiliaria seus pais e seu marido,
quando casada fosse. Ela tinha bem perto o exemplo de Dona Margarida Pestana,
que, enviuvando, sem ceitil, adquirira casa, fizera-se respeitada e ia criando e
educando o filho, de progresso em progresso, fazendo tudo prever que chegaria à
formatura ou a coisa parecida.
A muito custo, devido às insistências de Dona Margarida, consentira em
ajudá-la nos bordados, trabalhados para fora, com o que ia ganhando algum
dinheiro. Não que ela fosse vadia, ao contrário; mas tinha um tolo escrúpulo
de ganhar dinheiro por suas próprias mãos. Parecia feio a uma moça ou a uma
mulher.
Clara era uma natureza amorfa, pastosa, que precisava mãos fortes que a
modelassem e fixassem. Seus pais não seriam capazes disso. A mãe não tinha
caráter, no bom sentido, para o fazer; limitava-se a vigiá-la caninamente; e o
pai, devido aos seus afazeres, passava a maioria do tempo longe dela. E ela
vivia toda entregue a um sonho lânguido de modinhas e descantes, entoadas por
sestrosos cantores, como o tal Cassi e outros exploradores da morbidez do
violão. O mundo se lhe representava como povoado de suas dúvidas, de queixumes
de viola, a suspirar amor. Na sua cabeça, não entrava que a nossa vida tem
muito de sério, de responsabilidade, qualquer que seja a nossa condição e o
nosso sexo. Cada um de nós, por mais humilde que seja, tem que meditar, durante
a sua vida, sobre o angustioso mistério da Morte, para poder responder
cabalmente, se o tivermos que o fazer, sobre o emprego que demos a nossa
existência. Não havia, em Clara, a representação, já não exata, mas
aproximada, de sua individualidade social; e, concomitantemente, nenhum desejo
de elevar-se, de reagir contra essa representação. A filha do carteiro, sem
ser leviana, era, entretanto, de um poder reduzido de pensar, que não lhe
permitia meditar um instante sobre o destino, observar os fatos e tirar
ilações e conclusões. A idade, o sexo e a falsa educação que recebera,
tinham muita culpa nisso tudo; mas a sua falta de individualidade não corrigia
a sua obliquada visão da vida. Para ela, a oposição que, em casa, se fazia a
Cassi, era sem base. Ele tinha feito isto e aquilo; mas - interrogava ela - quem
diria que ele fizesse o mesmo em casa de seu pai?
Seu pai - pensava ela - estava bem empregado, relacionado, respeitado; ele,
portanto, não seria tão tolo, que fosse desrespeitar uma família honesta, que
tinha por chefe tal homem. De resto, esses rapazes não são culpados do que
fazem; as moças são muito oferecidas...
Com raciocínios desse jaez e semelhantes, Clara, na ingenuidade de sua idade e
com as pretensões que a sua falta de contato com o mundo e capacidade mental de
observar e comparar justificavam, concluía que Cassi era um rapaz digno e podia
bem amá-la sinceramente.
O padrinho, Marramaque, parecia-lhe seu inimigo. Sempre que podia, contava mais
uma proeza, mais uma falcatrua de Cassi. Não lhe cansava o assunto.
Clara até tinha, às vezes, vontade de dizer a seu padrinho: "Padrinho,
esse Cassi deve ser muito rico, porque compra a polícia, a justiça, para não
ser preso. Olhe: se ele fosse condenado pela metade dos crimes que o senhor lhe
atribui, estaria já na cadeia, por mais de trinta anos."
Ela se enganava, porque não conhecia a vida. Para se escapar aos crimes de
Cassi, basta um pouco de proteção e que o acusado seja bastante cínico e
ousado.
Vivia assim ansiosa e ofegante, querendo e não querendo ver o modinheiro; ora,
convencendo-se de tudo que diziam dele; ora, não acreditando e apresentando ao
seu próprio espírito dúvidas e objeções, quando Meneses veio tratar de seus
dentes, após umas fortes dores que a prostraram de cama.
Um certo dia, o pai lhe havia dado, ao sair, pela manhã, um trabalho de
música, para copiar, de forma que, à tarde, estivesse pronto. Não era longo,
mas exigia atenção. Depois do almoço, aí pelas onze horas, pôsse a copiar,
mas, subitamente, deu-lhe uma dor de dentes que a fez gemer e até chorar.
Engrácia, sua mãe, correu a acudi-la. Como sempre, porém, ficou estonteada,
sem saber o que fazer, que paliativo dar; Clara, mal falando, disse-lhe que
mandasse chamar Dona Margarida.
Em vindo esta, aplicou remédios caseiros, mandou buscar malva, pela criada que
tinha em sua casa; fez Clara bochechar e foi-se para a casa tratar dos seus
bordados e costuras.
Engrácia, porém, não se acomodava, andava de um lado para outro, impaciente
que o marido chegasse. Todas as moléstias existentes, que a natureza cria, e os
médicos, por desfastio, inventam, ela supunha poder ter sua filha.
Não havia nenhuma lucidez nos seus raciocínios, quando um acontecimento de
aparência grave lhe tocava, e pior ficava, quando se tratava da filha.
O seu amor à Clara era um sentimento doentio, absorvente e mudo. Queria a filha
sempre junto a si, mas quase não conversava com ela, não a elucidava sobre as
coisas da vida, sobre os seus deveres de mulher e de moça. A não ser no caso
de Cassi, que o seu instinto de mãe falara mais alto do que a sua inércia
natural, nunca punha em prática uma medida eficaz que traduzisse amparo e
direção de mãe na conduta da filha. Pensava, mas não chegava ao ato.
O dia inteiro, quase, passavam as duas mulheres metidas cada uma consigo mesma.
A mãe lavava a roupa no tanque, ao lado da casa; e a filha se encarregava dos
arranjos domésticos. A cozinha era feita por ambas ou só por Clara, quando
não tinha músicas do pai a copiar ou sua mãe tinha muita roupa na lavagem.
Joaquim, o Quincas, como o chamava a mulher, saía, nas primeiras horas da
manhã, passava pela venda, fazia as encomendas, tomava um "calisto" e
conversava um pouco com o "Seu" Nascimento.
-Não acredito que "ele" venha, nem também que o outro se repimpe no
Catete.
-Seria bom para o senhor... - dizia Nascimento.
-O quê? Nem o conheço... Qual! Nada tenho com um nem com outro...
-Mas é seu patrício...
-Como o senhor é, como o outro é também. Somos todos brasileiros... Eu,
"Seu" Nascimento, só cuido da mulher e da filha e, um pouco, da
música.
-Por falar em música: que tal aquele Cassi?
-Quer que lhe diga uma coisa? Como músico, não vale nada. Dá cada cincada...
-Mas tem fama...
-A fama dele vem do dengoso, do meloso que ele põe no cantar, chegando a ser
até uma indecência. Ele canta que parece estar num caféconcerto, no meio de
mulheres de vida airada...
-Por aí, apreciam-no muito...
-São essas meninas bobas, que não têm quem lhes abra os olhos... Olhe,
"Seu" Nascimento, na minha casa ele não me põe mais os pés.
-Marramaque, seu compadre, já me tinha dito isto e...
-O compadre exagera muito. O compadre tem o seu ponto de honra de poeta... O
senhor sabe; ele já figurou, escreveu em jornais e revistas, teve roda e
convivência de certa ordem, não pode admitir que um quase analfabeto, como
Cassi, tenha fama de artista... A culpa não é deste; é do nosso meio, que
não tem instrução nem preparo.
-"Seu" Joaquim, o senhor já viu o caderno que mandaram a seu compadre
sobre o tal Cassi?
-Já.
-Que pensa daquilo tudo?
-Se é verdade, ele merece a forca.
-Pois dizem que é. O senhor não sabe quem é a tia Vicência, que mora por
aqui, na rua da Redenção?
-Não.
-Conheço-a eu. Ela é pessoa da casa de Cassi e diz que tudo aquilo é verdade.
Conta até mais detalhes.
-E quem é que espalha o tal caderno?
-É um oficial do Exército, homem preparado, parece que engenheiro, cuja mulher
atual é aquela moça que Cassi desonrou, e a mãe matouse por isso, há cinco
anos.
-Quem lhe disse isso?
-Vicência. Ela conhece não só a família do violeiro, como muitas das
vítimas. Diz que o marido dessa moça só não lhe dá cabo do canastro, para
não fazer escândalo; mas, na primeira em que se meter, toma a peito a causa da
vítima, seja quem for.
Joaquim dos Anjos ouviu isso, calou-se um pouco e, sem nada responder,
recomendou:
-Não se esqueça de mandar, principalmente a lenha, que é precisa para o
almoço. Estou na hora... Até logo!
Saiu, pensando nesse tal Cassi, que, por mais que quisesse esquecêlo, sempre
estava presente à sua memória, sempre estavam a relembrá-lo, como se fosse
uma grande coisa, um homem notável e de posição. Que é que queriam dizer com
isso? Preveni-lo? O carteiro sorriu intimamente: "Ele não ousará"! E
pensou na sua garrucha de dois canos, com as quais se viaja em Minas, presente
ainda do inglês, seu primeiro patrão.
Homem forte, leal, direito, Joaquim tanto tinha nos outros como em si uma
confiança ilimitada. Não desconfiava, nem admitia que se desconfiasse; mas
esse tal Cassi...
Estendia essa sua confiança à sua mulher, no que tinha razão; mas não à
filha, como fazia, porque, no tocante a esta, precisava contar com a crise da
idade, a estreiteza de sua educação doméstica e a atmosfera de corrupção
com que o meio a envolvia, admitindo tacitamente que ela estava fadada ao
destino das "outras". Joaquim dos Anjos não tinha capacidade
intelectual para tanto...
Cessou de pensar em Cassi e pôs-se a cogitar no trabalho, nas gratificações e
nos aumentos. Chegou à repartição, assinou o ponto, cumprimentou os colegas e
chefes; e, à hora certa, tomou a correspondência a distribuir e lá correu
para escritórios, casas de comércio, entregando cartas e pacotes.
Vinha tudo isto com nomes arrevesados: franceses, ingleses, alemães, italianos,
etc.; mas, como eram sempre os mesmos, acabara decorando-os e pronunciando-os
mais ou menos corretamente. Gostava de lidar com aqueles homens louros,
rubicundos, robustos, de olhos cor do mar, entre os quais ele não distinguia os
chefes e os subalternos. Quando havia brasileiros, no meio deles, logo
adivinhava que não eram chefes. Almoçava frugalmente e até às cinco
executava o serviço, isto é, as várias distribuições de correspondência.
Terminado o trabalho, procurava os seus colegas de arte e, aí pelas cinco,
cinco e meia, metia-se no trem para a casa.
Naquele dia, conforme o seu costume, preencheu-o todo assim, sem nenhuma
discrepância ou variante, como se obedecesse a um programa. Quando chegou em
casa, já se fazia escuro, e os lampiões da iluminação pública estavam
acesos e prontos a suceder, consoante o seu poder, à soberba luz do sol, que ia
morrendo, num crepúsculo cambiante e lento, por detrás das montanhas, que se
destacavam num fundo de prata, de ouro e de púrpura, na parte do horizonte em
que ele se escondia.
Veio-lhe abrir a porta a mulher, que, antes de mais nada, lhe foi dizendo:
-Ah! Quincas! Você não sabe como me vi atrapalhada, hoje, aqui... Se não
fosse Dona Margarida...
-Mas o que houve, Engrácia?
-Clara ficou doente de repente, pôs-se a gemer, e eu, sem ninguém, não sabia
o que fazer. Felizmente, gritei por Dona Margarida, que acudiu.
-Que é que ela teve, mulher?
-Dentes, Quincas; mas uma dor muito forte.
-Ora, você mesmo! Você é uma pamonha. Então dor de dentes é moléstia que
assuste ninguém?
-É que você não viu.
-Vamos ver o que há?
Dirigiu-se para o quarto da filha, que tinha o queixo amarrado num lenço
dobrado, e perguntou:
-Que houve, Clarinha?
-Nada. Tenho aqui um dente furado, que me dói de quando em quando. Hoje doeu-me
mais fortemente, gemi e tive que me deitar. Felizmente o remédio que Dona
Margarida me deu, fez passar a dor, mas tenho o queixo inchado...
-Não é nada?
-Penso que sim - disse Clara, e acrescentou: - olhe, papai, não pude passar a
limpo a música.
-Não faz mal, eu mesmo passo.
Depois ajuntou, voltando-se para a mulher:
-É preciso levar essa menina ao dentista, Engrácia, enquanto está no começo.
-Dentistas! Deus me livre!
-Por quê, mulher de Deus?
-Porque é casa de perdição, Quincas.
-Qual perdição, qual nada. Perde-se quem quer ou quem já está perdido.
-Você que a leve, Quincas. Não posso sair todo o dia... Você sabe que não
posso andar muito...
-Eu não posso, pois tenho de ir para o serviço.
Pôs-se a pensar, olhando a filha deitada, com os doces olhos a interrogar o
pai, quando lhe surgiu um pensamento:
- Vou chamar o Meneses. Ele não é formado, mas tem prática e pode certamente
fazer o que se trata. Que acha, Engrácia?
- Acho bom, se ele vier em casa.
- Ele virá, pela manhã. Almoçará com vocês e dar-lhe-ei alguma coisa.
- Você quer, Clara? - perguntou o pai.
- Aceito e acho bom. Não é preciso sair e mamãe não se incomoda.
Foi assim que Meneses entrou a tratar dos dentes de Clara, fato de que tão
oportunamente Cassi tivera notícias pelo doutor Praxedes, no Méier. Para o
velho doutor Meneses foi uma salvação, porquanto, embora trabalhasse, não era
pago ou o era mal e irregularmente. Com o carteiro, as coisas se passavam de
outra forma; e, além disso, almoçaria todo o dia - vantagem que não era de
desprezar.
Sabendo que Meneses estava todos os dias com Clara, Cassi, que havia resolvido
pôr cerco à rapariga, tratou de aproveitar o estado de miséria, de abatimento
moral em que estava o velho dentista, para realizar os seus inconfessáveis
fins. Encomendou-lhe aqueles versos que deviam ser feitos por Flores e deu-lhe
dinheiro, já prevendo que Meneses gastá-lo-ia e não obteria os versos. Tudo
isto aconteceu; mas Meneses, quando, no dia seguinte, se lembrou da recusa de
Flores e de ter gasto o dinheiro, não achou outro alvitre senão ele mesmo
fazer os versos. Ficou o dia inteiro a martelar, a riscar, a emendar e, ao fim
do domingo, tinha feito algumas quadras com mais ou menos sentido. Nunca, a bem
dizer, fizera versos: mas, tendo corrido montes e vales, lidara com poetas e
tinha o ouvido educado. De resto, escolhera o metro popular, a quadra de sete
sílabas; e tanto fez que, pela tardinha, a poesia estava pronta, e o pobre
velho ficou muito contente consigo mesmo, como se tivesse feito obra de vulto.
Bebeu bastante e dormiu satisfeito. Havia cumprido a sua palavra de qualquer
forma. Se os versos não eram de Leonardo Flores, eram dele. Não seriam tão
bons; mas, pelo menos, desculpariam o gasto dos cinco mil-réis, que lhe
remordia a consciência.
Na segunda-feira, à noite, depois de ter andado por toda a parte, com a sua
velha mala de ferros de cirurgião-dentista, Meneses foi se postar no botequim
do Fagundes. Sentou-se, como de hábito, na última mesa, aos fundos, encostada
à parede, com um jornal debaixo dos olhos e um cálice de parati na frente. Ele
bebia aos goles, à vista de todos, sem vexame algum. Fazia-lhe mal, como mal
faz a todo mundo; mas era solicitado a beber para se atordoar, para não se
recordar, para não estar só com o seu passado, para afugentar o terror que a
vida lhe inspirava, na miséria, quase indigência em que se achava, naquela
idade avançada de mais de setenta anos, alquebrado, doente, sem uma amizade
forte, sem um parente que o amparasse, sem uma pensão qualquer.
Cassi foi encontrá-lo engolfado na leitura do jornal:
-Pensei - disse ao sentar-se - que o doutor se havia esquecido.
Meneses, descansando o modesto pince-nez em cima da mesa, onde já havia posto o
jornal, respondeu:
-Qual o quê! Sou homem de palavra... Demais, o senhor me havia dado o dinheiro,
e, assim, o trato ficava mais sagrado.
Cassi tinha uma grande dificuldade em ser amável, tornar a entonação de voz
conveniente, adaptar o olhar a ela, ajeitar adrede os músculos da face...
Não era capaz disso quando sincero, que fará quando falso! Todo ele era rude,
metálico, grosseiro e áspero. Enfim, fez o que pôde e disse:
-Por isso, não, doutor! Eu não me lembrava de tal fato! Aquilo foi para uns
beberiques... Arranjou?
-Arranjei; mas não com o Leonardo.
-Ele não quis ou...
-Não; estava bom. Como já lhe disse em certa ocasião, Flores é por demais
orgulhoso, quando se trata de versos dele; e, ao falar-lhe no
"negócio", deitou-me um discurso enorme, dizendo que era isto e
aquilo, tinha feito tais e quais coisas e, por fim, que não vendia versos.
-Nem dados?
-Não lhe propus; mas estou certo que não daria. Pelo que disse, os versos que
lhe saíam da cachola eram dele e só dele.
-E com quem arranjou?
-Fi-los, eu mesmo, Não serão...
-Vamos ver, doutor.
Meneses puxou, de dentro da algibeira do interior do fraque cinzento, um
volumoso embrulho de papéis sebosos, procurou o que continha os versos, pôs o
pince-nez e disse:
-Vou lê-los, para o senhor compreender melhor. A minha letra é muito ruim.
-Leia, doutor.
Meneses concertou os óculos, experimentou uma melhor posição para receber a
luz e começou:
A minha Querida pena
Nas grades de uma prisão,
Mas o Amor lhe ordena
Sossego no coração.
O velho dentista ambulante, afinal, acabou e olhou interrogativamente o
menestrel. Tinha este tomado um ar grotesco de entendido e olhava vago,
simulando que ajustava pensamentos. Após ter Meneses perguntado o que achava
dos versos, o manhoso violeiro disse:
-Não era bem isto que eu queria. Os versos, porém, não estão maus, antes
são bons. Serve até para modinha... O doutor não sabe quem faça música para
modinhas?
-Conheço o Joaquim dos Anjos.
-Ah! É verdade! Como há de ser? - perguntou Cassi, simulando embaraço.
-O senhor não se dá com ele?
-Dou-me; mas não tenho muita intimidade. Se fosse por intermédio da filha? Por
que o doutor não pede?
-Posso pedir a ela; mas o padrinho - não sei por quê - não gosta do senhor.
Se ele sabe...
Meneses arrependeu-se de ter avançado tanto, mas a sua vontade já era tão
fraca que não soube, nem procurou meios e modos de fugir às conseqüências de
sua confidência. Cassi aproveitou-se das aberturas do velho e disse:
-Sei; mas escrevo uma carta à Dona Clara a fim de que ela evite a má vontade
do padrinho e que se saiba ser a modinha...
Meneses não pôde reprimir um movimento de espanto.
-Não tenha susto, doutor; absolutamente não malicie no que vou fazer. A carta
será lida pelo senhor.
Meneses ficou mais seguro de si e continuou a beber com vontade, enquanto Cassi
contava-lhe os seus ganhos extraordinários no cangueiro, jogo suburbano.
-Olhe, doutor - rematou ele - -, quando precisar de algum, é só pedir.
O dentista já estava muito adiantado na embriaguez; e, ao ouvir aquilo, olhou,
desejoso e mendicante, para o violeiro, que se apressou em ir ao seu encontro:
-Quanto precisa, doutor?
-Dois mil-réis, só.
-Não - disse Cassi, tirando um maço de notas da carteira - -, leve cinco; e
não se esqueça de estar aqui, amanhã, às sete horas. Preciso da música para
breve.
Meneses foi para a casa, sem pensar no que havia prometido; e, como guiado por
instinto, subiu e desceu morros, tomou atalhos e acabou se deitando muito
naturalmente no seu miserável canapé. Não quis comer; a embriaguez lhe havia
tomado inteiramente. Despertou, no dia seguinte, sem saber o que tinha feito,
nas últimas horas em que estivera fora. Lembrava-se vagamente que parara no
botequim habitual. Tendo saído para fora de casa, a fim de lavar o rosto e
satisfazer as exigências do organismo, quando voltou, já encontrou sua irmã
de pé a lhe dizer, como quase todas as manhãs:
-Não temos nada em casa, Juca.
Meneses não sabia se tinha ou deixava de ter dinheiro. Por desencargo de
consciência, foi esgravatar as algibeiras. Encontrou um níquel de cruzado e
pensou: "Bem! Para o café e o açúcar, já temos". Continuou a
procurar, achou, dobradinha, no fundo de um bolso, uma nota de cinco milréis.
Espantou-se. Quem lha teria dado? Cogitou, forçou a memória, enquanto a irmã
resmungava:
-Juca, você não ouviu o que eu disse?
-Ouvi; espera, que estou procurando o "cobre".
Tanto forçou a memória, tanto combinou as vagas recordações, que toda a sua
entrevista com Cassi foi recordada. Teve vontade de rasgar a nota, de dizer que
não faria o prometido; mas já estava sem força moral, temia tudo, temia o
menor sopro, o mais inocente farfalhar de uma árvore. Toda a criação estava
contra ele, conjugava-se para perdê-lo - que podia fazer contra tudo e contra
todos? E a miséria? E a fome? Se se revoltasse, que seria dele, sem futuro, sem
emprego, sem amigos, sem parentes, doente? Era bem triste o seu destino... Onde
estava a sua mecânica? Onde estava a sua engenharia? Amontoara livros e notas
pueris, e nada fizera. Levara bem cinqüenta anos, isto é, desde que saíra da
casa dos pais, a viver uma vida vagabunda de ciganos, sem nunca se entregar
seriamente a uma única profissão, experimentando hoje esta, amanhã aquela. De
que lhe valera isto? De nada. Estava ali, no fim da vida, obrigado a prestar-se
a papéis que, aos dezesseis anos, talvez não se sujeitasse, para
disfarçadamente esmolar o que comer com os seus parentes. Teve vontade de
chorar, mas a irmã gritou-lhe do quintal:
-Achaste o dinheiro?
-Achei.
Respondeu assim, numa palavra, e deitou bem meio copo da aguardente, que sorveu
toda quase de um só trago.
Meneses pensou ainda nos seus setenta anos desamparados, estéreis, e teve
infinita dor de si mesmo, da miséria do seu fim. Que resolver sobre o caso de
Cassi e da carta? Sacudiu os ombros e pensou de si para si: Que hei de fazer? As
coisas me levaram a isso e...
Cassi veio ao botequim, munido da carta, que leu, conforme prometera a Meneses.
Desgostoso, com aquele mau travo na consciência, o pobre dentista ambulante
procurava, durante o dia, beber a mais não poder. Tinha chegado cedo em casa de
Joaquim e, tendo-o ainda encontrado, pedira-lhe dinheiro. Almoçou, saiu e foi
bebendo daí em diante em todo o botequim por que passava. Ao chegar à casa do
Fagundes, tinha lá uma carta de um cliente. Abriu-a; mandava-lhe dez mil-réis,
por conta de cinqüenta que lhe devia. Deu cinco mil-réis ao caixeiro, para
guardar, e foi para a cidade. Aí não teve medida. Todos lhe pagavam, de forma
que, ao se encontrar com o Cassi, não dava mostras, mas estava completamente
sem discernimento.
O violeiro leu o que quis, fechou a carta e deu-a ao pobre velho. A sua
resolução já estava tomada. Havia forçosamente de se entregar à sorte, aos
caprichos da corrente da miséria, de dor, de humilhação que o arrastava. Ela
o havia levado até ali; era inútil resistir. Entregou a carta a Clara. No dia
seguinte, recebeu a resposta. Entregou-a a Cassi. Assim, durante um mês e
tanto, ele foi o intermediário da correspondência dos dois. Já não tinha um
movimento de revolta; resignara-se àquele ignóbil papel como a uma fatalidade
que o destino lhe impusesse. Contra a força não há resistência, pensou ele;
o mais sábio era submeter-se. Não esperava mais que Cassi lhe oferecesse
dinheiro, pedia-o. No começo, o violeiro foi satisfazendo inteiramente os
pedidos; depois, fazia-o pela metade; por fim, dizia que não tinha dinheiro e
não lhe dava nada.
Meneses, porém, continuava passivamente a desempenhar o seu indigno papel. Se
não o achava decente, conformava-se diante da sua atroz e irremediável
miséria. Não se julgava mais um homem...
Clara recebia aquelas cartas com uma emoção de quem recebe mensagens divinas.
Entretanto, eram pessimamente escritas, a ponto de não serem, às vezes,
entendidas, tão caprichosa era a ortografia delas. A filha do carteiro não via
nada disso; esquecera-se até das más ausências que faziam do namorado. Para
ela, ele era o modelo do cavalheirismo e da lealdade. Estava sempre a sonhar com
ele, com aquele Cassi da viola, Passava da alegria para o choro. A mãe
notava-lhe essas alternativas de humor e fazialhe perguntas. Ela as respondia,
malcriadamente, desabridamente. Relaxava o serviço ou não o fazia. Quase
sempre, esquecia-se disso ou daquilo. Engrácia comunicou isto tudo ao marido.
Joaquim disse então:
-É verdade, Engrácia. Essa menina tem alguma coisa... Antigamente, as suas
cópias de música eram limpas e certas; agora, não. Vêm cheias de raspagens,
erradas, borradas... Que terá ela? Vou levá-la a um médico - que achas?
-Talvez faça bem.
Daí a dias, Joaquim faltou à repartição e levou a filha ao doutor. Este a
examinou e disse ao pai:
-Sua filha nada tem. São coisas da idade e do sexo... De distrações,
passeios, convivência - é o que ela precisa... Em todo o caso vou receitar...
Joaquim fez a necessária comunicação à mulher, que ficou de se entender com
Dona Margarida, para fazer-se acompanhar da filha, sempre que tivesse de sair,
ir a lojas, etc. Ele mesmo, Joaquim, levou-a no próximo domingo, a passear em
Niterói.
O mar não fez bem à menina. Se a sua alma estava cheia de vago e de
impalpável, com a vista do mar ficou absorta no infinito, no ilimitado do
Universo.
De volta, chorou toda a noite sem saber por quê. Amanheceu de olheiras roxas,
corpo mole, aborrecida de tudo e de todos. A vida lhe sabia a amargo. Ela não
via como se a podia adoçar. Ao mesmo tempo, lembravase de Cassi e enchia-se de
esperanças. Saiu com Dona Margarida. A alemã, muito mais sagaz que seus pais,
adivinhou o seu mal e pô-la em confissão com habilidade. Tanto fez, que Clara
lhe disse francamente a origem dos seus males.
-Mas este sujeito é um tipo indigno.
-Não, para mim. Estou crente que...
-Dizem tão mal dele...
-É porque ele se deixou apanhar, enquanto outros há por aí que... Ele
confessa que está arrependido do que fez, e agora quer se empregar e casar-se
comigo.
Dona Margarida olhou firmemente para a moça, cravou bem os seus olhos
perquiridores nos da rapariga; e fez de si para si:
-Será possível?
Apressou-se a contar a confissão de Clara à mãe. Engrácia odiava Cassi. Se,
algum dia, tinha tido um sentimento forte, era esse de ódio ao violeiro. Não
sabia bem como justificá-lo; mas tinha-lhe uma raiva, uma gana de morte. Quando
Dona Margarida lhe narrou a confidência da filha, ela teve uma crise surda de
rancor. Já não era só contra ele, mas contra a filha, que ela criara com
tantos carinhos, tantos cuidados, para, afinal, vir a se
"embeiçar"" por aquele borra-botas, amaldiçoado por todos, até
pelo próprio pai. Serenou e tomou a resolução de contar o fato, por sua vez,
a Joaquim, antes que aquele perverso de modinheiro não lhes pespegasse alguma
das dele.
Joaquim recebeu a notícia sem demonstrar espanto. Não gostava também de
Cassi. Era, para ele, homem morigerado e trabalhador, um capadócio, um
desclassificado, réu de policia, muitas vezes, de quem tanto mal se dizia; mas,
se ele quisesse casar com a filha, apesar de todos os seus maus precedentes,
não se oporia. Iria falar-lhe? Ou chamá-lo-ia em casa? Não seria melhor
esperar?
Pensou e tomou o alvitre de pedir a opinião do compadre Marramaque. O antigo
contínuo tinha um grande ascendente moral e intelectual sobre o ânimo do
carteiro, que o obedecia cegamente. Tratou, portanto, de pedir-lhe conselho.
Naquele domingo, a partida de solo tinha se adiantado pela noite afora. Deviam
ser onze horas quando resolveram a "dar com o basta". Jogavam na sala
de jantar, onde se encontravam, além dele, Joaquim, Marramaque, Lafões e Dona
Engrácia também. Clara já se recolhera ao quarto. Parecendo-lhe que a filha
dormia, Joaquim resolveu decidir a coisa. Expôs primeiramente o estado nervoso
da filha, os passos que tinha dado para tratá-la e chegou ao ponto agudo da
questão. Por aí, Marramaque ergueu-se furioso:
-Pois, então, você, compadre, quer meter semelhante pústula dentro de sua
casa? Você não sabe quem é este Cassi? Se o pai não quer saber dele, é
porque boa coisa ele não é. Ele não só desonra a família dos outros, como
envergonha a própria. As irmãs, que são moças distintas, já podiam estar
bem casadas; mas ninguém quer ser cunhado de Cassi. Ele se diz sempre
correspondido, que se quer casar, etc., para dar o bote. Quando fica satisfeito,
escorrega pelas malhas da justiça e da polícia, e ri-se das pobrezinhas que
atirou à desgraça. Você não vê que, se ele se quisesse casar, não
escolheria Clara, uma mulatinha pobre, filha de um simples carteiro? Sou teu
amigo, Joaquim...
-É o que eu penso também - fez Dona Engrácia. - Ele pode achar muitas em
melhores condições...
Clara, que ouvia tudo, chorando em silêncio, quis protestar e citar exemplos em
contrário, que conhecia, mas se conteve.
Joaquim, que escutara calado a fala apaixonada do compadre, observou:
-Acho que você tem razão; mas, qual o remédio?
-É continuar... Como é que minha afilhada recebeu recados dele, comadre? -
perguntou Marramaque a Dona Engrácia.
-Ela diz que foi uma amiga que lhe trouxe - respondeu a mulher do carteiro.
-Fresca amiga! - comentou rindo-se Marramaque. - O que há a fazer, Joaquim, é
continuar no que está e fazer que ele saiba que você não vê com bons olhos a
insistência dele junto à filha.
-Se ele teimar? - perguntou Engrácia.
-Publica-se nos jornais aquele folheto que recebi, vai-se à policia,
desmoraliza-se o tipo de uma vez; e ele que faça o que quiser.
Todos calaram-se. Lafões não precisou fazer isto, porque se havia mantido até
então calado. O carteiro voltou-se para ele e perguntou-lhe:
-Que diz a isto, Lafões?
-Isso... isso é matéria delicada. Não sou da família e, por isso, não me
julgo com o direito...
-Eu também não sou - acudiu Marramaque. - Estou só dando com franqueza uma
opinião que me pediram; mas certo de que, Joaquim, se você permitir que esse
tal sujeito entre aqui, eu, apesar do muito que devo a você, não ponho mais os
meus pés na sua casa.
Levantou-se, tomou a bengala e saiu mergulhado na treva da noite, que estava bem
escura, quase sem estrelas, caminhando devagar, no seu passo de capenga, até à
sua modesta casa, onde chegou sem temor e tranqüilo de consciência.
Clara não pôde conciliar o sono. As idéias mais absurdas lhe passavam pela
cabeça. Pensou em fugir, em ir ter com Cassi, em matar-se... Enchia-se de raiva
contra o padrinho. Por fim, resolveu relatar, por carta, tudo o que se passou ao
namorado. Saiu do quarto, logo que percebeu que o pai já tinha ido para a
repartição; tomou naturalmente a bênção à mãe, lavou-se e serviu-se do
café matinal. Como não tivessem vindo as "compras", disse à mãe
que ia copiar música, enquanto as esperava. Era um pretexto. O que ela
escreveu, foi uma longa carta, narrando o que ouvira naquela noite a respeito
dela e dele. Antes de Meneses começar a cuidar dos dentes, ela lhe fizera
entrega da missiva, que o pobre velho, cheio de amargura, logo meteu na
algibeira. Para que viver tanto? - pensou ele, limpando os ferros numa toalha de
alvura imaculada.
Inteirado do que acontecera, vendo os seus planos fracassarem por causa daquele
"João Minhoca" e, ainda mais, com a ameaça de ver toda a sua
escandalosa vida publicada nos jornais - Cassi encheu-se de fúria má e, na
maior fúria, tomou a firme resolução de remover aquele trambolho de
"aleijado", que estava sempre estragando os seus planos, com os quais
até já tinha gasto bastante dinheiro. Não subiam as despesas a mais de
cinqüenta mil-réis...
O seu furor foi grande; tanto que, ao ler, em voz baixa, a carta, ao lado de
Meneses, no botequim, este lhe notou a profunda alteração de fisionomia que,
subitamente, a leitura lhe havia produzido. Os seus olhos chamejavam, os dentes
estavam rilhados e toda a sua natureza baixa, feroz e grosseira se revelava, num
ríctus horrível.
Pagou alguma coisa que beber a Meneses e despediu-se, sem dizer mais nada.
Meneses continuou a sorver os seus consoladores "calistos" e a
perguntar de si para si:
-Que há? Que haverá? Que haveria?
O que havia, era simples: Cassi premeditava simplesmente, friamente, cruelmente,
o assassinato de Marramaque. Quando ele falou a respeito a Arnaldo, limitou-se a
dizer: "Vamos dar-lhe uma surra." "Por quê?" perguntou o
outro, Ele respondeu: "Esse velho está abusando de ser aleijado, para me
insultar. Merece uma surra". Não iam sová-lo, sabiam os dois desalmados;
iam matá-lo...
Era sábado, dia em que Marramaque se demorava mais na venda do "Seu"
Nascimento. Chovia e a noite viera logo fechada e escura. Grossas nuvens negras
pairavam baixo. As luzernas de gás, tangidas pelo vento, mal iluminavam aquelas
torvas ruas dos subúrbios, cheias de árvores aos lados e moitas intrincadas de
arbustos. Marramaque, vindo da repartição, deixara-se ficar até às oito, na
venda. Por essa hora, despediu-se e tomou o caminho de casa. Para se ir ter a
ela, por ali, preconiza-se, entre outras, uma rua já quase completamente
edificada, que terminava numa ladeira deserta. De um lado, o esquerdo, havia um
terreno baldio, cheio de moitas altas; do direito, grandes árvores dos fundos
de uma chácara, cuja frente era na rua paralela. Além de deserto, esse trecho
era por demais sombrio, sobretudo em noites como aquela.
Marramaque, debaixo de chuviscos teimosos, embrulhado numa capa de borracha,
subiu a ladeira, para depois descer o barranco e, finalmente, chegar à casa.
Quando estava no alto da pequena elevação, dois sujeitos tomaram-lhe a frente
e disseram-lhe: "Capenga, você vai apanhar, para não se meter onde não
é chamado". Não teve tempo de dizer coisa alguma. Os dois
descarregaram-lhe os cacetes em cima, pela cabeça, por todo o corpo; e o pobre
Marramaque, logo à primeira paulada, caiu sobre um lado, arfando, mas já sem
fala. Malharam-no ainda com toda a força e raiva, sem dó nem piedade; e
fugiram, quando lhes pareceu momento azado.
No dia seguinte, ao passarem os primeiros transeuntes, ele estava morto. E,
assim, morreu o pobre e corajoso Antônio da Silva Marramaque, que, aos dezoito
anos, no fundo de um "armazém" da roça, sonhara as glórias de
Casimiro de Abreu e acabara contínuo de secretaria, e assassinado, devido à
grandeza do seu caráter e à sua coragem moral. Não fez versos ou os fez maus;
mas, ao seu jeito, foi um herói e um poeta... Que Deus o recompense!
IX
Um crime, revestido das circunstâncias misteriosas e da atrocidade de que se
revestiu o assassinato de Marramaque, faz sempre trabalhar todas as
imaginações de uma cidade. Um homicídio banal em que se conheceu a causa, o
autor, capturado ou não, e outros pormenores, deixa de oferecer interesse, para
ser um acontecimento banal da vida urbana, fatal a ela, como os nascimentos, os
desastres e os enterros; mas o assassinato de um pobre velho, aleijado,
inofensivo, pobre, a pauladas, faz parecer a toda a gente que há, soltos e
esbarrando conosco nas ruas, nas praças, nos bondes, nas lojas, nos trens,
matadores, que só o são por prazer de matar, sem nenhum interesse e sem
nenhuma causa. Então, todos acrescentam, aos inúmeros e insidiosos inimigos
que tem a nossa vida, mais este do assassínio por divertimento, por passatempo,
por esporte.
Um ou muitos, seja em que número forem, é sempre uma ameaça que paira sobre
cada um de nós, zombando da mais ostensiva pobreza e não tendo em
consideração a pacatez mais pusilânime.
Marramaque não era rico nem andava com jóias, sendo certo que não podia
trazer consigo muito dinheiro. O móvel do crime, portanto, não seria o roubo.
Ao contrário, o exame minucioso nos bolsos das vestes, com que fora encontrado
o seu cadáver, não denunciou nenhuma tentativa de saque. O pouco dinheiro que
tinha - três mil e tanto - estava intacto; uma carteira, encontrada numa das
algibeiras interiores do dólmã, continha unicamente papéis. Quando foi
assassinado, vestia a farda de contínuo: dólmã azul-marinho e calças da
mesma cor. Tinha, por baixo do dólmã, um comum colete preto, onde trazia um
relógio de prata, preso numa antiga corrente de ouro, feita de diversos
trancelins de ouro, reunidos por rgolas também desse metal, com um remate, em
forma de estribo, cujo pedal era uma pedra negra. Pois bem: nem mesmo esta
peça, de algum valor, foi-lhe roubada. Posta de lado a hipótese de roubo, qual
poderia ter sido o móvel do crime? Amores, conquistas? O estado de saúde, a
sua semi-invalidez logo afastavam tal hipótese. Política, questões de
família - nada disso explicava o crime. Só na perversidade, na vontade de
matar, por parte de alguém extremamente mau e sedento de sangue, encontrar-seia
a causa. Seria isso? - perguntavam todos.
A noticia do crime logo se espalhou pelo subúrbio inteiro, apesar de ser
domingo o dia em que foi descoberto. A deformidade de Marramaque fazia-o notado
e conhecido, de forma que, por toda a parte, se comentava o assassínio. A
polícia tomou as providências de hábito; mas só iniciou as pesquisas no dia
seguinte. Todos que estiveram na venda foram ouvidos; mas pouco, nada
adiantaram. Nem o podiam fazer. Marramaque, em lá chegando, a chuva tinha
cessado. Era sábado, e todos os habitués do armazém do "Seu"
Nascimento lá estavam, inclusive Meneses, que se mostrava palrador e
prazenteiro. Discutia-se despreocupadamente, e até Meneses causou grande
hilaridade, quando explicou a sua teoria transcendente sobre o "ovo de
Colombo". No correr da discussão, alguém dissera:
-Isto é ovo de Colombo,
Parece que foi Marramaque a dizer, e Alípio aproveitou o ensejo, para
perguntar:
- Que diabo quer dizer esta história de "ovo de Colombo", na qual
todo o mundo fala e não sei o que é?
Entre os circunstantes estava o Senhor Monção, caixeiro-vendedor da grande
casa de cereais Belmiro, Bernardes & Cia., que tinha suas luzes e gostava de
palestrar, para descansar da afanosa lida de estar a "tocar realejo"
aos varejistas, oferecendo-lhes feijão, arroz, milho, e por bom preço.
Era um moço português, simpático, de bom porte e bem-educado. Tinha grande
liberdade na roda e não houve nenhum espanto quando interveio:
- Pois não sabes, Alípio, o que é o "ovo de Colombo"?
- Não, "Seu" Mindela.
- É simples, No meio dos sábios espanhóis, depois da primeira viagem à
América, Colombo, vendo o seu trabalho criticado e tido como fácil pelos
sabichões de Castela, desafiou-os a pôr um ovo em pé.
- Eles puseram? - perguntou Alípio,
Meneses apressou-se:
- Não puseram; mas Colombo pôs.
- Como? - indagou Alípio.
Meneses explicou, tomando a palavra de Mindela, com todo o seu açodamento de
sábio:
- Colombo, dando um movimento de rotação conveniente e um de translação
adequado, dissolveu a gema do centro do ovo, para a base, trazendo, para a parte
inferior do ovo, o centro de gravidade, de forma que o pôde pôr em pé.
Todos se entreolharam e viram o absurdo da explicação de Meneses. Ninguém se
animava a contestar, mas Marramaque, tomando a dianteira de Mindela, que ia
falar, saltou logo, em tom de gracejo:
- Qual, "Seu" Meneses! Esta história de translação, de rotação,
de centro de gravidade, é bobagem; o que...
- Bobagem, Marramaque? Isto é mecânica transcendente, como é a questão do
gato cair sempre sobre as patas, atirado que seja, do alto para baixo, em
qualquer posição.
Marramaque foi-lhe ao encontro, sem pestanejar:
- Nós não temos nada com gato. Ovo se parece tanto com gato como um espeto.
Bolas, "Seu" Meneses!
Todos os circunstantes riram-se a mais não poder; Meneses pôs-se a cofiar a
longa e abundante barba branca, lamentando-se da sua derrota em mecânica e
tudo. De repente, cobrou coragem e desafiou o contínuo:
-Quero ver, Marramaque, como é que você explica ter Colombo posto o ovo em
pé?
-Muito simplesmente, Meneses. Vou contar a história como a li: "Num
banquete, procuravam os nobres de Espanha rebaixar o mérito da descoberta de
Colombo, e dizia um: 'As Índias já lá estavam e, se o senhor não as
descobrisse, qualquer um outro as descobriria'. Colombo, sem responder, pediu um
ovo; trouxeram-lhe e ele desafiou a que alguém o pusesse de pé, 'Impossível!'
- bradaram. Então, o navegador tomou o ovo, bateu com ele, quebrando
ligeiramente a mais rombuda das extremidades, e fêlo ficar de pé. 'Ora, isto
também eu faria!...' - replicaram. 'Sim, depois que me viram fazer. É simples,
mas é preciso pensar no caso, e achar o meio"'. Está ai como foi a coisa.
Não tem nada de gravidade, nem de rotação, nem de translação, nem de
constelação, nem de repulsão - nada tem em "ão", Meneses!
De novo a gargalhada foi geral e prolongada; e Meneses, muito encafifado,
limitou-se a dizer:
-Isto não é científico; é uma explicação jocosa de anedota de almanaque.
Podia demonstrar a minha interpretação com o auxílio do cálculo, mas não é
conveniente aqui... fica para outra ocasião.
Assim, sem outra preocupação, naquela tarde tempestuosa, conversaram na venda,
enquanto Marramaque estivera e mesmo depois da sua saída. É óbvio que nenhuma
das pessoas que lá estavam poderia adivinhar o que lhe ia acontecer pelo
caminho. Chuviscava teimosamente, mas não havia o que se chama de chuva
torrencial, quando o pobre continuo se despediu. É verdade que a noite estava
pavorosa de escuridão, e ameaçadoras nuvens pairavam baixo, ainda mais
carregando de treva a atmosfera e ofuscando os lampiões, cuja luz oscilava sob
o açoite de um vento constante e cortante. Não se via, como é costume
dizer-se, um palmo diante do nariz. À polícia, pareceu que aquele misterioso
assassínio, sem causa presumível, nascera de um segredo que só ele,
Marramaque, podia revelar e, talvez, os seus papéis íntimos o revelassem.
Resolveram, então, as autoridades perquiri-los, à cata de uma pista.
Morava Marramaque com uma tia materna, pouco mais moça que ele, tendo dois
filhos homens, de doze e dez anos. Após ter enviuvado na roça, com alguma
coisa, tomou o alvitre de comprar aquela casa e convidar o sobrinho, para lhe
fazer companhia e encaminhar a educação e a instrução dos filhos, e
ajudá-la também,
A sua casa era inteiramente o contrário da de Meneses. Estava sempre limpa,
móveis em ordem, completamente cercada, o jardinzinho da frente bem tratado.
Helena, a tia de Marramaque, era muito metódica e econômica, de forma que a
vida doméstica do sobrinho era regular e plácida. Ela costurava para os
arsenais do governo e, com o que Marramaque lhe dava dos seus exíguos
vencimentos, a vida deles corria sem contratempos. Não eram difíceis as suas
comunicações com as estações da Central, quando feitas pelo bonde de
Inhaúma, que passava na esquina; e, se o continuo, na noite fatídica do
assassínio, tomava aqueles atalhos e subidas, sempre que passava pela venda do
Nascimento ou ia à casa do Joaquim, procurava aquele caminho mais curto. Helena
vivia para os filhos; raras vezes, a não ser para regularizar as suas costuras,
saia, indo uma ou outra vez à casa do carteiro, onde se aborrecia com o gênio
taciturno de Engrácia. Foi ela quem assistiu desenterrar, do fundo de baús e
gavetas, as recordações do seu pobre sobrinho.
As autoridades policiais pediram delicadamente autorização; e o delegado em
pessoa foi examinar os papéis do infeliz contínuo. Não encontrou coisa de
valia. Havia no seu arquivo cartas de família, bilhetes de amigos, rascunhos de
versos, entre os quais um de Raul Braga, de quem Marramaque fora amigo, e o
célebre caderno sobre Cassi, que o delegado tinha também um exemplar. A não
ser esses papéis sem importância, encontraram um caderno de versos, pronto a
ir para o prelo, de autoria de Marramaque, intitulado - Boninas e Sensitivas -
versos ingênuos de um homem bom e honesto que não é poeta. Deram também com
um retrato de mulher feita, numa pose popular, com o braço esquerdo descansando
sobre uma coluna e tendo um leque enorme, pendente do direito, caindo ao longo
do corpo. Era uma mulher bonita, de trinta anos, sadia e forte. Nas costas havia
esta dedicatória: "Ao meu Antônio, a Eponina. 25-12-92". Mais
abaixo, com letra de Marramaque, existiam estas observações: "Amor tudo
vence; não pode vencer as obrigações de lealdade que devem sempre existir nas
amizades perfeitas. Adeus!"
Quem seria? Os policiais indagaram; mas Dona Helena não lhes pôde explicar.
Naquela data, ela nem casada era ainda; seu sobrinho já tinha vindo para o Rio.
Quem seria?
Enfim, nada encontraram, e o crime foi sendo esquecido. Só duas pessoas podiam
pôr as autoridades na pista verdadeira; eram Clara e Meneses.
Clara, logo que soube do assassínio do padrinho, ficou fora de si. Lembrou-se
das ameaças veladas que Cassi fazia ao padrinho, nas cartas que lhe escrevia;
lembrou-se também da carta em que ela narrava ao namorado a atitude de
Marramaque, quando o pai falou ao compadre na necessidade de ter um franco
entendimento com o violeiro. Por aí e por outras pequenas circunstâncias,
atribuía a Cassi o assassinato do padrinho e como que se julgava também sua
cúmplice. Veio-lhe um medo daquele cantador meloso, dengoso, apesar de seu mau
olhar de folhas-de-flandres; e, num relâmpago, viu bem quanto de fingido e
falso podiam conter as suas cartas ternas e cheias de protestos de boas
intenções e de amor sincero e honesto.
Imediatamente, porém, explicou esse seu ato de desvario criminoso como um
esporádico ato de loucura, provocado pelo amor que tinha a ela. Era um
obstáculo e.. Agradava-lhe a interpretação. Não tardariam, entretanto, a se
explicar de viva voz, porque ela havia consentido afinal em conversar com ele na
grade de casa, depois que seus pais se recolhessem. Então, nessa ocasião, ela
avaliaria o grau de certeza de suas suspeitas. Meneses tinha levado uma carta
dela nesse sentido; mas, tendo ficado atrapalhada por sentir a aproximação da
mãe, não pôde, Clara, fechar a missiva convenientemente. Aberta, a moça,
para não ser pilhada, passou-a precipitadamente ao velho, que assim a guardou
jubilosamente. Quando se lhe ofereceu momento azado, leu-a.
Como toda a mulher sem instrução, Clara pegou na pena e não tinha vontade de
a largar. Contava detalhes, repisava juras e pedia juramentos. Um destes era o
de que ele a respeitaria sempre; e, se não fizesse isso, romperia as relações
com ele. Estava disposta a esperá-lo, às dez horas, na grade, daí a oito
dias, e isso o fazia, porque "Seu" Meneses tinha dado o serviço dos
dentes por terminado.
De fato, Meneses, aborrecido com aquele negócio de cartas e com o desdém com
que Cassi o tratava, ademais da ignóbil farsa que se prestava, resolveu dar por
findo o trabalho. A leitura da carta não lhe causou nenhuma estranheza; ele já
esperava por este fim. Estava forrado de uma indiferença de vencido. Sentiu-se
de mãos e pés atados, para ter qualquer movimento de censura ou de conselho.
É que ainda não lhe tinha chegado aos ouvidos a notícia do bárbaro
assassínio de Marramaque. Quando, porém, veio a saber, teve uma forte vergonha
do seu procedimento, da sua covardia. Compreendeu que aquelas meias-palavras de
Cassi sobre Marramaque, aquele ríctus horrendo que vira certa vez, ao se falar
do contínuo, lhe desfigurar a face, eram os pródromos do assassínio do
bondoso velho que o violeiro premeditava. O infeliz Meneses passou o dia todo e
a noite inteira voltado para dentro de si mesmo. Não sabia mais chorar, mas o
seu remorso era intenso. Ele se julgava também cúmplice daquele desalmado. Por
que calara o que sabia? Por que se acovardara a ponto de servir de medianeiro?
Oh! Ele não era mais homem, não tinha mais dignidade!
Cassi, entretanto, não demonstrou o menor abalo. Leu as notícias dos jornais,
as objurgatórias contra os assassinos de que estavam cheios; ouviu as
maldições de todos, nos cafés, nos bondes, em todas as conversas e por toda a
parte; mas nenhum arrependimento sentia. Só lhe faltava o orgulho íntimo de
ter efetuado tão rara proeza, para ser completa a sua inumanidade e o seu
abjeto sossego íntimo. Não tinha orgulho, mas havia nele como que alívio de
se ver livre daquela espécie de duende, de fantasma, que vivia a persegui-lo.
Com Arnaldo, já não acontecia o mesmo. Passado o fato, com a leitura dos
jornais, com as censuras amargas que via em todas as bocas, até nas daqueles
afeitos ao crime, o sócio de Cassi, se não viu remorsos, começou a ter susto.
Não pôde reprimir o impulso que o levou a ver o cadáver. Estavam os restos de
Marramaque quase tal e qual como foram encontrados. Os médicos ainda não
haviam praticado a autópsia. A cabeça partida, os olhos fora das órbitas,
todo o rosto coberto de uma lama sangrenta, o braço semiparalítico, partido,
as roupas, ensopadas de lama e sangue... Era horrível! No necrotério,
acotovelava-se uma multidão, e todos, em voz baixa, cobriam de baldões, de
injúrias, de pragas, os malvados que tinham levado a efeito tão estranho e
inconcebível crime... Um crioulo, muito negro, forte, com grandes
"peitorais" salientes, dizia bem alto do lado de fora:
-Eu não sou santo... Já fiz das minhas... Conheço a "chac'ra"; mas
Deus me castigue, me ponha um raio em cima, e faça apodrecer em vida, se eu
fosse capaz de fazer tão porco "trabalho"... Os que o fizeram, nem
esfolados vivos pagariam... Para que mataram esse pobre velho?
Arnaldo voltou do depósito fúnebre apreensivo. Não havia nele, a bem dizer,
arrependimento. O que ele sentia era medo de ser descoberto, de pegar cadeia
trinta anos a fio, porque não podia ser mais. Chegou aos subúrbios apavorado;
e, quando topou com Cassi, disse, com olhar desvairado:
-Chi, Cassi! O "homem" estava horrível...
O violeiro virou-se para ele, olhou-o firme com seu olhar fosco e falou-lhe com
energia e fogo nos olhos:
-Cala-te, miserável! Queres pôr tudo a perder...
Conquanto temesse as fúrias do seu companheiro e cúmplice, não lhe passava o
terror de ser descoberto pela polícia. Deu em beber; Cassi vigiava-o com medo
que ele "desse com a língua nos dentes". Não o deixava só, quando
estava em "rodas".
Nos botequins, não entrava um freguês, que Arnaldo não examinasse
meticulosamente, cautelosamente, com o rabo dos olhos. Às vezes, não se
continha e apontava:
-Cassi, aquele é agente do décimo oitavo...
O modinheiro, em voz baixa, mas com autoridade, repreendia-o:
-Estás doido! Queres nos pôr no "x", pelo resto da vida.
No começo, Cassi teve medo que a embriaguez o fizesse denunciá-los; mas, bem
cedo, percebeu que a sua bebedeira tomava uma feição choramingas, efusiva,
dava para abraçar todos e, com voz de mágoa íntima, repetia de onde em onde,
sem nada entender do que se dizia ao redor: "Eu não sou mau..."
"Eu sou um bom rapaz..." "Nunca fiz mal a ninguém", etc.
Então, Zezé Mateus, também já muito bêbedo, derreado completamente na
cadeira, com os olhos divergentes e vidrados, babando-se todo e gaguejando,
retrucava: "Meu querido Arn... ar... ar... Arnaldo, você é uma... pomba
sem... sem fel". Em seguida, depois de limpar a baba com o lenço:
"Quem foi que... que disse que... você é... é mau?" E acrescentava:
"Traga... Traga este su... su... sujeito aqui que... que eu parto a cara
dele".
Arnaldo, por aí, levantava-se comovido e abraçava Zezé Mateus, que se
mantinha na cadeira, e, com dificuldade, erguia os braços, a fim de cingir o
camarada.
Repetiam daí a pouco a cena, com pequenas variantes, debaixo dos motejos
forçados de Cassi, a quem tais espetáculos não deixavam de fazer mal. Os
outros companheiros riam-se a bom rir, sem nada suspeitar.
Entretanto, o violeiro não se fiava muito que Arnaldo sempre procedesse assim.
A embriaguez - ele sabia - é caprichosa, ora dá para isto, ora dá para
aquilo, podia aparecer qualquer coisa a respeito do crime e era preciso que ele,
Cassi, tomasse as suas precauções. A entrevista com Clara estava marcada para
o fim da semana. Tinha de ir; tinha que dar fim "naquilo", que tanto
trabalho lhe dera e estava dando. Antes de tudo, porém, era preciso estar
preparado para o que desse e viesse. Não contava mais com a proteção;
Barcelos não valia nada e só prestava pequenos serviços em vésperas de
eleição. Quando elas estavam distantes, fiava com má cara um cálice de
cachaça... Era preciso ter tudo pronto para fugir do Rio de Janeiro, ao
primeiro sinal de alarme, tanto mais que sabia, por indiscrições de Meneses,
que as ouvira na venda do "Seu" Nascimento, que o marido de Nair -
aquela moça que ele desencaminhara e a mãe, por isso, se suicidara - estava
disposto a persegui-lo, como já o perseguia, com os famosos cadernos, mas mais
eficazmente, desde que se metesse em "alguma". Considerou bem que as
coisas agora seriam mais difíceis; e as pedras que semeara no caminho,
começavam a erguer-se para lapidá-lo.
Tomou a extrema resolução de vender os galos de briga. O dinheiro que
apurasse, depositaria na Caixa Econômica, para tê-lo sempre à mão, quando
fosse necessário fugir. A mãe, vendo carroças chegarem à porta e as gaiolas
e capoeiras saírem, a fim de tomarem lugar nos transportes, foi indagar-lhe o
que havia:
-Nada, mamãe. Vou para fora, trabalhar...
-Para onde, Cassi?
-Vou para Mato Grosso, empregar-me na construção de uma estrada de ferro.
-Como trabalhador de picareta, meu filho?
-Não, mamãe, vou ser chefe de turma e praticar nos instrumentos, até
conseguir ser seccionista.
Dona Salustiana assim mesmo não ficou contente. Ela conhecia a ignorância do
filho, a sua inferioridade mental e a sua incapacidade para aplicar-se a alguma
coisa que demandasse o menor esforço intelectual; viu bem, portanto, que, numa
construção de estrada de ferro, ele só podia ser simples trabalhador braçal,
pegar na foice e roçar, no machado e derrubar, na picareta e cavar, mais nada!
Voltou chorando para onde estavam as filhas:
-Você não sabe, Catarina? Você não sabe, Irene, de uma coisa? Ai! Meu Deus!
-Que é, mamãe? - perguntou Catarina.
-Que há, mamãe? - indagou Irene.
-Minhas filhas, vocês não sabem que desgraça para a família, Cassi...
-Que houve? - assustou-se Catarina.
-Cassi está doido e quer nos envergonhar a todos nós, o meu avô que foi
cônsul da Inglaterra... Ah! Se ele ressuscitasse - que vexame não passaria!
-Que é que Cassi vai fazer? - fez Irene com calma.
-Vai ser trabalhador de enxada, numa estrada de ferro de Mato Grosso.
Irene, que era severa e nunca perdoaria ao irmão as maliciosas perguntas que as
colegas da escola lhe faziam, vexando-a bastante, quando acontecia aparecer o
nome dele nos jornais, nas suas habituais cavalarias - observou:
-Que tem isso, mamãe! Ele tem saúde, ao invés de andar por ai a fazer das
suas, a nos envergonhar por toda a parte, é melhor que ele trabalhe para ver se
toma caminho.
Dona Salustiana olhou espantada para a filha e disse cheia de mágoa:
-É que você não é mãe; mas, em breve, você será, então...
Catarina obtemperou:
-Mamãe, eu não acho motivo para lástima. O que é de todo reprovável, é que
ele leve toda a vida a que está levando... O melhor é aventurar...
O pai veio a saber da resolução do filho, sobre quem não punha os olhos,
havia dois anos. Não conteve a sua alegria e exclamou:
-Que se vá! Que vá para o diabo! Já é tempo!
Depois acrescentou:
-Vocês vão ver que ele fez uma das suas; vai fugir e deixar-nos vexados,
senão atrapalhados. Seja tudo pelo amor de Deus! Que se vá e nos deixe em paz.
Vendidos os galos, galinhas, frangos e pintos, apurou quinhentos mil-réis, que
se dispôs a depositar na Caixa Econômica, logo no dia seguinte ao do
recebimento.
Nesse dia, despertou cedo, banhou-se cuidadosamente, escolheu bem a roupa
branca, viu bem se a meia não estava furada, escovou o terno cintado e
cuidadosamente, meteu mão à obra de vestir-se com apuro, para vir à
"cidade". Raramente, vinha ao centro. Quando muito, descia até o
campo de Sant'Ana e daí não passava. Não gostava mesmo do centro. Implicava
com aqueles elegantes que se postavam nas esquinas e nas calçadas. Achava-os
ridículos, exibindo luxo de bengalas, anéis e pulseiras de relógio. É
verdade, pensava consigo, que ele usava tudo aquilo; mas era com modéstia, não
se exibia. Recordava que não tinha poses, mas, mesmo que as tivesse, não se
daria a tal ridículo... Essa sua filosofia sobre a elegância, de elegante
suburbano, ele aplicava às moças. Quanto dengue! Para que aqueles passos
estudados? Aqueles modos de dizer adeus?
Achava tudo ridículo, exagerado, copiado, mas não sabia bem de que modelo. O
que, de fato, sentia não era isso que expunha aos amigos ou às belezas
suburbanas que, porventura, reqüestasse. O que ele sentia diante daquilo tudo,
daquelas maneiras, daqueles ademanes, daquelas conversas que não entendia, era
a sua ignorância, a sua grosseria nativa, a sua falta de educação e de gosto.
O seu ódio, então, ia forte para os poetas e jornalistas, sobretudo, para
estes. Não perdoava as descalçadeiras, os deboches que lhe passavam, quando
tinham de denunciar alguma das suas ignóbeis proezas. Uns sujos! - dizia - ;
uns malandros! - continuava - que querem ditar moral. O seu primeiro ímpeto,
quando lia notícias a seu respeito, era atirar-se contra um deles, naturalmente
o que lhe parecesse mais fraco; e desancá-lo de pancadas. Sustinha, porém, o
ímpeto, porque sabia, se tal fizesse, estaria perdido. A guerra seria sem
tréguas, e "novos e velhos" da sua interminável conta sairiam à
luz. Secretamente, tinha um respeito pela cidade, respeito de suburbano genuíno
que ele era, mal-educado, bronco e analfabeto.
Mal tomou o café matinal, concertou ainda a gravata e pôs-se na rua. Era cedo,
mas temia pelo dinheiro que tinha na algibeira. Não queria que ninguém
soubesse da existência de avultada quantia em seu poder e, muito menos, que
premeditava fugir. Embarcou no primeiro trem; e, esgueirando-se pela Central,
conseguiu não encontrar conhecido que lhe fizesse perguntas indiscretas.
Cassi Jones, sem mais percalços, se viu lançado em pleno Campo de Sant'Ana, no
meio da multidão que jorrava das portas da Central, cheia da honesta pressa de
quem vai trabalhar. A sua sensação era que estava numa cidade estranha. No
subúrbio, tinha os seus ódios e os seus amores; no subúrbio tinha os seus
companheiros, e a sua fama de violeiro percorria todo ele, e, em qualquer parte,
era apontado; no subúrbio, enfim, ele tinha personalidade, era bem Cassi Jones
de Azevedo; mas, ali, sobretudo do Campo de Sant'Ana para baixo, o que era ele?
Não era nada. Onde acabavam os trilhos da Central, acabava a sua fama e o seu
valimento; a sua fanfarronice evaporava-se, e representava-se a si mesmo como
esmagado por aqueles "caras" todos, que nem olhavam. Fosse no
Riachuelo, fosse na Piedade, fosse em Rio das Pedras, sempre encontrava um
conhecido, pelo menos, simplesmente de vista; mas, no meio da cidade, se topava
com uma cara já vista, num grupo da rua do Ouvidor ou da venida, era de um
suburbano que não lhe merecia nenhuma importância. Como é que ali, naquelas
ruas elegantes, tal tipo, tão mal vestido, era festejado, enquanto ele, Cassi,
passava despercebido? Atinava com a resposta, mas não queria responder a si
mesmo. Mal a formulava, apressava-se em pensar noutra coisa.
Na "cidade", como se diz, ele percebia toda a sua inferioridade de
inteligência, de educação; a sua rusticidade, diante daqueles rapazes a
conversar sobre coisas de que ele não entendia e a trocar pilhérias; em face
da sofreguidão com que liam os placards dos jornais, tratando de assuntos cuja
importância ele não avaliava, Cassi vexava-se de não suportar a leitura;
comparando o desembaraço com que os fregueses pediam bebidas variadas e
esquisitas, lembrava-se que nem mesmo o nome delas sabia pronunciar; olhando
aquelas senhoras e moças que lhe pareciam rainhas e princesas, tal e qual o
bárbaro que viu, no Senado de Roma, só reis, sentia-se humilde; enfim, todo
aquele conjunto de coisas finas, atitudes apuradas, de hábitos de polidez e
urbanidade, de franqueza no gastar, reduziam-lhe a personalidade de medíocre
suburbano, de vagabundo doméstico, a quase coisa alguma.
Saltando na Central, não procurou bonde. Engolfou-se num filete de multidão
que se alastrava em direitura à Prefeitura e marchou a pé até o
"centro". Desde o largo do Rossio, foi parando diante das montras.
Demorava-se a ver jóias através de fortes vidros que as protegiam contra a
cobiça alheia. Mirava anéis e relógios, braceletes e brincos, mais àqueles
do que a estes, porquanto não lhe brotava no coração nenhuma necessidade de
dar presentes às amadas. Tão caros, não valia a pena!... Uma bengala de
junco, esquinada, com castão de ouro, tentou-o. Os quinhentos mil-réis que
tinha na algibeira murmuraram-lhe alguma coisa ao ouvido. Prontamente repudia a
tentação; precisava estar seguro...
Entrou pela rua Sete de Setembro e, daí em diante, foi admirando as roupas
feitas - por toda a longa fachada do Parc Royal, foi parando diante das
vitrines, onde havia roupas e outras peças de vestuário, para homens. Viu
fraques, viu suspensórios, viu ligas, viu colarinhos, viu camisas... Que coisas
lindas!
Tomou a rua do Ouvidor e foi descendo, sempre parando em frente das casas que
tinham artigos para homens. Por desfastio, desviou-se a olhar as vitrines de uma
livraria. Olhou-lhe também o interior. Livros de alto a baixo. Para que tantos
livros? Aquilo tudo só seria para fazer doidos. Ele tinha livros, na verdade;
mas eram alguns, livros de amor... Que livros, meu Deus! Teve vontade de tomar
café; hesitou um pouco! Mas, afinal, nimou-se. Estava quase na hora. A Caixa
Econômica não tardaria em abrir-se. Lá chegando, teve que aguardar a abertura
da porta. Já havia gente à espera. Olhou-a de relance. Fisionomias diferentes
de trato e de cor: velhas de mantilha, moças de peito deprimido, barbudos
portugueses de duros trabalhos, rostos de caixeiros, de condutores de bonde, de
garçons de hotel e de botequim, mãos queimadas de cozinheiras de todas as
cores, dedos engelhados de humildes lavadeiras - todo um mundo de gente pobre ia
ali depositar as economias que tanto lhes devia ter custado a realizar, ou
retirá-las, para acorrer a qualquer drama das suas necessitadas vidas.
Aborreceu-se com aquele contato...
Penetrando no saguão, pôs-se a ler os cartazes onde estavam as disposições
legais que interessavam ao público. Diabo! A providência não lhe servia...
Para confirmar, dirigiu-se a um empregado num guichet, que tinha ao alto este
letreiro: "Informações". Não lhe servia absolutamente. Para retirar
mais de duzentos mil-réis, tinha que avisar previamente. Não; não
depositaria. O dinheiro devia estar sempre ao alcance da mão... Saiu e, a fim
de não ser visto por algum conhecido, procurou alcançar o largo de São
Francisco, atravessando aqueles velhos becos imundos que se originam da rua da
Misericórdia e vão morrer na rua Dom Manuel e largo do Moura. Penetrou naquela
vetusta parte da cidade, hoje povoada de lôbregas hospedarias, mas que já
passou por sua época de relativo realce e brilho. Os botequins e tascas estavam
povoados do que há de mais sórdido na nossa população. Aqueles becos
escuros, guarnecidos, de um e outro lado, por altos sobrados, de cujas janelas
pendiam peças de roupa a enxugar, mal varridos, pouco transitados, formavam uma
estranha cidade a parte, onde se iam refugiar homens e mulheres que haviam
caído na mais baixa degradação e jaziam no último degrau da sociedade.
Escondiam, na sombra daquelas betesgas coloniais, nas alcovas sem luz daqueles
sobrados, nos fundos caliginosos das sórdidas tavernas daquele tristonho
quarteirão, a sua miséria, o seu opróbrio, a sua infinita infelicidade de
deserdados de tudo deste mundo. Entre os homens, porém, ainda havia alguns com
ocupação definida; marítimos, carregadores, soldados; mas as mulheres que ali
se viam, haviam caído irremissivelmente na última degradação. Sujas, cabelos
por pentear, descalças, umas, de chinelos e tamancos, outras. Todas metiam mais
pena que desejo. Como em toda e qualquer seção da nossa sociedade, aquele
agrupamento de miseráveis era bem um índice dela. Havia negras, brancas,
mulatas, caboclas, todas niveladas pelo mesmo relaxamento e pelo seu triste
fado.
Cassi Jones ia atravessando aquele bairro singular e escuro, quando, do fundo de
uma tasca, lhe gritaram:
-Olá! Olá! "Seu" Cassi! Ó "Seu" Cassi!
Insensivelmente, ele parou, para verificar quem o chamava. De dentro da taverna,
com passo apressado, veio ao seu encontro uma negra suja, carapinha desgrenhada,
com um caco de pente atravessado no alto da cabeça, calçando umas remendadas
chinelas de tapete. Estava meio embriagada. Cassi espantou-se com aquele
conhecimento; fazendo um ar de contrariedade, perguntou amuado:
-Que é que você quer?
A negra, bamboleando, pôs as mãos nas cadeiras e fez com olhar de desafio:
-Então, você não me conhece mais, "seu canaia"? Então você não
"si" lembra da Inês, aquela crioulinha que sua mãe criou e você...
Lembrou-se, então, Cassi, de quem se tratava. Era a sua primeira vítima, que
sua mãe, sem nenhuma consideração, tinha expulsado de casa em adiantado
estado de gravidez. Reconhecendo-a e se lembrando disso, Cassi quis fugir. A
rapariga pegou-o pelo braço:
-Não fuja, não, "seu" patife! Você tem que "ouvi" uma
"pouca" mas de "sustança".
A esse tempo, já os freqüentadores habituais do lugar tinham acorrido das
tascas e hospedarias e formavam roda, em torno dos dois. Havia homens e
mulheres, que perguntavam:
-O que há, Inês?
-O que te fez esse moço?
Cassi estava atarantado no meio daquelas caras antipáticas de sujeitos afeitos
a brigas e assassinatos. Quis falar:
-Eu não conheço essa mulher. Juro...
-"Muié", não! - fez a tal Inês, gingando. - Quando você
"mi" fazia "festa", "mi" beijava e "mi"
abraçava, eu não era "muié", era outra coisa, seu "cosa"
ruim!
Um negro esguio, de olhar afoito, com um ar decidido de capoeira, interveio:
-Mas, Inês, quem é afinal esse moço?
-É o "home qui mi" fez mal; que "mi" desonrou, "mi
pois" nesta "disgraça".
-Eu! - exclamou Cassi.
-Sim! Você "memo", "seu" caradura! "Mi alembro"
bem... Foi até no quarto de sua mãe... Estava arrumando a casa.
Uma outra mulher, mas esta branca, com uns lindos cabelos castan'os, em que se
viam lêndeas, comentou:
-É sempre assim. Esses "nhonhôs gostosos" desgraçam a gente, deixam
a gente com o filho e vão-se. A mulher que se fomente... Malvados!
Cassi ouvia tudo isso sem saber que alvitre tornar. Estava amarelo e olhava, por
baixo das pálpebras, todas as faces daquele ajuntamento. Esperava a policia, um
socorro qualquer. A preta continuava:
-Você sabe onde "tá" teu "fio"? "Tá" na
detenção, fique você sabendo, "Si" meteu com ladrão, é
"pivete" e foi "pra chac'ra". Eis aí que você fez,
"seu marvado", "home mardiçoado". Pior do que você só
aquela galinha-d'angola de "tua" mãe, "seu" sem-vergonha!
Cassi fez um movimento de repulsa e que a rapariga não perdeu.
-"Oie" - disse ela, para os circunstantes - ; ele diz que não é o
tal. Agora "memo se acusou-se", quando chamei a ratazana da mãe dele
de galinha-d'angola... É uma "marvada", essa mãe dele - uma
"véia" cheia de "imposão" de inglês. Inglês, que
inglês....
Soltou uma inconveniência, acompanhada de um gesto despudorado, provocando uma
gargalhada gerai. Cassi continuava mudo, transido de medo; e a pobre
desclassificada emendava:
-"Tu" é "mao" mas tua mãe é pior. Quando ela descobriu
"qui" eu "tava" com "fio" na barriga, "mi
pois" pela porta afora, sem pena, sem dó "di" eu não "tê
pronde í". E o "fio" era neto dela e ela "mi" tinha
criado... Vim da roça... Ah! Meu Deus! Se não fosse uma amiga, tinha posto o
"fio" fora, na rua, que era serviço... Deus perdoe a "tua"
mãe o que "mi" fez "í" a meu "fio",
"fio" deste "qui taí", também, Deus lhe perdoe!
E a pobre negra abaixou-se para apanhar a barra da saia enlameada, a fim de
enxugar as lágrimas com que chorava o seu triste destino, talvez mais que o
dela, o do seu miserável filho, que, antes dos dez anos, já travara
conhecimento com a Casa de Detenção...
Graças à intervenção do dono da tasca, que tinha com o guarda de ronda o
compromisso de manter a ordem no "reduto", o ajuntamento se desfez, e
Cassi pôde continuar seu caminho, Por despedida, porém, ainda levou uma
surriada das mulheres, que o descompunham em baixo calão, enquanto Inês
imprecava:
-"Marvado"! Desgraçado! Caradura! Hás de "mi pagá",
"seu canaia"!
Logo que se viu livre do perigo, Cassi respirou, compôs a fisionomia, apalpou o
dinheiro na algibeira e fez de si para si:
-Acontece cada uma! Para que havia de dar esta negra... Felizmente, foi em lugar
que ninguém me conhece; se fosse em outro qualquer - que escândalo! Os jornais
noticiariam e... Não passo mais por ali e ela que fosse para o diabo! ... Fico
com o dinheiro em casa.
Nenhum pensamento lhe atravessou a cabeça, considerando que um seu filho, o
primeiro, já conhecia a detenção...
X
Clara dos Anjos, meio debruçada na janela do seu quarto, olhava as árvores
imotas, mergulhadas na sombra da noite, e contemplava o céu profundamente
estrelado. Esperava.
Fazia uma linda noite sem luar; era silenciosa e augusta. As árvores erguiam-se
hirtas e se recortavam na sombra, como desenhadas. Nem uma aragem corria; mas
estava fresco. Não se ouvia a mínima bulha natural. Nem o estridular de um
grilo; nem o piar de uma coruja. A noite quieta e misteriosa parecia aguardar
quem a interrogasse e fosse buscar no seu sossego paz para o coração.
Clara contemplava o céu negro, picado de estrelas, que palpitavam. A treva não
era total, por causa da poeira luminosa que peneirava das alturas. Ela, daquela
janela, que dava para os fundos de sua casa, abrangia uma grande parte da
abóbada celeste. Não conhecia o nome daquelas jóias do céu, das quais só
distinguia o Cruzeiro do Sul. Correu com o pensamento errante toda a extensão
da parte do céu que avistava. Voltou ao Cruzeiro, em cujas proximidades, pela
primeira vez, reparou que havia uma mancha negra, de um negro profundo e
homogêneo de carvão vegetal. Perguntou de si para si:
-Então, no céu, também se encontram manchas?
Essa descoberta, ela a combinou com o transe por que passara. Não lhe tardaram
a vir lágrimas; e, suspirando, pensou de si para si:
-Que será de mim, meu Deus?
Se "ele" a abandonasse, ela estava completamente desmoralizada, sem
esperança de remissão, de salvação, de resgate... Moça, na flor da idade,
cheia de vida, seria como aquele céu belo, sedutoramente iluminado pelas
estrelas, que também tinha ao lado de tanta beleza, de tanta luz, de não sabia
que sublime poesia, aquela mancha negra como carvão. Cassi a teria de fato
abandonado? Ela não podia crer, embora há quase dez dias não a viesse ver. Se
ele a abandonasse - o que seria dela? Veio-lhe então perguntar a si mesma como
se entregou. Como foi que ela se deixou perder definitivamente?
Clara não podia bem apanhar todas as fases dessa queda; ela se lembrava de
poucas e sem nitidez apreciável. Tudo foi num galope para a desgraça... Em
começo, a primeira impressão simpática, os gemidos do violão, os seus
repinicados, seguidos dos requebros dos olhares do tocador, que os exagerava e
punha neles não sei que chama estranha, doce e, ao mesmo tempo, quente.
Impressionara-se muito com isso, tão preparada já estava para os efeitos do
instrumento. Depois, aquela oposição de todos, aquele falar continuo nele,
para dizer mal, tanto da parte do padrinho, como da parte da mãe e de Dona
Margarida. Essa insistência em denegri-lo fizeram que ela representasse, dentro
de si mesma, Cassi, como um homem excepcional, que causava inveja a todos, pelas
suas qualidades de bravura, pela sua habilidade no canto e na viola. Não
acreditava no que diziam dele... Pareceu-lhe, na primeira vez que o viu, tão
modesto, tão reservado de modas, tão delicado, que não podia ser o que
diziam. Quando conversou com ele, meses depois, pela primeira vez, no gradil de
sua casa, mais esse retrato se firmou; as suas conversas eram tão inocentes e
honestas, falando sempre em empregar-se e casar-se com ela; removendo as
objeções e dúvidas que ela punha quanto à viabilidade do casamento deles,
com segurança e franqueza; contrapondo, para mostrar a sua possibilidade, à
cor dela, além da grande paixão que nutria, a sua pobreza, a oposição dos
pais, a sua falta de posição, de saber - o que não permitia a ele aspirar a
grandes casamentos vistosos, com mulher mais bem-educada do que ele, mais
instruída...
O seu ideal era Clara, pobre, meiga, simples, modesta, boa dona-decasa,
econômica que seria, para o pouco que ele poderia vir a ganhar...
De dia para dia, ele ganhava mais fortemente a confiança da rapariga. Ela se
convencia e sonhava a toda hora com aquela "casa branca da serra",
onde iria aninhar o seu amor por Cassi. Indagava, em todas as entrevistas, dos
passos que ele dava para obter emprego, colocação; e ele, com blandícia, com
afagos, dizia-lhe com açúcar nas palavras:
-Sossega, filhinha querida! Roma não se fez num dia... É preciso esperar...
Falei ao doutor Brotero, que me deu uma recomendação para o Senador
Carvalhais. Procurei este e ele me disse que, para o cais do Porto, não podia
arranjar... Tinha pedido muito e muito; estava "queimado", como se
diz.
Ouvindo tudo isto, Clara sentia-se desfazer, ao calor, à meiguice, ao entono
amoroso daquela voz. Era mesmo um bom, um sincero, um namorado, mais que isto,
um noivo - esse Cassi.
-Por que você não me "pede" a papai? - perguntou-lhe um dia.
Cassi, sem hesitação, com o mais convincente tom de franqueza, respondeu:
-Não posso ainda, meu bem. Seus pais... É verdade que seu padrinho não existe
mais...
A estas palavras, Clara estremeceu e olhou-o medrosa; ele, porém, não percebeu
o movimento da rapariga, como ainda não tinha notado as suspeitas que ela
tinha, de quando em quando, da intervenção dele no assassinato do padrinho. No
começo, Clara quase ficara certa de que ele estava metido no crime; mas,
quando, daí a dias, conversou com ele, fosse a emoção da primeira entrevista,
fosse a ternura com que a cobria e se expandia por ele todo, ela afastou a
convicção e perdeu o terror que ele começara a lhe inspirar. A sua débil
inteligência, a sua falta de experiência e conhecimento da vida, aliado tudo
isto à forte inclinação que tinha e não sopitava pelo violeiro, agiram sobre
a sua consciência, de forma a inocentar, a seus olhos, o tocador de violão, no
caso da morte misteriosa do padrinho. Entretanto, de quando em quando, lá lhe
vinha uma suspeita, mas ele era tão bom...
Cassi, sem hesitação, respondeu-lhe à pergunta, no mais persuasivo tom de
franqueza:
-Não posso ainda, meu bem. Seus pais... É verdade que seu padrinho não existe
mais; mas Dona Engrácia não me suporta. Além disso, essa Dona Margarida
também não me traga... Que estranho o que se passou com ela e Timbó...
-Você por que anda com ele, Cassi?
-Que hei de fazer? Ele não me faz e não me fez mal; procura-me e não posso
correr com ele. É por isso.
-Mas é só por isso que você não me pede? Por causa da implicância que têm
com você? Por isso só, não!
-Não é só por isso. É porque estou ainda desempregado. Se eu estivesse
empregado, desarmava todos; e - fique você certa - logo que me empregue,
peço-te em casamento.
Recordando-se disso, Clara, mais uma vez, contemplou o céu profusamente
estrelado; mas, logo, deu com a mancha de alcatrão e ficou triste.
Rememorando conversas e fatos, ela punha todo o esforço em analisar o
sentimento, sem compreender o ato seu que permitiu Cassi penetrar no seu quarto,
alta noite, sob o pretexto de que precisava se abrigar da chuva torrencial
prestes a cair. Ela não sabia decompô-lo, não sabia compreendê-lo.
Lembrando-se, parecia-lhe que, no momento, lhe dera não sei que torpor de
vontade, de ânimo, como que ela deixou de ser ela mesma, para ser uma coisa,
uma boneca nas mãos dele, Cerrou-se-lhe uma neblina nos olhos, veio-lhe um
esquecimento de tudo, agruparam-se-lhe as lembranças e as recordações e toda
ela se sentiu sair fora de si, ficar mais leve, aligeirada não sabia de quê;
e, insensivelmente, sem brutalidade, nem violência de espécie alguma, ele a
tomou para si, tomou a sua única riqueza, perdendo-a para toda a vida e
vexando-a, dai em diante, perante todos, sem esperança de reabilitação.
Pôs-se a chorar silenciosamente. No seio da noite, um apito de locomotiva ecoou
como um gemido; as árvores como que estremeceram; por sobre um capinzal
próximo, um pirilampo emitia a sua luz de prata azulada; por cima da casa,
morcegos silenciosos esvoaçavam; ao longe, as montanhas tinham aspectos
sinistros, de gigantes negros que montavam sentinela; tudo era silêncio, e, em
vão, ela apurava o ouvido e reforçava o seu poder de visão, para ver se
daquele mistério todo saía qualquer resposta sobre o seu destino - ou se via o
caminho para a sua salvação...
Olhou ainda o céu, recamado de estrelas, que não se cansavam de brilhar.
Procurou o Cruzeiro, rogou um instante a Deus que a perdoasse e a salvasse.
Andou com o olhar no céu, um pouco além; lá estava a indelével mancha de
carvão...
"Ele" não vinha; os galos começavam a cantar. Fechou a janela
chorando e chorando foi se deitar. Custou a conciliar o sono; e a visão
ameaçadora da descoberta, por parte dos seus, da sua falta, passou-lhe pelos
olhos e aterrou-a como um duende, um fantasma.
Em casa e fora, ainda ninguém suspeitava. Os sintomas de gravidez, por ora,
não se faziam sentir. É verdade que tinha náuseas, enjôos, sem causa nem
motivo; mas ela dissimulava-os tão bem, que sua mãe nada percebia.
Dona Engrácia mesmo era de seu natural pouco sagaz e tinha grande confiança na
vigilância que exercia sobre a filha. Joaquim, nos dias úteis, mal via a
filha, pela manhã, ao sair, e à noite, quando voltava do serviço.
A morte desgraçada do seu compadre Marramaque o fizera triste, verdadeiramente
triste e acabrunhado. A sua amizade era velha, e ele devia favores inolvidáveis
ao pobre contínuo. Fora ele quem aperfeiçoara o pouco que ele, Joaquim, sabia,
para ser carteiro. Devia-lhe esse serviço espontâneo. Mais de uma vez,
arranjara-lhe recomendações para promoções, de modo que o que era, devia de
alguma sorte a Marramaque. As partidas de solo, aos domingos, não se realizavam
mais. Lafões tinha sido transferido para os mananciais. O sagaz minhoto
farejava que aquele negócio de Cassi desandaria em desgraça. Ele não a podia
impedir, mas não a queria assistir, tanto mais que se sentia arrependido de ter
apresentado o modinheiro em casa do carteiro. Enganou-o, o malandro! Fizera-o de
boa fé...
O único que aparecia ainda, era Meneses. Estava, porém, amalucado,
monomaníaco. Fugia de todas as conversas e teimava em expor o seu sistema de
carro motor, sem rodas, absolutamente sem rodas. Uma grande descoberta! -
arrematava ele.
-A roda, meu caro Joaquim, é um atraso das nossas máquinas. No seu
acionamento, devido ao atrito dos eixos nos mancais e outros meios de
transmissão da força, perde-se muito do efeito útil desta, proveniente das
resistências passivas. Se nós, para nos movermos; se um cavalo, um elefante e
todos os animais empregassem rodas para se deslocarem de um ponto para outro, a
força que despenderiam seria muitas vezes maior do que a de que efetivamente
dispõem. Suprimo as rodas da minha "Andotiva" (é assim que o meu
aparelho se chama) e imito o meio de locomoverse dos animais terrestres. Tenho
hesitado entre os reptis e os mamíferos; mas vou tornar por modelo estes. Com
juntas, jogos combinados de cadeias de distensão e contração, como as nossas
cadeiras de molas, obterei uma máquina que, com o mesmo custo de força e
combustível que uma locomotiva comum, produzirá o dobro do rendimento útil
que esta produz.
Joaquim, ouvindo tudo isto, bocejava; Meneses, inteiramente engolfado no seu
sonho mecânico, não percebia que estava enfadando o amigo. Falava, falava
sobre a sua sonhada - "Andotiva" - e bebia parati.
Às vezes, jantava com o carteiro e família; mas, na mesa, pouco se dirigia à
Clara. Tinha medo que, conversando, traísse o segredo que existia entre ambos.
O velho dentista, mesmo, havia deixado de ver Cassi, e este, por sua vez,
evitava-o, temendo que Meneses percebesse os seus propósitos de fuga e contasse
a todos, levantando suspeitas em Clara.
Outras vezes, o velho dentista ia procurar Leonardo Flores, para conversar e
mesmo jantar com ele. Flores não passava verdadeiramente necessidade. Com a sua
aposentadoria e o auxilio que os filhos lhe prestavam, sempre tinha o que comer
sem se queixar da fome.
A sua casa, graças à dedicação da mulher, vivia em ordem. Ele não se
intrometia em nada da economia do lar. Os seus próprios vencimentos de
aposentado, ele ia recebê-los, ou ela, e os entregava intactos. Roupa, jornais,
fumo, parati - tudo ela comprava e lhe dava. Em começo, a boa da Dona Castorina
quis ver se suprimia a cachaça; mas viu que era pior. Ele caía num abatimento,
numa apatia de coisa morta. Resolveu fazer mais este sacrifício ao seu triste
casamento: dar cachaça ao marido, Quando ele queria sair, ela lhe dava níqueis
para a sua predileta bebida.
As visitas de Meneses eram particularmente agradáveis à mulher de Flores,
porque não só distraía o marido, como lhe tirava a vontade de sair.
Flores tinha épocas em que não se movia de casa, senão a muito custo, para ir
ao Tesouro receber a sua pensão; mas tinha outra em que se lhe tomava
inteiramente o delírio ambulatório. Dona Castorina, embora compreendendo que o
marido não podia ficar sempre retido em casa, procurava evitar que ele saísse,
devido aos desatinos que praticava. Lá vinha, porém, um dia que...
Quando Meneses ia, aos domingos, procurá-lo, Flores recebia-o com um
grandiloqüente palavreado heráldico e fidalgo; mas ele dizia com grande
melancolia, com uma mágoa que bem sabia não ter remédio:
-Só tu me procuras, Meneses! Os outros me abandonaram... Ah! A Poesia! Ela me
tem dado bons momentos, mas me fez ir longe demais no meu grande serviço...
Punham-se a bebericar e, quando já estavam um tanto "esquentados",
cada um dava para a sua mania. Meneses explicava a mecânica sutil da sua
"Andotiva"; e Leonardo Flores recitava o seu último soneto, que,
embora desconexo, ainda tinha música, uma imponderável nostalgia de coisas
entrevistas em sonho, uma obsessão de perfume, que constituíam os
característicos de sua poética.
De repente, Meneses punha-se a roncar no sofá, e Leonardo, saindo do seu mundo
sonoro de versos e rimas, punha-se de pé e, contemplando o camarada, com os
braços cruzados, limitava-se a dizer:
-Imbecil! Dorme imbecil! Filisteu! Burguês!
E voltava a fazer versos, a que era como que forçado até à hora do jantar.
Por essa ocasião, despertava Meneses aos berros e debaixo de descomposturas e
injúrias poéticas.
O jantar, conforme o hábito das nossas pequenas famílias, nos domingos, era
posto à mesa, mais cedo, constituindo o que se chama o "ajantarado".
Assim se usava na casa de Flores; mas, em geral, era servido tarde, quase à
hora do jantar habitual. A refeição não corria alegre. Meneses tinha a sua
mania; Flores a dele; e ambos, durante ela, entregavam-se às suas
extravagâncias, falando de coisas que os outros não entendiam. Meneses era
calmo; mas o seu amigo comia fazendo esgares, soltando rugidos, cofiando a
barba, ainda negra, que terminava num cavaignac pontiagudo.
Dona Castorina, a mulher de Flores, de vez em vez, repreendia-o como a um filho
menor:
-Come com modos, Flores! Você parece uma criança.
Raramente acontecia estar presente um dos filhos. Andavam pelo football e a mãe
lhes reservava o jantar. Se acontecia o contrário, o rebento do poeta olhava o
pai sem nenhuma expressão, sem ânimo de aconselhálo e sem insensibilidade
para rir. A loucura de Flores era curiosa. Não só ela se manifestava com
intermitências de grandes intervalos, como também as havia num curto espaço
de um dia. O álcool tinha contribuído para ela; mas, sem ele, a sua
alienação mental ter-se-ia manifestado, cedo ou tarde. Todos os que o
conheceram moço, sabiam-no de sobra possuidor de diátese da loucura. Os seus
tics, os seus caprichos, a sua exaltação e outros sintomas confusamente
percebidos levavam os seus íntimos a temerem sempre pela sua integridade
mental. A tudo isso, ele juntava, ainda por cima, álcoois fortes, que sempre
tomou; whisky, genebra, gim, rum, parati - para se compreender a natureza da
insânia de Flores.
Certa vez, após o jantar, tomando café no jardinzinho de sua casa, que ele
mesmo cuidava com rara dedicação, de surpreender no seu estado - Leonardo
olhou o céu e gritou para Meneses, descansando a xícara sobre uma cadeira ao
lado:
-Meneses! Vê só tu como esta tarde está linda! Não é só o ouro e a
púrpura do crepúsculo que vêm; não é só o azul-ferrete dos morros que, com
o aproximar-se a noite, se vai enegrecendo aos poucos... Há mais, caro Meneses;
há verde no céu, um verde imaterial que não é o do mar, que não é o das
árvores, que não é o da esmeralda, que não é o dos olhos de Minerva - é um
verde celestial, diferente de todos aqueles que nós habitualmente vemos...
Vamos sair, vamos gozar a natureza!
-Deixa-te disso, Flores. Daqui mesmo, nós vemos...
-Idiota! Não és um artista... Se não me acompanhas, saio só!...
Dona Castorina interveio naturalmente:
-Para que vais sair, Leonardo? Estás tão bem aqui com o "Seu"
Meneses... Precisas de repouso, descanso...
-Mulher! Sabes quem eu sou? - fez Flores, com o seu modo habitual de cruzar os
braços e enterrar o queixo no peito, quando falava com solenidade.
-Sei muito bem. És Leonardo Flores, meu marido - respondeulhe a mulher,
sorrindo.
-Não sou só isso. Sou mais! - insistiu Flores, carrancudo.
-O que és, então? - perguntou-lhe Dona Castorina.
-Sou um poeta!
Dizendo isto, entrou pela sala adentro e encaminhou-se para o quarto e dormir.
-Onde vais? - indagou-lhe a mulher.
-Vou me vestir; quero ver este crepúsculo de pedraria, de metais caros, de
sonhos e de quimeras. Sou um poeta, mulher!
Dona Castorina já sabia que, quando lhe dava essa fúria de sair, era pior
contrariá-lo. Nada disse ao marido e foi pedir a Meneses que o acompanhasse. O
velho dentista não se sentia bem; o seu desejo era descansar; mas, à vista do
pedido de Dona Castorina, não teve outro remédio senão acompanhar o camarada.
Andaram a pé por toda a parte, bebendo sempre onde encontravam lugar propício;
Meneses, arrastando o passo; e Flores, dilatando as narinas, fazendo horríveis
contrações com o rosto, alisando o cavaignac e dizendo:
-Que beleza! Que beleza! Quero respirar, cheirar, absorver todo o perfume desse
divino crepúsculo... Não fora a natureza, os céus, os pássaros, as águas
múrmuras, como poderíamos viver?
Depois de uma pausa, acrescentou desolado:
-A vida é tão banal, tão chata... Nós somos também natureza; mas do que nos
vale isto? Há os burgueses e os regulamentos que nos abafam...
Já tinha anoitecido de todo. Leonardo Flores não dava mostras de querer voltar
para casa; Meneses arrastava o passo a muito custo. Iam atravessando um trecho
deserto de rua, quando o velho dentista disse para o amigo:
-Leonardo, estou com as pernas que não posso. Vamos descansar um pouco.
-Onde?
-Sentados na relva, um pouco longe da estrada, ali, atrás daquela moita...
Estou que não posso, meu caro.
Os dois abandonaram o caminho público e procuraram a tal moita. Meneses, com
muita dificuldade, sentou-se; mas Leonardo foi logo se deitando. Tinham bebido
muito, e a embriaguez lhes chegava. Leonardo ainda pôde dizer, olhando as
estrelas que começavam a brilhar:
-Como é belo o céu! Lá não haverá por certo ministros, nem congresso, nem
presidentes... Que bom será!
O dentista não se demorou muito tempo sentado; deitou-se logo; e Leonardo, mal
dissera aquelas palavras, ferrou no sono. Dormiram afinal, na relva, com os
olhos voltados para o céu estrelado...
XI
Leonardo, já dia adiantado, veio a despertar naquele capinzal, atordoado,
zonzo; e, ao dar com Meneses ao lado, procurou acordá-lo. Foi em vão; o velho
estava morto. Um colapso cardíaco o tinha levado. Percebendo que o amigo tinha
morrido, Leonardo ergueu-se, tirou-lhe o chapéu de perto da cabeça, pôs-lhe o
rosto bem à mostra, com as suas brancas barbas veneráveis, e começou a
exclamar:
-Sol! Sol glorioso das auroras e das ressurreições! Sol divino que conténs
todos nós, homens e plantas, bestas e gênios, insetos e vampiros, lesmas e
belezas! Sol que tudo fecundas e transformas! Vem tu - ó Sol! - beijar esta
augusta cabeça de imperador (apontava para Meneses hirto) que vai para sempre
mergulhar na treva e só te verá de novo, quando for árvore, quando for
arbusto, quando for pássaro e quando de novo voltar a ser homem. Beija-o ainda
mais uma vez! Beija-o, porque ele te amou e muitas vezes voou para os espaços
sidéreos, desejoso de ver o teu fulgor e morrer por tê-lo visto.
Não dera fé, Leonardo, que alguns transeuntes haviam parado, para ouvir as
suas palavras e ver os seus estranhos trejeitos. Os mais curiosos se aproximaram
e deram com aquele estranho e bizarro espetáculo de um homem, que parecia louco
ou bêbedo, a pronunciar coisas incompreensíveis e a gesticular, diante de um
pobre velho morto. Chamaram a polícia; e lá foi Leonardo, gesticulando e
falando só, para a delegacia. Meneses tomou o caminho do necrotério, após
fotografias e outras precauções policiais.
O primeiro movimento do policial que recebeu Leonardo, foi removêlo
incontinenti para o hospício ou lugar equivalente. Na verdade, o poeta não
dizia coisa com coisa; nem mesmo quem era, informava. Muitos o conheciam de
vista, mas, para essas pessoas, era simplesmente - "o poeta", Em
chegando Praxedes, as coisas mudaram. Tinha ele o hábito de ir de manhã às
delegacias, ver se pegava algum biscate, alguma coisa. Indo, naquele dia, topou
com Leonardo lá e soube que um velho, que bebia muito e costumava estar com
ele, havia sido encontrado morto junto a Flores e fora removido para a morgue.
Viu logo que se tratava de Meneses. Muito prestável, obsequioso de gênio,
Praxedes, para quem a polícia não tinha segredos, informou ao comissário quem
era Leonardo e quem era Meneses. A autoridade policial encarregou-o de prevenir
os parentes e amigos de ambos do que havia acontecido. Praxedes correu à casa
de Joaquim dos Anjos, para desobrigar-se da missão. Foi recebido pela mulher e
a filha.
-Quincas não está ai - disse-lhe Dona Engrácia. - Ele saiu cedo...
-O senhor pode telefonar para a Repartição dos Correios - lembrou Clara.
-Lembrei-me disso, mas não sabia a seção.
A filha disse-lhe e o doutor Praxedes, muito diplomaticamente, ergueu-se todo e,
ao despedir-se das senhoras, desculpou-se:
-Vossas Excelências hão de me perdoar. Não podia deixar de vir até aqui.
Sabia de dois amigos íntimos do doutor Meneses; um era o Senhor Cassi, mas este
está fora...
Clara espantou-se:
-Está fora!
-Ué, Clara! - fez Dona Engrácia, - Que espanto!
-Não, porque ainda há dias "Seu" Meneses disse a papai que estivera
com ele - fez Clara disfarçando.
-Deve ser há algum tempo, minha senhora - aventou Praxedes, com toda a
delicadeza de voz; - porque há bem quinze dias que embarcou para São Paulo, em
Cascadura. Eu até me despedi dele...
Praxedes saía e Clara, logo que pôde, correu ao quarto para chorar. Estava
irremediavelmente perdida; ele a abandonava de vez. Como havia de ser? Como
havia de esconder a gravidez, que se ia mostrando aos poucos? Que fariam dela os
seus pais? Era atroz o seu destino!
Todas essas perguntas, ela formulava e não lhes dava resposta. Cassi partira,
fugira... Agora, é que percebia bem quem era o tal Cassi. O que os outros
diziam dele era a pura verdade. A inocência dela, a sua simplicidade de vida, a
sua boa fé, e o seu ardor juvenil tinham-na completamente cegado. Era mesmo o
que diziam... Por que a escolhera? Porque era pobre e, além de pobre, mulata.
Seu desgraçado padrinho tinha razão... Fora Cassi quem o matara.
Ele contava, já não se dirá com o apoio, mas com a indiferença de todos pela
sorte de uma pobre rapariga como ela. Devia ser assim, era a regra. Nessa
indiferença, nessa frouxidão de persegui-lo, de castigá-lo convenientemente,
é que ele adquiria coragem para fazer o que fazia. Além de tudo, era covarde.
Não cedia ao impulso do seu desejo, de seu capricho, por uma moça qualquer.
Catava com cuidado as vítimas entre as pobres raparigas que pouco ou nenhum mal
lhe poderiam fazer, não só no que toca à ação das autoridades, como da dos
pais e responsáveis.
Estava ai o seu forte; o mais eram acessórios de modinhas, de tocatas de
violão, de cartas, de suspiros - todo um arsenal de simulação amorosa, que
ele, sem caráter e, por demais, cínico, sabia empregar, como ninguém.
Que havia de ser dela, agora, desonrada, vexada diante de todos, com aquela
nódoa indelével na vida?
Sentia-se só, isolada, única na vida. Seus pais não a olhariam mais como a
olhavam; seus conhecidos, quando soubessem, escarneceriam dela; e não haveria
devasso por aí que a não perseguisse, na persuasão de que quem faz um cesto,
faz um cento. Exposta a tudo, desconsiderada por todos, a sua vontade era de
fugir, esconder-se. Mas, para onde? Com a sua inexperiência, com a sua
mocidade, com a sua pobreza, ela iria atirar-se à voracidade sexual de uma
porção de Cassis ou piores que ele, para acabar como aquela pobre rapariga, a
quem chamavam de Mme. Bacamarte, suja, bebendo parati e roída por toda a sorte
de moléstias vergonhosas.
Pensou em morrer; pensou em se matar; mas, por fim, chorou e rogou a Nossa
Senhora que lhe desse coragem. Se pudesse esconder?... - acudiu-lhe
repentinamente este pensamento. Se pudesse "desfazê-lo"? Seria um
crime, havia perigo de sua vida; mas era bom tentar. Quem lhe ensinaria o
remédio? Correu o rol de suas poucas amigas; e só encontrou uma: Dona
Margarida.
Nisto, sua mãe gritou-lhe do fundo da casa:
-Clara, estás dormindo? Olha que estão batendo na porta.
-Já vou, mamãe.
Era o estafeta dos telégrafos, que trazia um despacho do pai, comunicando que,
devido a ter de fazer o enterro de Meneses, chegaria mais tarde, mas viria
jantar.
Ela e a mãe não esperaram; jantaram antes. Clara, muito preocupada com o
"remédio" que ia ver se Dona Margarida lhe arranjava; e Dona
Engrácia, aborrecida com a morte de Meneses.
-Pobre Meneses! - dizia ela. - Morrer assim, no mato! Por que ele não foi pra
casa? Era bem velho, não era, Clara?
-Devia ter mais de setenta anos.
-Isto não quer dizer nada. Há quem dure mais... Você tem reparado, Clara,
que, de uns tempos para cá, está nos acontecendo uma porção de coisas más?
-Nem tantas! Duas só: a morte do padrinho e...
-Você acha pouco e, ainda por cima, da forma que elas nos chegam! Deus nos
proteja! Tenho para mim que alguma está para nos acontecer".
-Qual, mamãe! Tudo isto é doloroso, mas são fatos que se dão...
-Felizmente, esse azar de Cassi se foi. Que vá pro diabo que o carregue!
Clara teve vontade de chorar; mas conteve-se. Estava resolvida: amanhã, pediria
um "abortivo" a Dona Margarida.
Joaquim dos Anjos chegou e narrou tudo o que acontecera com Meneses e Leonardo,
Aquele, por não ter ninguém que lhe fizesse o enterro, ele o fizera; e
Leonardo, logo que foi afastada a hipótese de crime e ficou sabido o seu estado
mental, entregaram-no à mulher. Ao chegar em casa, acompanhado de Dona
Castorina, foi que Flores caiu em si e teve consciência perfeita do fim do
amigo. Estava lúcido, bom; estava o verdadeiro Leonardo, que chorou o
falecimento do camarada, sem mescla de delírio, pressentindo que, nele, havia
aviso do seu próximo fim.
Engrácia ouviu a narração de Quincas e, ingenuamente, perguntou-lhe:
-Esse Leonardo é mesmo homem de inteligência, Quincas?
-É, Engrácia. Por quê?
-Por que ele então bebe tanto?
-Quem sabe lá? Vício, hábito, capricho da sua natureza, desgostos, ninguém
sabe! - observou o marido.
-Eu vejo tanto doutor por aí que não bebe.
-Você pensa que todo doutor é inteligente, Engrácia?
-Pensei.
Clara ficou admirada de que a opinião da mãe não fosse exata. Ela também,
muito popular e estreita de idéia, admitia que toda a espécie de doutor fosse
de sábios e inteligentes.
Joaquim, dizendo-se cansado, fora logo deitar-se; e, em seguida, a sua mulher e
filha.
Em breve, tudo era silêncio na casa e na rua. Clara não esperava mais, com a
janela semi-aberta, a visita do sedutor. Havia se fatigado de aguardá-lo muitas
noites seguidas; e, agora então, depois da informação de Praxedes, tinha
perdido toda a esperança. Ele fugira, e ela ficara com o filho a gerar-se no
ventre, para a sua vergonha e para tortura de seus pais. Imediatamente, o seu
pensamento se encaminhou para o "remédio" que devia
"desmanchá-lo", antes que lhe descobrissem a falta. Tinha medo e
tinha remorsos. Tinha medo de morrer e tinha remorsos de "assassinar"
assim, friamente, um inocente. Mas... era preciso. Pôs-se a examinar o que lhe
podia responder Dona Margarida. Pesou os prós e os contras; analisou bem o
caráter da amiga russa-alemã; e, na calma do quarto, percebeu bem que não lhe
daria nem indicaria o "remédio" criminoso. Margarida era uma mulher
séria, rigorosa de vontade, visceralmente honesta, corajosa, e não haveria
rogos nem choro que a fizessem contribuir para um crime de qualquer natureza.
Então, como havia de ser? Examinou a lista das conhecidas, a ver se encontrava
uma que lhe prestasse esse "serviço"... Não encontrou, e também
eram tão poucas... Se tivesse dinheiro, com auxilio de Mme. Bacamarte...
Acudiu-lhe então uma idéia. Ela ajudava Dona Margarida nos bordados e nas
costuras, com o que já ganhava algum dinheiro. Não tinha nada a haver da
amiga; mas bem lhe podia pedir emprestado, sob qualquer pretexto, uns vinte ou
trinta mil-réis e pagá-los com trabalho. Qual seria o pretexto? Pensou,
combinou mentiras; e, afinal, encontrou-o. Diria que era para comprar um
presente destinado à mãe, cujo aniversário natalício estava a chegar. Sorriu
de contentamento, quando organizou toda aquela mentiralhada. Julgava-se salva;
mas, com o que ela não contava, era com a sagacidade da alemã.
Dona Margarida era mulher alta, forte, carnuda, com uma grande cabeça de
traços enérgicos, olhos azuis e cabelos castanhos tirando para louro. Toda a
sua vida era marcada pelo heroísmo e pela bondade. Embora nascida em outros
climas e cercada de outra gente, o seu inconsciente misticismo humanitário,
herança dos avós maternos, que andavam sempre às voltas com a polícia dos
czares, fê-la logo se identificar com a estranha gente que aqui veio encontrar.
Aprendeu-lhe a linguagem, com seus vícios e idiotismos, tomou-lhe os hábitos,
apreciou-lhe as comidas, mas sem perder nada da tenacidade, do esprit de suite,
da decidida coragem da sua origem. Gostava muito da família do carteiro; mas,
no seu íntimo, julgavaos dóceis demais, como que passivos, mal armados para a
luta entre os maus e contra as insídias da vida.
Quando Clara lhe falou no empréstimo ou adiantamento, ela se espantou. Nunca a
filha do "correio" lhe havia feito semelhante pedido - o que queria
dizer aquilo? Não respondeu logo à solicitação e encarou firmemente, com o
seu olhar translúcido e, no momento, duro, a filha do carteiro; e, por sua vez,
indagou:
-Para que você quer esse dinheiro, Clarinha?
A moça, não podendo suportar a mirada da alemã, abaixara os olhos; e, com voz
sumida, explicou o suposto destino que ia dar à quantia pedida. Dona Margarida
não acreditou; e, continuando com o olhar a sondar inquisitorialmente Clara,
observou com energia maternal:
-Clara, você não fala a verdade; você está escondendo alguma coisa.
A moça quis negar; mas Dona Margarida, pressentindo que ela ocultava alguma
coisa de grave, cercou-a de perguntas; e Clara não teve outro remédio senão
confessar tudo. Ela chorou, mas Dona Margarida, sem se deixar comover, durante
toda a confissão, mais arrancada aos poucos do que mesmo narrada
espontaneamente, foi pensando como agir. Encheu-se, Dona Margarida, de uma
infinita pena daquela desgraçada rapariga, dos seus pais, e mais profunda se
tornava a pena, quando antevia o horrível destino da pobre Clara; entretanto,
não deu qualquer demonstração do que lhe ia n'alma.
Num dado momento, sem dar-lhe a mínima explicação, Dona Margarida ergueu-se
e, dirigindo-se a Clara, ordenou imperiosamente:
-Vamos falar à sua mãe.
A filha do carteiro, sem fazer a mínima objeção, obedeceu. Ao chegar à casa
de Joaquim, Dona Engrácia estava no interior, inocentemente entregue aos seus
afazeres domésticos. Entretanto, Dona Margarida chamou de parte a mãe de Clara
e começou a narrar-lhe o que havia acontecido com a filha. Dona Engrácia não
se pôde conter. Logo que compreendeu a gravidade do fato, pôs-se a chorar
copiosamente, a lastimar-se, a soluçar, dizendo entre um acesso de choro e
outro:
-Mas, Clara!... Clara, minha filha!... Meu Deus, meu Deus!
A filha aproximou-se chorando; ajoelhou-se, ajuntou as mãos, em postura de
oração, aos pés da mãe e, soluçando, repetiu:
-"Me perdoe", mamãe! "Me perdoe", pelo amor de Deus!
Dona Margarida, de pé, nada dizia e olhava com profunda e desmedida tristeza,
que não se adivinhava na sua calma e na segurança do seu olhar, aquele quadro
desolador do enxovalhamento de um pobre lar honesto.
Afinal, quando lhe pareceu que ambas estavam mais calmas, interveio:
-Você sabe, Clara, onde mora a família desse sujeito?
Clara, ainda soluçando, respondeu:
-Sei.
Dona Engrácia indagou:
-Para quê?
Dona Margarida explicou que, antes de qualquer procedimento e mesmo de comunicar
o fato a "Seu" Joaquim, era conveniente entenderse com a família de
Cassi. Ela, Dona Margarida, iria imediatamente à casa dele, acompanhada de
Clara. Mãe e filha concordaram; e Clara vestiu-se.
A residência dos pais de Cassi ficava num subúrbio tido como elegante, porque
lá também há estas distinções. Certas estações são assim consideradas, e
certas partes de determinadas estações gozam, às vezes, dessa consideração,
embora em si não o sejam. O Méier, por exemplo, em si mesmo não é tido como
chique; mas a Boca do Mato é ou foi; Cascadura não goza de grande reputação
de fidalguia, nem de outra qualquer prosápia distinta; mas Jacarepaguá, a que
ele serve, desfruta da mais subida consideração.
A casa da família do famoso violeiro não ficava nas ruas fronteiras à gare da
Central; mas, numa transversal, cuidada, limpa e calçada a paralelepípedos.
Nos subúrbios, há disso: ao lado de uma rua, quase oculta em seu cerrado
matagal, topa-se uma catita, de ar urbano inteiramente. Indaga-se por que tal
via pública mereceu tantos cuidados da edilidade, e os historiógrafos locais
explicam: é porque nela, há anos, morou o deputado tal ou o ministro sicrano
ou o intendente fulano.
Tinha boa aparência a residência da família do Senhor Azevedo; mas quem a
observasse com cuidado, concluiria que a parte imponente dela, a parte da
cimalha, sacadas gradeadas e compoteiras ao alto, era nova. De fato, quando o
pai de Cassi a comprou, a casa era um simples e modesto chalet, mas, com o
tempo, e com ser sua vagarosa, mas segura, prosperidade, pôde ir, também
devagar, aumentando o imóvel, dando um aspecto de boa burguesia remediada. Na
frente, não era alto; o terreno, porém, inclinava-se rapidamente para os
fundos, de forma que, nessa parte, havia um porão razoável, onde, ultimamente,
habitava Cassi. O puxado, na traseira da casa, também tinha porão, porém, com
maus quartos, que eram ocupados pelas galinhas do filho e por coisas velhas ou
sem préstimo, que a família refugava, sem querer pôr fora de todo.
Dona Margarida tocou a campainha com decisão e subiu a pequena escada que dava
acesso à casa. Disse à criada que desejava falar à dona da casa. Dona
Salustiana, que esperava tudo, menos aquela visita portadora de semelhante
mensagem, não tardou em mandar entrar as duas mulheres. Ambas estavam bem
vestidas e nada denunciava o que as trazia ali. Só Clara tinha os olhos
vermelhos de chorar, mas passava despercebido, Chegou Dona Salustiana e
cumprimentou-as com grandes mostras de si mesma. Dona Margarida, sem
hesitação, contou o que havia. A mãe de Cassi, depois de ouvi-la, pensou um
pouco e disse com ar um tanto irônico:
-Que é que a senhora quer que eu faça?
Até ali, Clara não dissera palavra; e Dona Salustiana, mesmo antes de saber
que aquela moça era mais uma vítima da libidinagem do filho, quase não a
olhava; e, se o fazia, era com evidente desdém. A moça foi notando isso e
encheu-se de raiva, de rancor por aquela humilhação por que passava, além de
tudo que sofria e havia ainda de sofrer.
Ao ouvir a pergunta de Dona Salustiana, não se pôde conter e respondeu como
fora de si:
-Que se case comigo.
Dona Salustiana ficou lívida; a intervenção da mulatinha a exasperou. Olhou-a
cheia de malvadez e indignação, demorando o olhar propositadamente. Por fim,
expectorou:
-Que é que você diz, sua negra?
Dona Margarida, não dando tempo a que Clara repelisse o insulto, imediatamente,
erguendo a voz, falou com energia sobranceira:
-Clara tem razão. O que ela pede é justo; e fique a senhora sabendo que nós
aqui estamos para pedir justiça e não para ouvir desaforos.
Dona Salustiana voltou-se para Dona Margarida e perguntou, pronunciando,
devagar, as palavras, como para se dar importância:
-Quem é a senhora, para falar alto em minha casa?
Dona Margarida não se intimidou:
-Sou eu mesma, minha senhora; que, quando se decide a fazer uma coisa de justo,
nada a atemoriza.
Foi calmamente que Dona Margarida falou; e, à vista dessa atitude, Dona
Salustiana resolveu mudar de tática. Gritou para as filhas:
-Catarina! Irene! Venham cá que esta mulher está me insultando.
As moças acudiram e, contemplando o ar enérgico da teuto-eslava e a figura
lastimosa de Clara, compreenderam que Cassi estava no meio. Acalmaram a mãe e
indagaram do sucedido; Dona Margarida explicou; mas, quando se falou em
casamento de Cassi, Dona Salustiana prorrompeu:
-Ora, vejam vocês, só! É possível? É possível admitir-se meu filho casado
com esta...
As filhas intervieram:
-Que é isto, mamãe?
A velha continuou:
-Casado com gente dessa laia... Qual!... Que diria meu avô, Lord Jones, que foi
cônsul da Inglaterra em Santa Catarina - que diria ele, se visse tal vergonha?
Qual!
Parou um pouco de falar; e, após instantes, aduziu:
-Engraçado, essas sujeitas! Queixam-se de que abusaram delas... É sempre a
mesma cantiga... Por acaso, meu filho as amarra, as amordaça, as ameaça com
faca e revólver? Não. A culpa é delas, só delas...
Dona Margarida ia perguntar: "Que decide, então?" - quando se ouviram
passos na escada. Era o dono da casa. Entrando e deparando-selhe aquele quadro,
suspendeu os passos e parou no meio da sala.
Olhou tudo e todos e perguntou:
-Que há?
"Papai" - ia dizendo uma das filhas; - mas sabendo, por aí, quem era
aquele homem, Clara correu para ele, ajoelhou-se e implorou:
-Tenha pena de mim, "Seu" Azevedo! Tenha pena de uma infeliz! Seu
filho me desgraçou!
O velho Azevedo descansou os embrulhos, levantou a moça, fê-la sentar-se; e
ele, sentando-se por sua vez, pôs-se a olhar, cheio de pena, o dorido rosto da
rapariga. Todos os olhos se fixaram nele; ninguém respirava. Afinal, Azevedo
falou:
-Minha filha, eu não te posso fazer nada. Não tenho nenhuma espécie de
autoridade sobre "ele"... Já o amaldiçoei... Demais, "ele"
fugiu e eu já esperava que essa fuga fosse para esconder mais alguma das suas
ignóbeis perversidades... Tu, minha filha, te ajoelhaste diante de mim ainda
agora. Era eu que devia ajoelhar-me diante de ti, para te pedir perdão por ter
dado vida a esse bandido - que é o meu filho... Eu, como pai, não o perdôo;
mas peço que Deus me perdoe o crime de ser pai de tão horrível homem... Minha
filha, tem dó de mim, deste pobre velho, deste amargurado pai, que há dez anos
sofre as ignomínias que meu filho espalha por aí, mais do que ele... Não te
posso fazer nada... Perdoa-me, minha filha! Cria teu filho e me procura se...
Não acabou a frase. A voz sumiu-se; ele descaiu o corpo sobre a cadeira e os
olhos se foram tornando inchados.
As filhas acudiram, a mulher também; e uma daquelas, chorando, pediu à Clara e
à Dona Margarida:
-É favor, minhas senhoras; retirem-se, sim?
Na rua, Clara pensou em tudo aquilo, naquela dolorosa cena que tinha presenciado
e no vexame que sofrera. Agora é que tinha a noção exata da sua situação na
sociedade. Fora preciso ser ofendida irremediavelmente nos seus melindres de
solteira, ouvir os desaforos da mãe do seu algoz, para se convencer de que ela
não era uma moça como as outras; era muito menos no conceito de todos. Bem
fazia adivinhar isso, seu padrinho! Coitado!...
A educação que recebera, de mimos e vigilâncias, era errônea. Ela devia ter
aprendido da boca dos seus pais que a sua honestidade de moça e de mulher tinha
todos por inimigos, mas isto ao vivo, com exemplos, claramente... O bonde vinha
cheio. Olhou todos aqueles homens e mulheres... Não haveria um talvez, entre
toda aquela gente de ambos os sexos, que não fosse indiferente à sua
desgraça... Ora, uma mulatinha, filha de um carteiro! O que era preciso, tanto
a ela como às suas iguais, era educar o caráter, revestir-se de vontade, como
possuía essa varonil Dona Margarida, para se defender de Cassis e semelhantes,
e bater-se contra todos os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra a
elevação dela, social e moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão o
conceito geral e a covardia com que elas o admitiam...
Chegaram em casa; Joaquim ainda não tinha vindo. Dona Margarida relatou a
entrevista, por entre o choro e os soluços da filha e da mãe.
Num dado momento, Clara ergueu-se da cadeira em que se sentara e abraçou muito
fortemente sua mãe, dizendo, com um grande acento de desespero:
-Mamãe! Mamãe!
-Que é minha filha?
-Nós não somos nada nesta vida.
Todos os Santos (Rio de Janeiro),
dezembro de 1921 - janeiro de 1922.