Agua Viva 2
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Nenhum segredo é sagrado. Nenhuma guerra é santa.

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Não se diz certas coisas à um homem, por pior que ele seja. Porque por pior que ele seja, ele é um homem.

Dirceu Walter Ramos

Em volta, vários aviões e carros e caminhões e bichos e gentes, literalmente estilhaçados, arrebentados, puídos. E elas em pé. Inacreditável! As pirâmides estavam absolutamente intactas, nenhum arranhão. Em pé. "Sei que não podias ser mais bela, que os céus e a Terra, é bem bela, ainda que seja de noite...".
- Meu Deus, eu preciso de uma explicação lógica pra isso. E não adianta se fingir de surdo não. Quero uma explicação e quero já! Vamos, responda. Será que você não está nem aí??? Será que você está em algum lugar? Vamos, saia daí e venha até aqui! Quero uma explicação lógica, desce já daí e não adianta dizer que não tem nada a ver com isto.
O Agri ficou por ali, berrando um bom tempo. Não, ninguém respondeu. Deus não fez nenhuma visitinha pros seus filhos. Não havia explicação praquelas pirâmides ficarem em pé. Nenhuma explicação.
Aproveitei a parada e enquanto o debilóide berrava, abasteci o jatinho.
Já estava escurecendo e ele sugeriu que passássemos a noite ali mesmo. Nossa última noite sozinhos. Fatalmente encontraríamos os outros. Nossa última noite... Um cadáver. Não conseguia tirar aquela cena da cabeça. Trepar com um monte de carne em decomposição retardada por causa do frio. Um cadáver.

-.-

Um dia Deus apareceu, sem mais nem menos e disse: Abrão, Abrão, de agora em diante se chamarás Abraão e eu abençoarei toda a sua família e todos os seus descendentes. E Abraão já tava velhinho, velhinho pra trocar de nome. Veja você, ele tinha 99 anos que ter 99 anos não é qualquer um que agüenta que não é só agüentar mas ainda falar com Deus, audiência e tudo mais. Uau!
Abraão era descendente de Noé e Adão que esta família era querida por Deus que também, tinha sido a primeira. Então Deus chegou no Abraão e disse: Escute aqui, meu chapa, Saraí, tua mulher, à partir de agora vai se chamar Sara e tem mais, ela vai te dar um filho.
Veja você, Sara era estéril que também Abraão não acreditou muito nesta historia que Sara tinha 90 anos, como poderia gerar um filho? Só podia ser gozação, xá pra lá.
Então Deus lhe disse: Olhe aqui, meu chapa, enquanto você tá indo jogar pedrinha, tô voltando da Internet. Você duvida dos poderes de seu Deus? imagina você que tenha algo impossível pra mim?
Abraão ficou na dele, ou seja, no seu devido lugar. Deus falou, tá falado! Ele é o chefe. Disse que dali à exatamente um ano, ele teria um filho.
Sara não botou muita fé, tanto não botou, que foi que nem peixe, morreu pela boca, não que tenha morrido, mas gerou um filho no prazo previsto e seu nome foi Isaac que Isaac era um bonito nome e tava na moda e que também, imagine você, dar a luz aos 90 anos, não foi mole e o velho Abraão tava em ponto de bala que tempos antes tinha feito um filho na escrava que era costume da época que quando a mulher era estéril a escrava tinha o filho por ela e este outro se chamava Ismael e Sara ficou enciumada quando nasceu Isaac e não queria mais a escrava e nem o filho dela que falou pra Abraão despedir ela que ela não queria saber destas coisas de Isaac repartir o que era só dele com o bastardinho.
Abraão não quis. Filho é filho e venha de onde vier. Mas Deus disse que fizesse a vontade da mulher que ele faria de Ismael uma grande nação que ele também tinha o sangue de Abraão. E cheio de dó, mandou-o embora junto da escrava sem nem cumprir o aviso prévio. Cheio de dó porque era seu primeiro filho que primeiro ou último é tudo filho e a gente tem de gostar de tudo igual.
Sacanagem mesmo, pintou alguns anos mais tarde. Deus chamou Abraão e disse-lhe para que pegasse o menino, seu único filho e o oferecesse em holocausto que holocausto era dar à Deus vítimas que eram carneiros, cabritos, estas coisas. Colocar sobre uma espécie de churrasqueira improvisada e oferecer ao Senhor.
Deus designou o lugar onde queria o sacrifício que era um monte que ficava num lugar chamado Mória que este lugar tinha um monte de monte e era bastante longe e longe também para um velhinho que Abraão já tava velhinho, velhinho nesta época. Só que nesta época as pessoas viviam muitos e muitos anos que tinha até um antepassado de Abraão que vivera novecentos e poucos anos, é mole?
Não se discute com Deus, não se reclama dele, não se enche as paciências de Deus, nem se tenta mudar as idéias dele.
Dia seguinte, bem cedinho, Abraão pegou seu único filho, chamou dois de seus empregados, cataram lenha e estas coisas que precisava para fazer um bom holocaustosinho e se arrancaram pra Mória, móra. A viagem durava três dias e quando chegaram, Abraão e o menino começaram a subir um dos montes. Ah, esqueci de contar que Sara não queria que Abraão levasse o menino que o menino era ainda muito pequeno pr'essas coisas. Mas isto não tem mesmo muita importância.
Chegaram lá em cima, ele e o menino que os servos tinham ficado lá em baixo e então prepararam a churrasqueira (digamos assim). O menino meio amedrontado, perguntou ao pai que catso de holocausto era aquele que não tinha nem vítima? Que catso eles iriam assar? O pai lhe disse que Deus arranjaria uma vítima e já foi logo preparando o cutelo que cutelo era uma espécie de foice que nem aquela que tem na bandeira da Rússia. Foi aí que apareceu Deus, melhor, Deus nunca aparecia. Aparecia sempre a voz dele e a voz dele lhe disse:
- Não levanta a tua mão para o menino Abraão. Não é preciso essa basbaquice meu chapa. Agora eu saquei que cê teme à Deus e sequer perdoou seu filho por me amar, é chocante móra! Te juro Abraão, eu te abençoarei e multiplicarei tua raça, podes crer. Multiplicarei que nem as estrelas do céu, cada uma delas, falei? Graças a isto, nas tuas descendências, serão benditas todas as nações do mundo. De você sairão reis e grandes chefes, porque cê é boa gente, bom filho, cara pode crer. Legal, tô emocionadão mesmo.
Abraão chorando, catou seu filho e olhando pra trás viu um carneirinho preso pelos chifres. Deu à Deus em holocausto e disse à Deus, adeus.

-.-

- Puxa Agri, esta historia é genial, parece até de verdade.
- E é Pedrinho. Da raça de Abraão contam que nasceram muitos reis. Isaac teve dois filhos e o mais novo, Jacó, teve doze filhos e um deles chamou-se José que chegou quase à ser faraó do Egito, mas esta é outra historia. Da descendência do Abraão, nasceram Moisés e Jesus.
- Será que até hoje existem ou existiriam descendentes de Abraão?
- É um mistério Pedrinho, porque Jesus morreu e dali em diante a gente não sabe o que aconteceu. Alguns dizem que a descendência dele acabou com Jesus que Jesus a gente sabe que não teve filho nenhum porque nem se casou. Mas a família que descendeu de Abraão era muito grande e é possível que tenha tido mais descendentes.
- E porque é que você me contou esta historia?
- Porque eu acredito que ainda exista alguém da raça de Abraão.
- Porque?
- Sei lá, estas pirâmides, tem de ter uma lógica, porque estas pirâmides não cederam como tudo?
- Ora Agri, lembra da casa de praia, da fazenda? Também não cederam. Não é tão absurdo assim.
- Como não? As casas não cederam mas racharam e em breve também cairão. As pirâmides não tem um só arranhão.
- Quando elas foram construídas?
- E eu sei lá. Fazem milhares de anos.
- Quem construiu?
- Isso é um outro grande mistério. Uns caras aí, dizem que foram astronautas vindos de um outro planeta e que eles eram super grandes e fizeram as pirâmides com uma porrada de cálculos geniais, como uma referência, entende? Todas elas tem um significado, não estão aqui à toa. Já, dizem outros, que houve na Terra uma civilização mais evoluída que a nossa e que chegou à tal ponto que houve uma grande guerra e que não sobrou ninguém.
- Como agora? (perguntei)
Ficamos calados.
Resolvemos dormir. Não tínhamos mais nada pra falar. Eram os deuses astronautas? Von Dâniken diz que sim, eu digo que estou com sono.





Dia seguinte acordei o Agri com o barulho dos motores ligados.
- Que é isto Pedrinho?
- Ué? Nós não vamos pra Europa?
- Ah, vamos ficar mais um pouco aqui, só mais um dia vai...
Nem precisou falar duas vezes. Catei o saco de provisões e desta vez eu é que preparei nosso café. Pegamos a garrafa térmica e uns troços que o Agri tinha feito ainda na África do Sul e que ele tinha a petulância de chamar de biscoito. E fomos nos sentar ao lado de uma das pirâmides que mais tarde o Agri disse que era a pirâmide de Quéops, um faraó.
Ficamos horas ali, o dia todo, batendo papos e mais papos. O pessoal do colégio, a turminha do violão. Fiquei triste. Ficamos tristes. Que teria acontecido com eles? Porque a gente não ia ao Brasil ao invés da Europa?
Sempre tive medo. Medo de amar fosse qual fosse o modo. Medo de entregar. Medo de me olhar no espelho e não me reconhecer. Medo de fazer amor depressa. Medo, muito medo. De mim mesmo. Das coisas que eu pudesse sentir por outro homem, das coisas que eu pudesse sentir por uma mulher. Medo de dizer que sentia o que quer que sentisse. Medo do Agri agora, eu ele e...
Medo.
Uma coisa meio que misturada com saudade daquela bem doída, que vem em gotinhas.
Como é tolo ter saudades, como é tolo não ter. um sentimental fora de hora. Um cadáver. Fazer amor com um cadáver.
Com o tempo, os amigos foram cada um pra um lado. Um virou comunista, outro foi ser bancário, outro faz trafego, outro tráfico, um cheira, outro fede, outro empesteia. Cadáveres.
Faz tanto tempo... O Valdir, louco amigo meu, tinha uma canção com o Mandril (outro amigo), que falava sobre esta coisa de tempo que machuca. Retalhos. Retalhos da ... nova raça humana.
Faz tanto tempo... Gotinhas de saudades caindo do telhado. Telhado cabeça. Que droga de droga que é a vida! porque eu não subo naquele jatinho e vou de encontro às pirâmides?
Que diferença faz?
O Agri me contou outra de suas historias, falava de um poeta que se suicidara. Cantou uma música que haviam feito. Suicídio marítimo. Será que o mar inundou o Brasil? "y fosforecentes cavallos marinos harán una ronda a tu lado..."
Já era tarde quando fomos nos deitar. Ainda tínhamos um pouquinho de erva. Fumamos um e dormimos, agarrados e felizes.
- Hey, acorda. Acorda Pedrinho!
- Que é que há?
- Ouvi um barulho. Psiu. Fica quieto, vamos espiar!
Não havia nada. De repente outro barulho. Parecia um tiro a distância. Saímos pra fora do avião, meio covardes, meio heróis. Heróis bichas.
Lá longe dava pra ver. Pequenas explosões, fumacinhas, lá distante. Já era dia. O que poderia ser? Propovisky testando uma "nova forma de vida?".
Os barulhos pararam. Tomamos café e fomos verificar.
Demoramos algum tempo e de repente as explosões recomeçaram e estavam bem próximas. Nos escondemos numa espécie de cabana. Era um deposito, um deposito de armas. Pegamos uma metralhadora cada e alguns revolveres, beretas mesmo. Enchemos os bolsos e uns dois sacos de munição e carregamos as armas. Heróis. Dois cadáveres.
Nos aproximamos do local das explosões. A cena foi chocante.
Não eram explosões, era um imenso tambor. Cerca de trinta pessoas batiam nele e uma outra, isolada, fazia sinais de fumaça. Meu Deus, que horrível! Estavam todas deformadas, com enormes verrugas amarelas nos rostos. Uns sem olho, outros com braços pendurados, quebrados, caindo. Cochos, podres. Gemiam, não falavam nada. Um deles conseguiu se aproximar da gente, engatilhei a arma, uma bereta. O rosto dele estava espalhado, como uma geléia. Um boneco de cera inacabado.
- Por favor, nos ajude. Vocês são do céu, não são? São anjos de Deus!
E eles se ajoelharam na nossa frente.
- Não, não, não, parem com isso. Nós não somos anjos. Não existem anjos.
Gritávamos em vão.
- Por favor, nos matem, misericórdia, nos livre desta agonia!
Disparamos.
Descarregamos toda a munição das metralhadoras naqueles infelizes. Em cima da nova raça humana. Humana? Estraçalharam-se crânios, membros, ossos, massa. Meu Deus, que espetáculo deprimente. A "nova raça". Que diferença faz?
Depois foi foda, foi foda encarar o mundo. Foi foda olhar para o espelho, meu Deus. E existiam caras que faziam as guerras e depois ainda conseguiam dormir. Que horrível, que coisa nojenta.
Vomitei. Que nojo! A nova raça humana é um nojo e nós somos os heróis. Que nojo!




Fazia tempo. Fazia muito tempo que tínhamos nos separado do resto do grupo. Nem me lembrava mais como era a cara do nanico. A Europa do alto, lá do alto, parece uma mulher sentada, uma prostituta. Será que eles ainda estariam na Europa? Não sei. Só sei que o tempo todo, desde de que pousamos lá, eu tinha a impressão de estar sendo vigiado, sei lá.
Propovisky havia se enganado. Não ficou nada em pé. A torre Eiffel estava espatifada no chão, chamuscada, deve ter sido um estrondo e tanto, pensei. Ferrugem é o que restou de um dos mais belos monumentos do mundo moderno, da historia da velha raça. Humana. Tudo parecia uma grande pintura de Dali, tudo. Detritos de uma civilização moderna.
Paris estava horrorosa. A vedete do mundo não se maquiou, esqueceu. Não vestiu seus trajes elegantes, os mais caros do planeta. Que horror!
Pedaços de gente se aglomeravam pelas esquinas. Numa delas, duas meretrizes estavam misturadas, caídas na porta do que parecia ter sido uma boate. Suas bocas riam, os ossos já apareciam nos rostos, mas a maquiagem resistia. Elas sorriam, pareciam estar num porre infernal. Paris e seus mistérios... Paris fedia. A cidade dos perfumes fedia.
Eles não estavam na França. Nem na Holanda. A Holanda parecia um esboço de Van Gogh, que ironia. A Holanda estava podre, ele deve ter se virado sob o túmulo. Também não estavam na Inglaterra, Londres dava nojo, punks e soldados espalhados pela metrópole, reis do mar. O palácio... As galerias enormes do palácio de vossa alteza estavam brilhando e o palácio sequer estava de pé, que engraçado. O que será que tinha acontecido no palácio encantado e assombrado de Queen Elizabeth?
Berlim estava mais unificada que nunca. Portugal estava inundado. Do coliseu ficaram apenas as pedras pra tudo que é lado. Nenhum leão matará mais os cristãos, disto eu tinha certeza. Também estava certo, eles não estavam na Europa.
- Moscou, isto!
- O que?
- Pedrinho, pense bem, Propovisky era russo. Ele deve ter ido pra lá.
Tinha a ver. Também, deveria ser engraçado ver o Kremlin aos pedaços. Fomos.
Impossível. Eles não poderiam estar em parte alguma da Rússia, porque a Rússia estava em baixo do gelo. Não resisti. Ri feito um débil mental. Com muito custo consegui explicar, porque o Agri queria rir também. Tanto eles brincaram de guerra fria que acabaram congelados.
Lembrei de Raul Seixas de novo: "A civilização se tornou tão complicada que ficou tão frágil como um computador, que se uma criança descobre o calcanhar de Aquiles, com um só palito pára o motor".
- Brasil. Eles devem estar no Brasil.
Por um instante vacilei ao volante da aeronave.
- Agri, eu não quero ver o Brasil deste jeito.
- Ah, a gente dá uma passadinha em Paris, você compra roupas novas, meu bem, toma um banho e se perfuma, ok?
Não teve jeito. Ele tomou os comandos e começamos a viagem. Paramos novamente em Paris pra abastecer. Um helicóptero pousou bem na nossa frente.







- Mel, Merk, Laia, são vocês!
Que alivio. Eu acho que eu não agüentaria ver o Brasil destroçado. Se bem que eu não sonhei coisa melhor para o Brasil. em todo caso seria muito frustrante.
Imaginei encontrar pedaços de Caetano Veloso misturados com pedaços de Maria Bethânia. A unificação do mundo! O silencio imenso por todo país sem a voz do Milton. Por outro lado, não teríamos de aturar os novos livros do Ribamar, vulgo Sarney (nunca confiei muito em pessoas que trocam de nome). Há males que vem para o bem.
- Não estivemos lá.(era Merk)
E o nanico?
- Ele desapareceu...
Desapareceu?
- Sumiu da noite pro dia. Ainda bem que eu sabia pilotar.
Choro de criança.
- É, é, é meu filho? (temi a resposta)
- É! (confirmou Laia)
Uma estranha compaixão, não sei porque, me fez chorar. Meu filho. Pai. Ajoelhei-me diante da figura cristalina daquele sopro de vida. pai. Tomei-o nos braços, meio que imitando, sei lá, aquela historia que o Agri me contou. Ofereci a Deus. não o Deus da bíblia, porque naquele momento eu também era Deus. Criador de criaturas. Mas o Deus meu pai que me botou no mundo e que tava morto. Pai.
- PAI, olha meu filho que sou eu pai, que sou você! Vem cá, vem fazer carinho no meu filho pai. PAI (e ergui o bebê o mais que pude). Tome pai, faça-o ninar, seus braços são mais fortes, suas pernas mais caminhos. Nos seu tórax mais amores, terra adorada, pai, terra santa de suas mãos...PAI, seu colo é o berço esplendido, meu Deus pai, você é gigante pela própria natureza. O filho de seu neto espelhará sua grandeza, terra adorada, a vida, sua vida, PAI!!!
Tiveram de me segurar. Porra me solte! Meu filho... Uma bosta de relação com uma mulher que eu mal conhecia. Meu filho. Que loucura.




























Laia não estava muito bem. Ela emagrecia cada vez mais. Câncer, só pode ser. Era um palito ambulante, tava secando por dentro. Secando, secando, sumindo.
Câncer, o maldito já tinha chegado. Cadê o filho da puta do russo nanico?
Laia morreu nos meus braços, nua e seca. Orgasmo. A morte deve ser um grande orgasmo. Seca. Pensei em congela-la. Trepar com um cadáver. Desisti.
Agora éramos seis. Laia tinha nos deixado, Propovisky sumiu sem deixar nenhuma pista. Nova raça... Meu filho crescia depressa e Paris tá um lixo! Abastecemos o jatinho. Quem sabe o Japão? Estados Unidos.
Estados unidos?
Sempre disseram que ele era oco, mas aquilo também já era exagero. A única coisa que restou da Primeira Nação do Mundo foi a estátua da Liberdade boiando no atlântico. Que liberdade... É poético e ao mesmo tempo irônico. A única liberdade que restou era uma estátua. Confesso que não liguei. Nunca fui fã deste país. O mais engraçado é que o México tava lá, aliás, muito esquisito. Esquisito porque nada ficou de pé, exceto o templo Maia. Intacto. Uma pirâmide maior que a de Quéops, também estava intacta. Pirâmide choulula foi o que disse Agri. Ele é que era o entendido nestas coisas.
Fiquei muito, muito chateado mesmo. Deprimidissimo, quando vi o Azteca em ruínas. Pô era a gloria do futebol brasileiro que tinha caído junto com o estádio, se bem que há algum tempo atrás, um tal de Ricardo Teixeira fez a mesma coisa e o que é mais surpreendente, sem usar bomba nenhuma, era um mágico! E usava cartola, aliás, cartolas. Isso não tem a menor importância, afinal, o que não vale nada não tem importância. Pô, meu filho. Ele não saberia de Pelé... Que diferença faz?
Resolvemos ficar algum tempo no México, afinal, era a segunda casa dos brasileiros, ninguém dizia nada, mas não era difícil de imaginar. Todos temiam ir ao Brasil.
Bem, no final das contas, a gente acabou não ficando no México porque as coisas misteriosas passaram a ser nosso passatempo preferido e Agri, nosso guia turístico.
Na Guatemala não foi diferente. Nenhum prédio, ponte ou construção ficou de pé à não ser a pirâmide tremular. Entramos. Não era como as outras. Lá dentro, alem das coisas super esquisitas, havia um colar de jade. Agri se emocionou e nos contou que este material vinha da China e disse que era uma grande incógnita tudo aquilo. De que forma o povo pré-histórico pode trazer esta pedra de tão longe? Estas construções, como poderiam resistir a tantos séculos? Porque só elas permaneceram intactas? Mistérios...
Mel também era misteriosa. Fascinantemente linda.
Peru, estávamos muito perto do Brasil e o forte inca, intacto. Na ilha de Páscoa a coisa era mais surpreendente. Estátuas de até vinte metros de altura, espalhadas por toda a ilha. Divinamente esculpidas pelos primatas. Primatas? A ilha não dispunha de rochas para faze-las, pior, eram rochas vulcânicas. Agri nos disse que estas estátuas pareciam robôs, que só esperavam o momento certo para entrar em funcionamento. E pareciam mesmo. Elas foram feitas fora dali, estátuas de pedra dura feito aço. Porque? Os deuses eram astronautas e, com certeza, bons artesãos. Sobrevoamos o que era, sem duvida nenhuma, um aeroporto. Um aeroporto pré-histórico em Nazca. Feito pra quem? Pra que? Segundo consta, o avião é uma descoberta recente. Mistérios. Os maias construíam estradas, mas não usavam rodas embora as conhecessem, porque? Mistérios.
- Quem quer ir pro Brasil levanta a mão. (era o Merk)
Não fomos ao Brasil e o Japão é fantástico!

































- Já escolheu o nome?
- Que nome Agri?
- O nome do seu filho, pôrra!
Nome?
- Nome cacete, toda criança tem um, panaca. Qual vai ser?
Nome, puxa um nome. Pensei tanto nisso, achei que quando chegasse a hora meu filho iria ter um super nome, um nome duca! Mas assim, de repente? Puxa, Renato, Emerson, Jorge, Willian, não, Willian é muito babaca. Anderson, Bruno, puxa.
- Manoel.
- Que???
Agri rachou o bico.
- Ah sei lá Agri, pô.
Puxa, um nome, eu precisava arranjar um nome praquele crioulinho de olhos claros que por acaso era meu filho. Nome? Pô, a gente precisava batizar o menino. Será que sobrou algum padre no mundo? E igreja? Religião? Deus? Será que Deus sobreviveu ao desastre?
- Abraão.
- Abraão?
- É!
-.-
Abraão já tava crescendo. E muito. Merk, num gesto simbólico, se auto declarou o chefe da gang e abriu os olhos do pessoal quanto a ser útil. Trabalhar, plantar, reconstruir, estas coisas, que senão a gente morria. Que diferença faz? Plantar passou a ser nossa diversão.





No Japão a coisa não foi muito diferente do resto do mundo, a não ser por um aspecto. Os abrigos anti-nucleares. passamos a morar que nem minhocas, em baixo da terra. Tatus. Comecei a colecionar calculadoras, nem sei bem porque, mas imaginei que um dia pudesse precisar. Sei lá.
Dez anos de Japão. Nenhum sinal de Propovisky. Nenhum sinal da nova... raça humana.
Abraão já tinha 11 anos, Marcos tinha 10 e era filho de Agri com Shirley. Jó era também filho de Shirley, mas com Merk. Maíra, a loira e por isso mesmo, a mais gostosa, teve nove filhos e já esperava o décimo. São eles os seguintes: Laia, João, Gil, Caetano (estes dois são meus) Mirka, Norka (estas também), Malba, Samuel e Davi. Todos os outros são de Merk. Deve ser enorme. Celma teve um único filho e com Merk, chamou-se Pedro, puxa, me emocionei. Sempre quis dar a luz, sei lá, coisa de herói.
Hiroshima é muito interessante, como é muito interessante Tóquio, mas o Japão não tem graça nenhuma sem os japoneses. Não mesmo.
Mel era uma verdadeira parasita. Vivia de plantar e de colher e de comer e de dormir. Mel não conversava com ninguém e ninguém se importava mais com isso, menos eu. Eu sempre me importo com tudo. Coisas de babaca profissional. Sempre me importei com as pessoas e elas nunca se importaram comigo.
Quando ela não estava fazendo nada, ela ia pras ruínas, onde estava jogada no chão, já fora de sua pedra, a placa que indicava o local da explosão da bomba de Hiroshima. Ela se sentava ali perto e escrevia. O que catso ela escrevia eu nunca soube e ninguém se importava de perguntar mesmo porque ela não se preocupava em esconder.
Agri, de todos nós, era o mais apegado aos filhos, talvez porque só tivesse um, o Marcos. Desde muito pequeno, Marcos já demonstrava muita inteligência. Eu olhava praquela cambada da... nova raça humana e só conseguia pensar numa coisa, numa música: "Sei que são caudalosas as correntes que regam céus, infernos, regam gentes, ainda que seja de noite..."
Agri agora contava mais historias do que nunca.




























Lembro que foi numa tarde. Numa tarde que chovia muito, mas não chuva forte. Chuva suave. Mel estava na nossa cabana improvisada perto das plantações. Sozinha. Aliás, era muito difícil encontra-la de outra maneira que não sozinha.
Eu me aproximei dela e falei quinhentas mil coisas, perguntei outras quinhentas mil e ela não falou nada, não respondeu nada. Cheu o saco!
- Pô menina, qual é? Você pensa que a vida é só isto? Porque você não se suicida? Acorda caramba! Que é que há?
Ela se enfezou.
- Não me enche cara! Você é um incapaz, você não presta pra nada, sai de perto de mim, você fede!
Gelei.
Não havia nada pior do que aquilo. Nada pior. Nem mesmo o mundo em ruínas. E ela era tão linda que saí fora pra não bater.
Já era noite daquele dia e como toda noite depois que a gente jantava, se reunia pra contar qualquer coisa. Quando não era o Agri, era o Merk que contava causos. Coincidentemente ou não, naquele dia eles ficaram calados. Não tinham o que contar e lá fora, lá em cima, entre as ruínas e as plantações, chovia. Eu resolvi falar, contar qualquer coisa, alguma pôrra. Eu tinha que falar. E falei.

-.-

Ele não era mal. Não, mal ele não era. Não era mesmo. Podia ser assim, meio esquisito, sei lá. Perverso às vezes, mas não mal.
Ele andava pelos cantos da casa, sim, ele andava muito. Não, ele não era bobo. Não, ele não sofria dos nervos. Talvez assim, um pouco impaciente, porque as coisas não estavam dando muito certo pra ele.
Não estavam dando muito certo porque ele era um moço bom, bom mesmo e trabalhador e responsável e honesto e.
Desempregado, assim tipo qualquer um. E ele ganhava bem, bom dinheiro mesmo. Tinha as coisas sempre sobrando em casa, mas engraçado, engraçado pra caramba é que tinha uma coisa que ele não tinha e que ninguém, ninguém mesmo, tinha à não ser uma pessoa e esta pessoa que tinha, nem aí com ele e olha que ele era legal, legal mesmo, legal até o ponto de começar a não ser legal. É, tá certo que não é legal deixar de ser legal, mas pô, ele só queria uma coisa de uma só pessoa e esta única pessoa não lhe dava e não era nada de pegar não, não era mesmo.
Era coisa de mexer, mas não com os dedos. Era coisa de mexer com os nervos, com a circulação, com os sentidos. Ele só queria carinho, mas o carinho é caro e ele tava desempregado. Chateado. Partido.
Todo tombo machuca. Tudo que é tombo se não esfola o joelho, dói por dentro. Por dentro da gente e a gente não é só feita de carne e osso. Não é não. Não mesmo! A gente é feito uma energia. Energia de 48 cromossomos. Energia esta que é um karma e karma é karma. Feito pra testar no limite da probabilidade da resistência dos 48 cromossomos, e como somos cromossomos persistentes. Persistentes mesmo. Bem persistentes. Gente é energia e esta energia passará e passará e passará, até dois cromossomos. E são muitos estágios. Alguns dizem que são vidas, outros que são apenas passagens. Eu digo que ele só precisava de carinho.
Sem isto ele foi ficando amargo, azedou. Limão mesmo. Sem sal, sem açúcar, sem afeto. Feto enorme arrancado pra vida. ambulante. Aborto ambulante. Embrião perdido. Perdido mesmo.
Amar é trocar de personalidades, gestos, corpos. O amor é um camaleão. Não há quem sobreviva sem o amor. O amor é motor. Corpo sem amor não funciona. Morto o motor, tomba o corpo. E todo tombo machuca, se não esfola o joelho, dói por dentro.
Não se diz certas coisas à um homem, por pior que ele seja. Por pior que ele seja, ele é um homem. Gente. Gente mesmo, como qualquer gente, por pior que possa ser o ser gente.
Não se diz à um homem que ele é incapaz, porque, por mais incapaz que ele seja, ele sentirá a ofensa. Por mais incapaz que ele seja, ele sente e se ele sente, ele não é incapaz, porque é capaz de sentir.
Não se diz à um homem que ele não presta pra nada, porque por mais que ele não preste pra nada, ele prestou pra nascer. Por mais que ele não preste pra nada, ele se segurou no corpo pra crescer e se ele vive, ele presta pra alguma coisa, no mínimo, ele presta pra si mesmo. Ele se basta.
Não se diz à um homem que ele fede, por mais que ele cheire mal, ele não é só carne e osso. Por mais que ele cheire mal, ele tem um perfume dentro dele. no mínimo ele cheira como você, porque o sangue que corre perfumado no seu corpo, é o mesmo que corre fedido no dele. É o mesmo.
Ah eu sei, como eu sei. Ele só precisava de carinho e levou foi tapa, pontapé e pontapé dói quando se espera por carinho. Quando se espera lá no chão que alguém lhe estenda a mão, no mínimo o dedo. Dedo de cafuné, não dedo de unha pintada ou dedo de apontar defeito...
Às vezes de tanto apontar defeito, o dedo apodrece. Mesmo, mesmo. Mas antes, um milhão de dedos apontarão o dedo que apontava defeitos. É um grande defeito pôr defeitos nos outros. Defeitão.
Minha historia não tem fim. Fim pra que? que fim pode ter uma historia sem carinho? Um homem sem carinho, que fim pode ter?






























Naquela noite peguei a Toyota (a gente tinha uma e se eu não contei é porque não tinha mesmo importância, em todo caso, contei agora) e fui pra praia ou pro porto, sei lá o que era aquilo. Peguei uma lancha, enchi tambores de água, tambores de combustível, subi na lancha e arranquei. Deu no saco! Se tiver que me foder, que eu me foda sozinho. A água viva ainda esta na fonte. Vou ver meu Brasil pacificamente pelo Pacifico.
Foram dias, meses, sei lá. Como posso saber? Tinha tanto relógio no Japão e eu não lembrei de pegar nenhum. Que diferença faz? Eu tava bem adiantado, mas pra que lado fica? Sem bússola ou mapa, era pura sorte, foi mais ou menos nesta altura da viagem que aconteceu.
Já tinha passado por barcos e mais barcos e eu já tinha trocado a lancha por um bonito iate. Era dia claro, mas o sol não era mais como era antigamente. Há muito eu não sentia calor. Deve ser o lance do ozônio, sei lá. De repente apareceu no meio do mar, aquele negocio horrível. Um enorme monstro. Um homem gigantesco. Deformado. Levantou das águas como se ele fosse o próprio mar. Fiquei mudo. Tentei desviar, mas o barco não obedecia aos controles, ia direto pra ele. Catei a metralhadora e comecei a atirar a esmo. Estava a poucos metros quando...
Desapareceu.
Desceu pras águas do mesmo jeito que tinha subido.
Terra a vista! Bem a tempo. O que seria aquilo meu Deus? será que era algum efeito da bomba? Se era, então deveriam existir mais, milhares de seres gigantescos espalhados pelos oceanos. Seriam os pescadores que haviam desaparecido?





































Eu estava na Austrália. Descobri por causa de alguns cangurus mortos e por causa do documento de identidade de um alemão morto, decomposto, de paletó e gravata. Thomas Verner era o nome dele. Bonito nome, prometo pensar nele se sair vivo daqui e fizer outro filho. Prometo!
De repente uma coisa estranha, uma casa. Uma casa enorme que pegava o que provavelmente deveria ter sido um quarteirão. Bela casa, pena que em todo lugar, tudo fedia carniça. Somos todos podres. Entrei.
Em frente a um aparelho de som chiando, havia um esqueleto que pelas roupas e cabelos deveria ser uma garota ou velha, difícil saber neste estado. Estas coisas deixaram de me impressionar, também depois de ter visto tantos...
Eu estava faminto, sem o que comer, na correria pela ilha, me esqueci de pegar os mantimentos do barco. No freezer tinha uns hamburgueres. Podres. Só que na hora da fome a gente perde estas frescuras. Azar do cuzinho, porque depois arde e dói a barriga. Dor de matar.
Não me preocupei em tirar o esqueleto, dava um certo charme na sala, quem sabe poderia ser uma linda garota. Pelo menos se fosse aquela das fotos que encontrei, ela era uma gatona. Gatona? Puxa lembrei da Carla... Xa pra lá.
Tirei seus sapatos e cortei seus cabelos horríveis. Deixei-a ali, em frente ao aparelho de som. Até que ela tinha bons discos e afinal, ainda tínhamos eletricidade, mesmo porque a casa tinha um imenso gerador. Imaginei que se a eletricidade terminasse, o gerador substituiria com enorme facilidade. Basbaquice.
Liguei o som. Lennon, era John Lennon que estava no prato: "Imagine all the peaple, living life in peace..."
Que viagem! Há quanto tempo eu não ouvia isto? 10, 20 anos? Hoje Lennon deve ser um santo, o que me deu uma outra idéia. O mundo era nosso, certo? Poderíamos fazer o que bem entendêssemos, certo? Pois então, já que o Agri era cheio de ser religioso e em conseqüência disto, haveria a tal da religião. Resolvi começar a criar os nossos santos. Santos que a gente conheceu. Nada de santos antigos que não fizeram parte de nosso mundo, os santos da nova... raça humana!
Lennon seria o primeiro. John Lennon, o santo da paz. Versículo Um, século Vinte e Um:
E ele subiu no palco que palco era uma enorme cama de lençóis brancos. E brancos e nus, ele e ela, jejuando dias, só a pão e água, fizeram um protesto pela paz mundial. Algum tempo depois ele falou ao mundo, ao seu povo, melhor. Ele falou aos povos do mundo "Você deve achar que eu sou um sonhador, mas preste atenção, eu não sou o único!" Depois as coisas sumiram, não ficaram ecoando como tinha de ser, na medida e na proporção exatas. Na porta de seu edifício, lá na garagem, um débil mental o matou a tiros. Bah... não tá certo, preciso escrever diferente, sei lá, encher de metáforas. Se a gente vai construir uma nova raça humana a gente precisa construir uma nova bíblia. Quanta bobagem! Nem acreditar em Deus, eu acredito, como é que eu vou escrever? O Agri é quem sabe contar as coisas mais claramente.
Naquela noite sonhei com o monstro do mar. Ele me atacava e eu fugia. Desesperadamente. Eu, o herói, fugia com medo de ser destroçado. Herói bicha.







Acordei assombrado com um barulho oco... O esqueleto tinha caído da cadeira e olha que já era dia, o esqueleto tinha sido bem bonzinho de não ter caído de madrugada, eu tava bastante cansado.
Lá fora fazia muito frio, muito frio mesmo e todos sabíamos que o clima da Austrália era bastante parecido com o do Brasil, acontece que há tempos, o sol não era benevolente com seu calor.
Pode ser ridículo o que vou dizer, mas se você acredita em coincidência, não vai achar. Foi só eu pôr os pés pra fora da casa e PLUM... A casa veio abaixo. Tipo assim, implosão. Ainda tentei salvar o esqueleto mas caí na real. Que é que tinha a ver aquele monte de ossos?
Eu tava era fodido. Fodido mesmo. Ou me arrancava dali pro navio e seguia viagem, ou ficava por ali. Das duas uma.
Das duas, uma me apavorava, outra com o tempo, me mataria. Que diferença faz? Mas eu gosto de minha vida, mesmo absurda como é, gosto dela e tinha feito a opção de seguir sozinho, mesmo porque tava me batendo a fome e comida nestas alturas, só tinha mesmo no barco. Lá fui eu. Peguei o que tinha, algumas sementes e voltei.
Resolvi ficar. Ainda me apavorava a imagem do monstro. Robson Crusoé, construí uma cabana ali mesmo, perto da casa, por causa da eletricidade.
Sempre fui romântico... Não ia deixar minha gatinha esquelética sozinha. Trouxe-a comigo, junto com alguns moveis. Fiz algumas adaptações e liguei o vídeo e o som. Dali em diante, matava o tempo pensando e plantando.
De longe me intrigava uns gemidos que ouvia. Será imaginação? Fruto do medo de um herói, herói bicha? Não sei, só sei que dormia com a metralhadora em baixo do braço, carregadinha.
Resolvi que não podia passar todo o tempo sem fazer nada de útil. Cético que sempre fui, resolvi eu mesmo, sem esperar o catso do Agri, escrever o novo livro dos livros, só que não se chamaria bíblia, por via das duvidas, claro, Deus poderia existir e também, a Alice iria gostar de minhas historias.

***
Um -
O Começo

Eu tenho a impressão de que não vou escrever uma historia bonita, sim, porque uma historia bonita já nasce pronta em algum lugar e a gente apenas serve de receptor; captamo-la de algum onde indefinido e ela toma forma de letrinha de máquina de gente que sabe ler, porque senão fica na cabeça e cabeça depois de algum tempo, esquece.
Esta historia começa lá neste lugar onde existem as historias bonitas, engraçado, as historias bonitas fazem a gente chorar, rir, ficar triste. Eu acho que historia bonita não deveria fazer ninguém chorar, pessoalmente, acho que historia bonita é pra fazer feliz, só.
Era uma vez uma erva. Erva que se chamava Daninha. Daninha de Danimar que era seu nome de nascida, porque as ervas também tem nome e também porque não tem nada a ver o nome dela. O fato é que esta erva de repente começou a se espalhar e o chão ficou cheio dela mesma que ela começou a crescer.
Como não havia quem a colhesse e também porque nem havia "quem" porque "quem" é gente e gente ainda não havia, ela começou a crescer, crescer, até esbarrar numa nave-filha desprendida de uma nave-mãe que tinha ido fazer almoço.
A nave-filha resolveu pousar em cima das ervas e diz-se que nunca mais foi encontrada pela nave-mãe que, alem de ter de comer todo o almoço, teve de se conformar coma ausência da filha.
Como uma nave só não faz verão, logo pousaram novas naves e no lugar onde haviam ervas, o barro só havia.
Contam que destas ervas, o astronauta da nave-filha (que era só um porque era muito pequena) fez um modelito à sua imagem e semelhança e o guardou. Mais tarde, quando já havia o povoado das naves, tiveram a idéia de soprar o boneco e este começou a se mover, como se saído debaixo da terra, ele começou a manifestar vida. Apavorados, os astronautas todos (que já estavam lá há uns seis dias) se mandaram.
Contam que o boneco, desgostoso de si mesmo, tentou o suicídio enfiando a ponta de uma tora na barriga, porem a ponta atravessou seu corpo e lhe saltou uma costela.
Dizem que ela começou a pular que nem peixe e de repente "puf": A costela virou um semelhante do boneco, que nesta altura estava muito mal.
Contam que este semelhante levou o boneco até o INAMPS do lugar. Deram-lhe umas injeções anti-tetânicas e tudo bem. Foi então que ele, o boneco, percebeu que o outro boneco era diferente, mais bonito, mais lisinho, então ele o chamou de ela e descobriram o feminino mas também descobriram o proibido.
Verdade seja dita. O boneco ao saber que ela era uma costela sua, ficou doidão, queria arrancar todas as outras. Dizem que foi uma luta para convence-lo a não fazer isto. Ela chegou a leva-lo à varias clinicas psiquiátricas mas o que o salvou mesmo foi a descoberta da maçã dela. Contam que primeiro foi ela quem descobriu a cobra dele e o resto foi uma loucura.
Ao saber da verdadeira anarquia que ocorria no lugar, a nave mãe (antiga nave filha que cresceu, casou, brotou, menopausou) desceu e esculhambou os dois. Mas foi um esculhambaço mesmo.
- Como é que vocês fazem isto comigo? Eu não falei que estas coisas eram proibidas?
- Puxa... mas é tão bom(disse o boneco)
- Você é um sem vergonha, e muito isto e muito aquilo e blá blá blá, enfim, vocês estão expulsos daqui. Vamos, chô, chô!
Que nem galinha...
Imagine como se sentiram os dois. Dizem que ele virou um alcoólatra irrecuperável e ela uma gorda feia que lavava pra fora pra sustentar os dois.
Ela não parava de lavar e ele não parava de beber e acariciar as costelas. Foi então que aconteceu... De dentro da barriga dela, saltou um ele pequenino. Os dois não sabiam o que fazer, afinal, ninguém explicou nada pra eles, mas com o tempo foram se acostumando.
Um dia deram um cachorro pro menino e quando o cachorro foi morde-lo, o pai lhe deu uma cacetada e o cachorro saiu correndo e berrando, caim, caim. Passaram-se alguns dias e o menino, talvez com saudades do animal, disse, caim, caim. Os pais acharam legal e chamaram o menino de Caim.
Foram vivendo felizes durante algum tempo. Contam que um dia (isto tarde da noite) ela percebeu que haviam acabado as pílulas, que também estavam fechadas as farmácias e fazia muito frio.
Bem, ela começou a engordar e ele voltou a beber (e acariciar as costelas). Quando estavam quase pedindo o divorcio (seria litigioso, ela não queria) então aconteceu de novo. Outro ele pequenino. Caim se irritou:
- Pôrra, com tanta costela, só sai menino!
Tudo voltou às mil maravilhas. Ele voltou a trabalhar no campo, ganhou muito dinheiro (ainda não haviam inventado a inflação nem o plano Real) comprou um bezerro e um bode. Deu o bode pro mais novo e o bezerro pro mais velho, só que o mais velho, um dia arrancou o bode do mais novo. Dizem que foi quando Caim estava dando uns tabefes no mais novo que o mais novo começou a chorar pelo bode: Bel, ai, bel...
Os pais gostaram e chamaram-no Abel.
Os anos passaram e os dois foram crescendo. Enquanto Caim trabalhava com o pai nos campos, Abel, belo e formoso, fazia computação. Caim, feio e troncudo, arranjou uma namorada que quando conheceu Abel quis fazer um programa, mas Abel já havia desligado o computador, estava cansado. A moça tentou explicar o programa, Abel não deu atenção, não era muito chegado.
As semanas foram passando e a moça era que nem carrapato, não desgrudava do Abel, este, por sua vez, que ninguém é de ferro, desceu o braço na moça mas para o azar dele, Caim chegou e quando viu que Abel batia na moça, correu pra casa, pegou a metralhadora que roubara enquanto servia o exercito e crivou Abel de balas.
Apavorado, Caim correu para os campos. No alto dos infinitos, a nave mãe que a tudo vê, desceu imediatamente até onde estava Caim e o amaldiçoou para todo o sempre.
Bem, aquela família não tinha mesmo jeito, depois do velório de Abel, tudo mudou.
Os dois pararam de usar as tabelinhas e tiveram muitos e muitos filhos. Com tanta gente pra sustentar não tinham como pagar o aluguel e acabaram sendo despejados. Só não morreram de fome porque gostavam de roer unha. Ela, invocada com a miséria, um dia chamou ele na chincha:
- Ô meu, vê se te toca e arranja um emprego!
Pra que... Ele invocou e sentou a mão na orelha dela. Foi aí que ele percebeu que gostava de bater e meteu a mão em todos os filhos e nos vizinhos e...
Foi ser lutador de boxe, nas horas vagas lutava luta livre. Foram vivendo felizes por quase toda uma semana, apesar de terem de levantar cedo pra pegar fila na padaria (haviam acabado de inventar a inflação).

















Um bom jeito de passar o tempo e mais a mais a Alice gostava. Eu não contei? É que uma garota assim, sozinha, num mundo perdido e cheio de ruínas, só poderia ser a Alice e eu, seu coelho contador de historias.

-.-
Dois - A Roda

Estamos algumas gerações a frente, exatamente num palanque (que palanque era uma pedra
grande) em meio a um discurso de políticos que eram candidatos à prefeitura do lugar que agora era mais desenvolvido, já tinha até Mc Donald e posto Shell.
Eram dois os candidatos: Stroinamix e Gasturanomix.
Stroinamix havia inventado o fogo e consequentemente o palitão de fosforo o que, convenhamos, era bastante incomodo que a caixa era outro palitão. Ele era do PMDBV (Partido do Modo Demagogo do Bem Viver).
Gasturanomix havia inventado a escrita ou o desenho falado da escrita e era do PDS - Partido Destruidor Senvergonha-
Fala de Stroinamix:
- Nosso partido está engajado seriamente no intuito de resolver os problemas que a nação precisa resolver e portanto, contudo, entretanto (nesta época já havia embromação) estamos aqui reunidos pra nossa campanha degolar, digo, decolar com vocês!
Fala de Gasturanomix:
- O caro candidato não tem moral para dizer que vai resolver os seus problemas porque tem escravos de quatro anos de idade em suas fazendas, está aqui as fotografias (disse, mostrando desenhos na pedra).
- O senhor é um sem vergonha (disse Stroinamix)
- O senhor é que é (responde Gasturanomix).
Nesta altura do debate, bem de baixo nível, eis que surge na multidão, Collorjetmix, o candidato do PT (Partido Terrorista) numa carroça. Havia acabado de inventar a roda.
Resumo: Collorjetmix (descendente de Caim) venceu as eleições e foi assim, pelo menos é o que contam, que foi inventada a roda.

 
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