As coisas acontecem porque acontecem. Não é nada agradável ter de
concordar com isto. Sempre achei mais fácil concordar, apesar de discordar com
as coisas que concordo facilmente. As coisas acontecem porque acontecem e
pronto.
Nem todo começo me anima. Geralmente o começo das coisas frustra, intimida,
amedronta. Mas é um começo e é sempre mais fácil concordar com o que ele
ensina. Sempre aprendi com facilidade. A facilidade nem sempre é boa.
Não acredito em coincidência. Acredito que existe algo muito maior coordenando
o imponderável.
As pessoas se conhecem porque se conhecem e pronto? Ou as pessoas são
predispostas previamente num enredo? Há o fortuito ou há a fatalidade?
Não aprendi o lado pratico da vida, como, trocar fusível, comprar
transformador, rebocar parede, etc. Acho pouco pratico o lado pratico da vida, a
não ser pelo fato de que é muito mais fácil cozinhar miojo que feijão, até
porque, jamais aprenderia a cozinhar feijão.
As coisas acontecem porque, de alguma forma, precisam acontecer do jeito e no
momento que acontecem.
De repente você passa por uma curiosa situação atemporal que o faz pensar que
você já esteve neste lugar, nesta mesma cena, com este mesmo clima e mesmas
pessoas. Você só não entende porque este instante voltou ou quando foi
exatamente que ele ocorreu. Não é assim? Existem algumas explicações que
não vem ao caso; o que realmente incomoda é a memória de algo que ainda está
pra acontecer. Não há como antecipar o que passou, simplesmente as coisas se
acomodam porque as colocamos ali e de uma maneira ou de outra, elas vão se
manifestar.
-.-
Meu primeiro contato com o futuro não foi via Internet ou coisa que o valha.
Foi numa tarde em que havia tido uma grave discussão e resolvera sair da casa
de meus pais. Chovia muito e eu culpava a Deus o fato de chover, como o culpava
por tudo que naquele dia houvesse de errado.
- Minha casa não é pensão Pedrinho!
- Mas é só por uma noite...
Com o Agri nunca fora fácil. Ele era uma pessoa de convivência complicada e
sempre fico imaginando como consegui me relacionar com uma pessoa tão diferente
de mim. Acho que o futuro dispõe de excelentes paginadores.
Fiquei na calçada, em frente a casa dele.
Como faz frio nesta época do ano...
- Desculpe Pedrinho, eu ando meio estressado, mas você sabe como eu sou. Não
deixo ninguém entrar em casa, mas vou ficar aqui fora com você.
- Grande solidariedade, não? (rebati)
- Grande folga, não? (devolveu)
Trouxe consigo uma garrafa de pinga. Detesto pinga e ele sabia disto. Faz muito
frio nesta época do ano... O gosto é terrível mas ajudou muito.
Ele estava tenso. Havia algo errado acontecendo e eu percebi. De repente
começou a me contar uma história estranha sobre, segundo ele, um cientista
maluco que havia inventado uma arma que tinha a capacidade de exterminar a raça
humana sem afetar as construções. Ponderei que já tinha ouvido falar sobre
isto e...
- Deixe de seu besta, Pedrinho. Eu nem acabei de falar, caramba!
É, realmente ele estava nervoso.
A novidade era que após a detonação um gás mortal penetraria o corpo das
pessoas e elas simplesmente desapareceriam. Não ficaria nem cheiro, nem dente,
nem corpo. Nem alma?
- Nossa Agri, isto é muito perigoso. Porque este sujeito lhe contou isto?
- Não sei e é exatamente isto que me preocupa.
- Como? Ele lhe contou isto a toa?
- Não é bem assim. Vamos até o sótão que eu lhe conto o resto.
A casa do Agri era uma verdadeira bagunça, mas o sótão... Aquilo brilhava
mais que azulejo de dona de casa prendada. Ali havia de tudo. Tubos de ensaio,
livros de química, física, matemágica e discos. Discos demais. De Mozart à
Xororó.
Tudo começa quando Agri e Mel foram acampar. Mel era uma garota que o Agri
tinha o péssimo hábito de chamar de vaquinha, mas não era nada disto, eles
apenas saiam as vezes e iam acampar, preferencialmente em praias desertas onde
pudessem ficar, como diária Mel, nus em pelo.
Estavam dentro da barraca quando repentinamente alguém a abre. Mel tenta se
cobrir. Agri, meio macho, meio não, nada disse. Convenhamos, não dá pra dizer
muita coisa para um sujeito três maior que a gente que, simplesmente ergue a
barraca e diz: SE MANDA SENÃO A BARRA VAI PESAR!
Era muito tarde. Agri não teve como argumentar, afinal, o cara deveria ser
mesmo grande, porque o Agri era enorme.
Arrumaram as coisas e começaram a sair.
- A GAROTA NÃO!
Danou-se. Agri ainda tentou dissuadi-lo e levou um tiro na mochila. Bye, bye
garrafa térmica.
Saiu correndo.
No alto de uma das rochas do lugar, havia uma luz muito intensa. Estava escuro e
Agri tinha, como vantagem, o fato de estar usando aquela roupa de couro preto
que eu tanto invejava. Roupa de motoqueiro. Foi então em direção a luz e
notou ao longe que o grandalhão também se encaminhava para lá com Mel
pendurada no ombro. Teria matado a menina? O que será que fez à ela?
Agri escondeu-se e aguardou que ele subisse e entrasse naquilo. Quando Agri
subiu não havia mais indicio da luz ou coisa parecida. Ficou um bom tempo
rastreando a rocha até que começou a ouvir alguns ruídos, foi se sintonizando
até onde o barulho aumentava, então usou o truque de minha mãe quando quer
ouvir briga de vizinho. Pegou um copo, virou a boca para a rocha e colocou o
ouvido no fundo:
Uma voz metálica e estranha, falou pra uma voz baixa e submissa que aquele não
era exatamente o tipo de mulher que precisava para sua experiência. A voz mais
baixa contou a respeito do Agri e a voz metálica lhe disse que este sim, seria
ideal para uma outra experiência que aquela voz submissa já sabia qual. Foi
então que a voz submissa teve a feliz idéia de matar nossa curiosidade
perguntando o que ele deveria fazer com a mulher que era a Mel.
Agri não ouviu a resposta, nem ouviu mais nada, só um zumbido enquanto
acordava numa sala estranha, cheia de aparelhos eletrônicos. Porém, ele não
estava preso, levantou e tentou sair, mas a porta dava acesso à outra sala.
Mel...
Ela estava sentada de olhos arregalados, mas não via nada. Agri ainda sentia
fortes dores de cabeça. Chacoalhou Mel e nada, ela nem se movia. Nisso o
grandão entra na sala acompanhado de um nanico de voz metálica.
- Olá rapaz! (era o nanico)
- (Agri não respondeu)
- Retire-se Merk, eu cuido disto.
O Grandão se arrancou resmungando.
- Sabia que é feio ficar escutando pelas paredes menino?
- Sabia que é feio raptar os outros nanico?
- Cuidado com a língua rapaz. Quer tirar a diferença?
Agri não sabia o que fazer.
- Venha. Pode vir. Me dê um murro!
Agri se aproximou.
- Bata vamos, bata no meu rosto com força!
Agri vacilou. Será que ele é masoquista?
- Estou mandando me dar um murro!
Agri não deu um murro. Deu vários. O nanico nem se moveu, nem saiu do lugar,
nem nada e olha que o Agri é bem grande. Passaram-se uns quinze segundos e o
Agri teve uma espécie de choque de 220 volts no corpo todo, sem encostar-se a
lugar algum.
O nanico estourou de rir.
- Já vi que você não é muito crente daquele historia de que tamanho não é
documento.
O nanico chamava-se Propovisky e era mesmo russo só que não tinha sotaque
nenhum, o que já era bem estranho. Mel estava em estado de choque.
- Porque? (perguntou Agri)
- Porque nós colocamos em seu cérebro milhares de informações sobre a
ciência moderna. Dentro de algumas horas, quando ela acordar do transe, sem que
perceba, estará dominando boa parte da ciência humana.
- E para que isto?
- Porque a partir de agora ela nos auxiliará em nossas experiências.
- Que experiências?
- Extermínio da raça humana atual. Através dela formaremos uma nova espécie,
uma nova raça humana.
- Noé nanico?
- É. Você é atrevido, mas não é burro. Noé sim, mas sem animais
irracionais. Somente gente e muito pouca gente.
- O que vocês pretendem fazer comigo?
- Por enquanto nada.
Agri ficou dias lá e ninguém deu por falta dele porque não tinha ninguém pra
dar por falta dele e também porque ele ficava mesmo muitos dias quando
acampava.
Mel não voltou com ele. Ficara com Propovisky, o russo nanico.
- E que papo é este da bomba Agri? (perguntei confuso)
- Cientificamente é o único método de extermínio coletivo sem causar danos
ao resto. Eu suponho que ela já esteja pronta.
- Mas como supõe? Você me disse que...
- Eu não disse nada, ele é quem me disse sobre a bomba.
E o nanico também disse ao Agri que ele só deveria dizer isto a mais uma
pessoa e esta pessoa a quem ele dissesse, passaria a fazer parte do bolo de
sobreviventes, digamos assim.
- Logo eu?
-.-
Uma vez um cara achou que tinha que mudar o mundo, que mundo que é mundo
tinha de ter muita árvore e que árvore que é árvore tem de ter muita água
pra regar. Então ele começou a furar o asfalto que asfalto é que estraga o
mundo e nos buracos que ele furava de madrugada, plantava sementes de árvores.
Baobás, coqueiros, laranjeiras, etc. Só que as sementes nem chegavam a crescer
e tapavam os buracos.
Ele se encheu daquilo e ficou de tocaia para ver quem é que tapava os buracos.
Viu que era caminhão de prefeitura e prefeitura é lei e lei é lei. Foi à
lei.
"Entrada Proibida". Entrou mesmo assim que afinal a causa era justa e
era justo que a justiça o ouvisse que estavam cometendo crimes contra a
natureza e natureza é lei divina e lei é lei. Mas a lei não o ouviu. A lei
estava ocupada demais com os papéis e a gente sabe que papéis vem dos troncos
das árvores e sem árvores nem papéis, não há lei e, pombas, lei é lei.
Ele não plantou mais árvores, porque se elas crescessem mesmo contra a vontade
da lei, eles às cortariam para encher as mesas da lei de papel. Comprou um
vídeo game porque ele achava gostoso matar o tempo matando a lei no jogo de
vídeo game e não é tão gostoso matar a lei fora do vídeo e ele foi preso.
Ele e suas sementes.
Ele encheu o pátio do presídio com suas sementinhas e pátio de presídio com
árvores crescendo a gente sabe que é esquisito e é esquisito quando a gente
sabe que é preso que está plantando e eles sempre acham que é pra fugir e a
borracha da lei dói que lombo de gente não é igual a lombo de cavalo e fica
vermelho e machucado e a gente sabe que gente não é pra ficar pendurada num
pau com mãos e pés amarrados não dá pra coçar e coçar é fogo quando quem
coça é arame pontudo que dá choque forte num corpo com água gelada igual de
geladeira e a gente sabe que carne de gente não é que nem de açougue que fica
no freezer e a gente sabe que é ruim ficar na gaveta do IML que nem indigente
quando não é e ninguém é porque todo mundo tem nome e ele também tinha um e
não se sabe qual, mas se sabe que só queria mudar o mundo, pra melhor. Pra
melhor?
-.-
- Afinal, o que isto tem a ver? (perguntei ao Agri)
- É o que eu queria saber...
Nem tudo acontece por acaso. Nem tudo. Não teria a menor graça. Porque eu?
E porque não?
***
Propovisky era realmente nanico, só que fiquei na dúvida se era mesmo
russo. Sabe como é né? Difícil de acreditar que alguém seja mesmo russo se
este alguém não fala enrolado, tropeçando nas letras, trocando o feminino
pelo masculino das palavras, sei lá, é difícil. Nem tudo acontece por acaso.
Já o seu guardião... Um brutamontes. Músculos grandes e brilhantes, peito
estufado pra fora como se fizesse sempre força. Coxas largas e grossas, mão
grande. Lábios grossos e carnudos.
Já senti tesão por outros homens, o que não me torna menos homem do que eles.
O Agri, por exemplo, era o tipo de homem que me dava esta sensação, digamos
assim, constrangedora. Nem tudo acontece por acaso...
Mel estava estranha. Os olhos arregalados, sempre arregalados. Não vi Mel
piscar uma única vez aquele dia. Todo tempo ela ficava ao lado do nanico, este
ficava me observando. Agri e o brutamontes trocavam confidencias num canto.
Falavam de mim? Sei lá. Só sei que falavam e riam baixinho, o Agri não era de
tirar uma, mas de repente, sei não, ele estava meio esquisito. Todos estavam
esquisitos. Sem mais nem menos começaram a rir de mim ou para mim, que droga.
Será que eu to boiando? Devo rir? E ri, o que só piorou as coisas. Agora eles
estavam era gargalhando. Que merda. Agri se aproximou, ainda rindo muito, deu um
tapa na minha bunda e disse:
- Quer um tapinha?
Coisa idiota.
- Deixa de ser besta Agri, olha o seu tamanho e o meu, cai fora.
Pra que eu disse aquilo. Parece que eu havia contado a melhor piada do mundo.
Alguém devia ter peidado é isso, eles estão pensando que foi o babaca aqui,
só pode ser, tava um baita cheiro estranho no ar.
- NÃO FUI EU QUEM PEIDOU NÃO!!!
Piorou, tudo o que eu falava piorava mais a situação.
Com muito custo e molhado de tanto rir, Agri encostou-se a mim:
- Eu estou falando de maconha, babaca. Perguntei se você quer dar um tapa, um
trago, entendeu?
- Ah, brigado, cê sabe que eu não fumo.
Estouraram de rir.
Meio constrangido, meio retardado, meio sem personalidade nenhuma. Dei um
"tapa" pra parar toda aquela gozação. Não adiantou nada. Tossi
feito um asmático.
Com o tempo a gente se acostuma com o gosto. Não é tão ruim assim, tem um
cheirinho meio ruim, mas é interessante e o que eu mais precisava por ali era
relaxar...
Minha mãe e meu pai devem estar preocupados comigo (pensei), mas e daí? Eles
não são donos de minha vida, ninguém é dono de vida, eles são o meio pra
vida, só. Eu estou bem crescidinho pra fazer as minhas burradas sozinho.
- Pedrinho, como é que você se sente fazendo parte de uma nova civilização?
(era o nanico)
- Cansado.
O nanico russo sem sotaque não gostou muito da resposta, mas eu estava cansado
mesmo, afinal a rocha é muito alta e eu me canso muito facilmente.
- Agripino, você tem certeza de que este espécime é mesmo ideal?
O Agri fez cara feia, ele detestava ser chamado pelo nome e eu detestava quando
alguém me chamava de fulano ou sujeito e agora esta; "espécime".
- Não sei Propovisky, pelo menos ele é de confiança.
Mel intercedeu:
- O Pedrinho é perfeito Propovisky, é inteligente, só é desligado, mas isto
é fácil de dar um jeito. Ele deve estar mesmo cansado, ele não é muito de
fazer exercício e a rocha é bem alta (não falei!) mas daqui pra frente tudo
vai ser diferente (já ouvi isto) ele vai fazer bastante exercício sem
perceber.
Puxa, eu não sabia que a Mel sabia tanto a meu respeito. Ela acabou de falar
e... tchan, tchan, tchan, tchan: Apareceram quatro gatas. Uma morenaça, uma
loiríssima, uma bela branquela e uma crioula. Sou tarado por crioula. Pediram
pra escolher e a escolhi.
Acabara de entender o que Mel queria dizer com exercício sem perceber.
Putaqueopariu como aquela crioula transava! Já estava exausto quando ela saiu
de meu quarto (uma espécie de caixinha de computador), mal saiu a crioula e
entrou a loira. Não precisa nem dizer que eu brochei né? Só que a loirinha
sabia como levantar um moral... Foi uma tortura incontrolável. Depois entraram
a morena e a branquela. Desmaiei.
Acontece que as coisas são tão simples e...
- O que lhe preocupa Pedrinho?
- Sei lá Agri. Acho que eu sou muito novo pra ter filhos. Estas coisas. Nem
tenho um emprego... Como é que eu vou fazer no natal pra comprar presentes? Eu
não sou muito responsável, não sei se estou de acordo. Não tive tempo de
pensar a respeito.
- Acontece que as coisas não são tão simples.
Era um ladrão de frases.
-.-
Acontece que o cara já estava de saco cheio daquele lugar que tinha depois
da morte que morte a gente sabe que é descanso que não tinha nada a ver aquela
zorra toda e também nunca tinham dito a ele que não fazia sol e nem imaginava
que iria escutar tanto gemido e grito e gente chamando o nome dele. Já tava de
saco cheio.
Então ele começou a andar pelo lugar escuro e sem lanterna e mesmo que tivesse
não tinha padaria nem boteco nem mercado pra comprar pilha. Daí ele viu um
monte de monte de gente espalhada pelo chão, melequentas, remelentas, velhos
homens magros, mulheres pálidas vestidas de preto e rindo. Crianças mutiladas
pedindo socorro e ele não tava nem de carro nem no farol de avenida e também
não tinha avenida. Nem carro e sem lanterna.
Cansou. Nunca disseram a ele que se cansaria depois da morte que morte não
deveria ter destas coisas de vida, ele já tinha se cansado muito quando estava
vivo. Até com a vida ele se cansou muitas vezes. É tremendamente monótono
agora, se cansar com a morte. Não faz nenhum sentido. Foi ai que uma mão
pálida e grande, de veias azuladas, saltou da terra e segurou sua perna. Ele
gritou tão alto que seu próprio corpo, já em estado de decomposição, teve
ligeiras contrações. Fez força para soltar-se que deve ser bem desagradável
uma mão de baixo da terra segurar a perna da gente e também de medo e então
ele chutou com o outro pé e a mão se desprendeu com braço e tudo. Mas ficou
presa na perna. Que terrível!!!
Estava cansado, claro, mas correu pra caramba e só parou porque viu uma luz e
isto sim tinham lhe contado, luz era uma boa mesmo na morte e principalmente
nela. Era uma velha de vela na mão e toda de branco que branco também era uma
boa, mesmo na morte e principalmente nela. Procurou pelas asas. Não era anjo. A
velha tocou seu rosto e suas mãos eram frias, mas o rosto era conhecido. Sua
velha mãe.
Acontece que as coisas não são tão simples e ele foi ter com outra mãe numa
bolsa de carne que explodiria até lhe dar um novo nome de uma nova vida. Era
sua filha. As coisas simples não têm graça nenhuma.
-.-
- Que catso é isto?
Eu nunca entendia as historias do Agri.
- Sei lá. Pensei que você soubesse.
Nem ele. Ou será que ele tirava um sarro da minha cara?
Merk, o grandão, estava eufórico naquele dia. Era esquisito, eu sabia que não
tinha coca. Propovisky estava tenso, suava frio. Mel estava atraente, quer
dizer, alegre. As quatro gatas, bem, as quatro gatas não conviviam conosco.
Ficavam confinadas em algum canto e só apareciam pra umas trepadinhas. O que
estaria acontecendo?
- Não sei Pedro, porra, não sei.
Agri tava nervoso. Não me lembro de ter me chamado de Pedro alguma outra vez.
Naquele dia, as donas de casa do mundo não foram comprar pão nem leite, as
crianças não pediram chocolate e as padarias não abriram. Ninguém foi
abastecer porque não tinha ninguém pra pôr gasolina, nem carro. Nenhum casal
apavorado pra fazer amor saiu para ir ao motel. Nenhuma emissora de TV entrou no
ar. Nenhuma noticia saiu, porque não saiu nenhum jornal, nenhuma banca abriu.
O padre não rezou a missa e nenhuma estátua de gesso de nenhuma igreja do
mundo se incomodou. Ninguém se preocupou em ver o resultado do vestibular, da
federal, da esportiva, mega sena, loto, bicho. Os meninos da FEBEM não fugiram.
Os negros do Harlem não deram uma bola. Os esqueletos humanos da Etiópia não
pensaram em comida, nem em ajuda. O bispo Tutu não pregou a igualdade das
raças. Stevie Wonder não declarou seu amor cego à raça humana pelos brailes
da vida. Os guardas da rainha não se preocuparam em ficar por lá. Ninguém
jogou vídeo game em Tokyo. Não havia casais românticos em Veneza. O Reno
continuou apodrecendo. Coimbra não fez poesia. Nenhuma garrafa de Whisky foi
aberta na Escócia. Alguma coisa tinha saído errada.
Quatro homens, cinco mulheres e a construção de uma nova raça humana. Para
viver num mundo vazio. Mundo ou ruína?
Alguma coisa não tinha dado certo.
Nossa rocha estava submersa. Propovisky não estava bem, estava pálido. Mel
chorava. Alguma coisa...
Não tínhamos barco, nem bóias, nem nada e estávamos muito abaixo do
nível do mar. O que teria acontecido?
Propovisky improvisou um barco de borracha e um motor.
Emergimos.
Agri, Merk, eu e Propovisky. As garotas ficaram na montanha. Eletricidade.
Tínhamos toda a eletricidade disponível no mar, mas isto não interessava,
pelo menos era o que menos importava naquele momento. Queríamos apenas testar o
tal barco. Era pequeno, mas fundo. As bordas eram verdadeiros muros de borracha
e corria muito, o motor que o nanico improvisara era bastante potente.
Colocamos uma pequena bóia presa ao cume da montanha para no caso de nos
perdermos. O que o Merk tinha de grande, o nanico tinha de inteligência. Massa
cefálica.
Navegamos durante horas em torno da montanha. Nada. Não víamos uma ilha sequer
de pé. Haveria peixes? Alguma coisa não havia dado certo, com certeza.
Submergimos.
A montanha parecia ter afundado mais ou o mar subido mais. Que está
acontecendo?
Propovisky estava em silencio. Há horas que ele estava em silencio e eu estava
de saco cheio do silencio dele.
- O que aconteceu mestre?
Era o Merk.
Propovisky nada respondeu, apenas se enfiou numa das salas de computador e
trancou-se lá.
- E se ele se suicidar?
Eu e minhas teorias.
- Ele não faria isto.
Agri estava confiante.
- Ele está como no dia em que nos conhecemos... (Merk estava apreensivo)
- Como foi? (minha curiosidade um dia me mata)
- Foi aqui mesmo na praia. Eu tinha escapado da Ilha Grande e deveria ir pra
Angra. Matei o companheiro do barco, o Negativo. Até hoje sinto remorso por
isto. Ele é que arranjou tudo, sei lá, era ele ou eu. Eu sabia que se fosse
para Angra iria começar tudo outra vez. Tentei convencer o Negativo a mudar de
rumo, ele não me ouviu, brigamos. Ele me ameaçou... Furei a cabeça dele com
uma pequena âncora e depois joguei o corpo dele no mar. Então vim para cá.
- O Negativo era preto?
Eu e minha perguntas idiotas nas horas idiotas.
- E como foi que você entrou em contato com Propovisky?
Perguntou Agri me olhando com cara de quem não gostou de minha pergunta nem eu
do olhar dele.
- Lá de longe, ainda navegando, já dava para ver uma luz alaranjada piscando
por aqui. Parei a lancha na praia e vim em direção à luz. Era uma gruta e eu
achei estranho que quando eu cheguei há alguns passos a coisa sumiu. Fiquei
escondido e então apareceu o Propovisky. Assustei-me, sei lá, tinha acabado de
sair da prisão. Descarreguei o tambor nele. Ele nem se moveu, só me olhou e
disse muito calmamente: "Entre".Não sei o que senti quando vi este
emaranhado de fios, luzes e aparelhos, mas sabia que estava protegido. Ele foi
legal comigo. A única pessoa que me entendeu neste mundo nojento. Sempre me
respeitou, nunca me cobrou nada. Eu nunca tive ninguém que se preocupasse
comigo e isto faz falta. Não tive pai nem mãe ou nome, só este nome de guerra
que um panaca lá da Funabem me deu. O Propovisky me salvou, eu o tenho como
mãe e pai e irmão, amigo, sei lá.
- E como começou a historia da nova raça?
Agri também era curioso.
- Faz tempo, muito tempo... Qualquer dia eu conto.
Olhei bem pra ele, no fundo dos olhos, lá dentro. Cheguei bem pertinho e não
tive duvidas:
- O Negativo era preto?
Agri me deu um chute na bunda. Puxa era importante pra mim, sei lá.
Ficamos dias ali, naquela agonia. Propovisky só se retirava da sala se
precisasse de algum componente eletrônico. Não sabíamos o que fazia ou se
fazia qualquer coisa.
Já estávamos todos entrosados, parecíamos de fato, uma família. Uma família
alegre e feliz da vida. Porque? Nem nós sabíamos direito. Quem dava as ordens
era o Merk, absurdas, tipo: "Pedrinho, hoje é você quem lava as
louças". E olhe que éramos quatro rapazes e cinco moças. Ele não tinha
muita inteligência, mas tinha músculos, muitos músculos e também, eu não
sou muito de discutir.
Agri foi nomeado o chefe das garotas. Tive inveja, aliás, eu sempre tive muita
inveja do Agri.
Mel estava desconsolada e aos poucos perdia a cor. Pálida e linda. Eu gostava
daquela menina, mas ela sempre arrastou um monte pro Agri. Nunca tive chance e
agora, o nanico maluco. É, eu sempre tive muita inveja.
O Agri continuou meu amigo, mesmo porque não tinha porque não ser. Dava ordens
pras meninas dormirem comigo. O Agri era legal.
-.-
Uma vez um cara apareceu num lugar e estava muito triste e não é bom estar
muito triste. Alguém então perguntou a ele porque ele estava triste e ele
respondeu que procurava a verdade. Este alguém deu de ombros que a gente sabe
que verdade não se pega e se não se pega não se tem e se não se tem não se
perde e se não se perde não se procura.
Ele foi ficando cada vez mais triste porque ninguém sabia dizer a ele onde
estava a verdade. Nem o soldado romano que dizia que a verdade era de César,
nem César que era um grande mentiroso e nem César se chamava.
Buscou a verdade na mesa de poker e a verdade é que ele tava duro e fez um
strit, o outro fez um royal e ele fez um strip...
Só de manto e só no mundo, ele esqueceu o que procurava e procurou se lembrar
o que esquecera se esquecendo de beber que bebida a gente sabe que dá amnésia
e amnésia é duca quando a gente quer lembrar.
Foi ficando velho, muito velho, velho mesmo e não mais se lembrou do que queria
procurar. Agora ele queria achar um caminho. Um caminho que quando passasse
recobrasse a vida e a vida da memória que o passar dos anos escondeu.
Foi então que ele ficou alegre e alguém perguntou porque ele tava alegre e ele
falou que descobriu o que procurava lembrar e este alguém perguntou o que é
que ele encontrou e ele disse que encontrou o que esquecera que era de sua
busca. E que busca é esta? Perguntou este alguém e ele disse: Eu procuro a
verdade! Você a encontrou? Perguntou. E ele ficou triste de novo. Lembrou do
que esquecera mas esqueceu que era difícil encontrar, este outro alguém, deu
de ombros também.
Em Canaã, nas margens do grande rio, ele se sentou e chorou. Chorou porque tava
velho e velhice a gente sabe que é ruim quando a gente sabe que não quer
morrer sem pelo menos encontrar o que procura e ser um pouco feliz, então,
alguém estranho apareceu e disse a ele: O que procura meu senhor? Procuro a
verdade, disse ao estranho. Este olhou para ele, já cabisbaixo, e lhe disse:
Anima-te, você a encontrou! O velho espiou e este alguém estranho, sorrindo,
lhe disse: Eu sou a verdade, o caminho e a vida.
O velho chorou, mas foi choro de felicidade que choro de felicidade a gente sabe
que é diferente. E eles caminharam juntos pelas margens do grande rio. Já era
tarde da noite quando pode se ver que o estranho iluminava e pode se notar que
ambos agora levitavam e desapareciam.
-.-
- Esta eu gostei Agri. Mas o que tem a ver?
- Acho que estou comovido e que a gente não pode esquecer destas coisas. Temos
filhos pra colocar no mundo e não queremos um mundo como era, não é verdade?
Estávamos bem adiantados no oceano Atlântico. Propovisky construiu um barco
enorme, não esquecendo nenhum detalhe para o nosso conforto. Até vídeo game
tinha, com jogos que ele mesmo criou. Genial!
Minha relação com Laia, a crioula, já era bem profunda. Dei graças ao Senhor
pelo russo não ser racista. Ela era demais e estava radiante porque finalmente
iria conhecer a África. Era para lá que íamos.
Nenhum barco sobre o oceano, nada de terra a vista. Nada. Tínhamos suprimentos
para pelo menos mais um mês, mas o que nos amedrontava era a possibilidade de
não ter ficado nada sobre as águas. Propovisky não estava preocupado. Deveria
ter suas razões. Será que minha mãe e meu pai morreram afogados?
Agri tava ficando mais tempo com a Maíra, a loirissima1 Merk se divertia entre
a morena e a branquela. Ele tinha pra isso, deveria ser enorme...
Laia me contou sua vida. Cresceu sem muitas expectativas. Queria ser modelo,
acabou sendo modelo na vida. Imagine, eu, tão preconceituoso, ligado numa
prostituta.
Supus que as outras também eram prostitutas, sei lá, estavam lá só para
aquilo. Me enganei.
Maíra era bióloga, Shirley (a branquela) era socióloga e Celma (a morena)
era, também era puta, só que de executivo. Todas conheceram o nanico do mesmo
jeito que nós. Na praia.
Como faz calor nesta época do ano. Mel estava de maiô. Como ela é... Cha pra
lá.
Opa. Uma pontinha de qualquer coisa a estibordo. Terra a vista?
Era um transatlântico. Absolutamente vazio. Não havia ninguém, nenhuma
alma viva.
- Deu certo! Deu certo! (gritava Merk)
Propovisky continuava frio e quieto.
Era enorme. Pegamos alguns dos suprimentos na cozinha e enchemos um saco com
vinho e cerveja.
Propovisky continuava quieto. E frio.
Continuamos o rumo, mais alguns navios, barcos de pesca com varas penduradas,
mas nada de gente. Deu certo.
Propovisky continuava frio. E quieto.
Sulafricalérgica. Paramos no que parecia ser um porto. Mangue. Arvores e matas.
Seríamos bandeirantes? Sei lá. Só sei que estava cansado do mar e do cheiro
de vomitado que a Shirley tinha deixado no barcão. Ela enjoou a viagem todinha.
- Estamos na África do Sul. (afirmava Propovisky)
- O país da Apartheid? (perguntei)
Propovisky não me respondeu.
- Ainda tem certeza que escolheu certo? (o nanico perguntou ao Agri)
Agri não respondeu. Era meu amigo.
Encontramos um jipe abandonado ali perto. Estava com o tanque cheio. Deu certo!
- Pedro, você dirige! (ordenou Propovisky)
- Eu?
- Você.
- Mestre, o Pedrinho não sabe dirigir. (o Agri era mesmo um amigão)
- É, você fez mesmo uma péssima escolha. Dirija Merk, por favor.
Já estava de saco cheio daquele filhote de pulgas. E pulgas em miniatura.
Resmunguei.
- O que é que há ô rapazinho?
Propovisky percebeu. Cheu os culhões.
- Nada. Não há nada.
Pensei em dizer 'não há nada, excremento de microscópio' sei lá, qualquer
ofensa. Realmente nossos gênios não combinavam.
A medida em que nos aproximávamos de alguma cidade, um cheiro horroroso
empestava o ar. Fedia mesmo. Alguém fez uma brincadeira qualquer entre o cheiro
ruim e os negros, percebendo a gafe, tossiu e pediu desculpas à Laia.
A estrada era estreita e sinuosa, cheia de curvas perigosas e alguns rombos no
asfalto. De repente apareceu uma curva bem fechada. Merk diminuiu e fez a curva.
Foi aí que tudo começou...
Na saída da curva, Merk começou a acelerar e...
PLONCT
Passamos sobre um corpo humano, estendido ali, na estrada.
- Meu Deus, era gente! (gritou Agri)
- Não, não, não, não é possível!!!! (gritou Merk e acelerou. Propovisky
pediu para que parasse o jipe).
- Vamos ver.
O cheiro era realmente insuportável.
O grupo caminhava rapidamente pela estrada e eu fui mais atrás, pelo
acostamento. Eu estava triste. Coloquei as mãos nos bolsos e comecei a caminhar
chutando pedrinhas, pausinhos (também acho que o Agri não fez uma boa
escolha). Achei até uma bota, veja você, fiz uma embaixada e dei de primeira,
pum. Foi parar lá longe. Continuei com as pedras, os paus, a cabeça. Fiz uma
embaixada e ...
- É UMA CABEÇA!
Apaguei.
Acordei com os tabefes do Merk. Era uma cabeça. Uma cabeça já deformada. Todo
pessoal ali, olhando a cabeça nas mãos do nanico. Será que era a cabeça do
cara que passamos por cima? Propovisky apertou o crânio da cabeça e de repente
os olhos rolaram pelo rosto da cabeça. Lágrimas de olhos, que poético. Que
horrível. Uma cabeça pálida, decompondo. Horrível.
Propovisky pegou-a pelos cabelos e arremessou pra longe. Continuamos o caminho
para o lugar do acidente. Continuei chutando... olhos.
Fiquei chutando os olhos e cantarolando uma antiga canção do Raul Seixas,
chama-se Água Viva: "Eu conheço bem a fonte que desce daquele monte,
ainda que seja de noite. Nesta fonte tá escondido, o segredo desta vida, ainda
que seja de noite...".
Ou viram um lobisomem ou qualquer coisa do gênero. Corri até lá.
- A cabeça não é do cara, Pedrinho, olha lá. Meu Deus!
O Agri estava apavorado, as meninas, nem te conto.
Viram o cara de costas estendido no asfalto, até aí tudo bem, o cara tava sem
cabeça, o que parecia lógico, então viraram o cara de frente e o cara era
negro, até aí tudo bem, mas nem tanto, porque a cabeça era de um branco. O
Merk deu um tapa no peito do cadáver e voou osso pra tudo que é lado, a pele
tava podre. Estendida a uns dois metros do cara, a mão dele, até aí tudo bem.
Tudo bem se a mão dele não tivesse segurando os cabelos de uma cabeça. A
cabeça dele.
A cabeça ainda estava em bom estado. Os olhos do negro estavam abertos, ele
parecia sorrir. Imagine, sorrindo. Não entendemos nada. Mais adiante, como se
estivesse saindo do mato, havia um negrinho. Morto.
Voltamos para o jipe. Não dissemos uma só palavra durante o trajeto.
Propovisky consolava Laia. A cabeça rindo, imagine. "Nesta fonte tá
escondido o segredo desta vida, ainda que seja de noite..."
Na estrada ainda encontramos vários corpos espalhados, mortos. Já sabíamos de
onde vinha o mau cheiro.
A cidade estava um verdadeiro horror. Nada estava de pé, nenhum muro,
absolutamente nada. Não deu certo. Que fazer? Quem sabe não tenha sido só
naquele pedaço da África, quem sabe mais ao norte, a Europa, quem sabe? Porque
não ficamos no Brasil? Havia muitas perguntas e só uma cabeça capaz de
responder e esta cabeça não queria responder nada.
Paramos o jipe no que parecia ter sido uma cidade. Uma cidade destroçada por
alguma coisa que nem sabíamos ao certo o que era, só uma cabeça sabia. Só
uma.
Eu e o Agri não ficamos reunidos ao grupo. Nos afastamos, aliás, quem se
afastou foi ele, eu o segui. Eu sempre o seguia.
- Agri, o que será que aconteceu?
- Não sei Pedrinho. Não consigo encontrar nenhuma lógica. Você viu aquele
negrinho? Viu que coisa horrorosa? O pai dele, aquele cara só podia ser o pai
dele. Acho que o negrinho tinha se perdido, o pai estava procurando e por isto a
cabeça ria. O cara tava rindo porque tinha encontrado o menino, Pedrinho. O
mundo todo condena o Apartheid e o racismo. Será que o que fizemos não foi
pior ainda? Será que não foi pior que o holocausto? Que Hiroshima? Pedrinho, o
que nós fizemos com o mundo?
- Mas Agri... Foi o nanico, não fomos nós.
- Mas concordamos com ele, quando poderíamos ter evitado. Será que você não
entende? Fomos piores do que ele.
- Tenha calma Agri. Talvez a coisa tenha acontecido só aqui, talvez lá em
cima...
- Que diferença faz? As vidas daqui são menos importantes que as vidas de lá?
Aquele pai é diferente dos outros pais? Não Pedrinho, não é. O mesmo Deus
que abençoa os gordos, abençoa os magros. (e começou a contar esta historia)
-.-
Era uma vez um cara que tinha dois filhos que eram bastante diferentes que a
gente sabe que ninguém é exatamente igual, até mesmo os que são gêmeos,
digo igual no sentido das idéias e não perante uns aos outros, digo no sentido
de direitos, nestes, todos são iguais. Então este pai, que já não tinha mais
mulher, era bastante bem de vida e segundo o costume da época, o filho mais
velho herdava mais da fortuna do pai e ficava o menor, sujeito às ordens do
mais velho e a gente sabe que irmão não gosta de receber ordens de irmão, mas
aconteceu que aconteceu diferente naquela casa, porque o filho mais velho era
bem trabalhador. Ajudava o pai, plantava, colhia e se não fosse ele, nada
funcionava naquele lugar e o mais novo era mais vadio que nem filhinho de papai
rico que anda de conversível mexendo com as minas, a gente também sabe que as
minas não gostam muito, mas acabam cedendo porque eles têm grana.
Este filho mais novo, que tinha direito numa parte da fortuna que o pai tivesse,
achou que tava na hora de se arrancar e procurar o que fazer noutras bandas que
aquele lugar com tanto trabalho já tava dando no saco, mesmo porque ele não
fazia nada. Então ele chegou no pai, que já tava bem velho e' disse que queria
sua parte da grana que ele ia se arrancar. O pai ainda tentou fazer o boyzinho
mudar de idéia, mas não conseguiu que a gente sabe que boyzinho quando bota
alguma coisa na cabeça não tem Cristo que tire que também Cristo não iria se
preocupar com estas bobagens.
O pai vendo que nada podia fazer, encheu o boyzinho de grana e ele se mandou
feliz da vida que nem se deu conta de que o velho pai tava era chateado com ele
que não precisava dizer que tinha direito a grana do velho, assim, tipo
humilhando.
Foi então que ele se mandou para uma cidade grande e lá na cidade grande ele
ficou excitado com tanta coisa interessante e' começou a torrar seu dinheiro.
Cidade grande tem galinha e galinha a gente sabe que torra mesmo o dinheiro da
gente que galinha gosta de beber bebida cara e gosta de trepar em motel de luxo
cheio de espelho e gosta também de dar pé na bunda quando a gente fica duro
que a gente sabe que quando tá duro não pode fazer estas coisas e ele ficou
duro e aí lembrou do pai velho, só aí ele viu a cara do pai no pensamento
dele, triste e chateado...
Ele magoou-se consigo mesmo que não deve ter sido legal não ter sido legal com
quem tinha sido legal com ele a vida toda e lembrou também que o pai tinha um
monte de trabalhador que trabalhava pra ele só que quando ele se lembrou de
todas estas coisas, ele já não tinha nem mais roupa pra trocar que tinha ido
tudo com as galinhas e suas farras. Então pensou: Eu vou voltar e não vou
pedir desculpas para o meu pai que pedir desculpas nestas alturas é muita
sacanagem. Vou pedir pra ele ma arranjar trabalho junto com seus empregados e
assim quem sabe eu não possa ser uma pessoa boa que eu não fui bom com ele,
nem comigo, nem com Deus. Eu fui um babaca.
E assim foi que ele apareceu e lá de longe o velho pai já pode vê-lo e se
aproximou e quando chegaram um perto do outro, ele disse ao pai:
- Pai, eu não quero teu perdão. Quero que o senhor me dê trabalho, muito
trabalho e me instale junto com seus outros empregados que eu vou comer do que
eles comem e vestir o que eles vestem.
O pai, emocionado, pediu a um empregado, que matasse um carneiro bem gordo e
preparasse um grande banquete que também arranjasse uma bela túnica, a mais
bonita da loja que ele queria seu filho bem bonito e cheiroso e se abraçaram e
festejaram.
Veja bem, o filho mais velho que era muito trabalhador e responsável, foi
chegando em sua casa que era bastante longe e viu aquela bagunça toda e
perguntou pra um dos empregados o que estava acontecendo que afinal, não era
natal, nem ano novo, nem páscoa e que catso se comemorava ali que ninguém
fazia aniversário?
O empregado disse ao mais velho que se comemorava ali, a volta de seu irmão
caçula e que o pai resolvera fazer um banquete com um carneiro bem gordo.
Óbvio e claro que o cara ficou invocado, infesado mesmo que não era bobo nem
nada disso, que também tava puto com o irmão por ter abandonado o pai e' se
arrancado gastando todo o dinheiro que ele sabia porque já tinham lhe dito que
ele gastava toda a grana com as putinhas da cidade e agora esta, um banquete,
veja você.
O pai, como era muito esperto e sacava as coisas de longe, saiu e chamou seu
filho mais velho pra vir comemorar a chegada do irmão e o mais velho disse que
não tinha nada a comemorar, que não tinha nada a ver fazer festinha pra um
vagau e que também ele tava chateado com o pai que nunca lhe fez nenhuma
festinha. O pai lhe disse que ele não precisava de festa porque era um rapaz
correto e que ele só tava festejando a volta do filho que estava morto e
ressuscitou, estava cego e encontrou a luz, se arrependeu e pediu perdão. Ele
não festejava a volta do filho sem vergonha, ele festejava a volta à vida do
filho que morrera pra ele e queria que todos estivessem juntos pra comemorar o
renascimento do rapaz.
Abraçaram-se os três e o pródigo virou bom rapaz e esqueceu de todas as
sacanagens que tinha aprendido que sacanagem é muito fácil fazer, difícil é
trabalhar, né?
-.-
- Puxa Agri, esta historia me emocionou.
- Esta historia tem mais de 2.000 anos, foi inventada por um cara muito
inteligente.
- Como assim Agri?
- Segundo dizem, nós homens, usamos menos de 10% de nossa capacidade mental.
Este cara, dizem que usou 80% e usou só para a paz e' o bem.
- Quem era este cara Agri?
- Jesus.
Fiquei com os olhos cheios de água. Porque eu também era um pródigo, só que
um pródigo diferente. Um pródigo que se um dia voltar para casa não vai
receber nenhum banquete, nenhum abraço e confesso que até uma boa bronca ou
surra eu desejaria receber.
Acontece que se eu voltar para minha casa eu não vou receber nem meu pai, nem
minha mãe, porque de um jeito ou de outro, eu os tinha matado.
Acordamos com um barulho esquisito sobre nossas cabeças. Devia ser umas
cinco horas da manhã, estava começando a clarear. Era Propovisky pilotando um
helicóptero.
- Xi... Tô ferrado! (resmunguei)
- Que é Pedrinho?
- Agri, eu nunca andei nisso e...
- Se você não quiser a gente não vai. A gente pode ficar por aqui, a gente se
vira, sei lá.
Sozinhos?
Propovisky queria ir à Europa. Ele explicou que talvez na Europa a coisa
tivesse dado certo e as coisas pudessem estar de pé e as pessoas exterminadas.
- Que diferença faz? (perguntei)
- Você deve estar brincando... (respondeu o nanico)
- Não, eu não estou brincando. Olhe o que você fez a estas pessoas e
responda: Quem é que está brincando? Eu ou sua "nova raça?".
Não fomos viajar com o grupo. Eu e o Agri ficamos por ali.
Antes de partir, Laia e eu fizemos amor. Já dentro do helicóptero ela disse
que esperava um filho meu.
Meu?
Mel me olhou fraternalmente. Pela primeira vez na minha vida acho que fiz algo
de interessante, pelo menos Mel me olhou. Filho? Eu? Que diferença faz, não é
este o mundo que eu sonhei pra ele. Já começava a me sentir papai.
Que diferença faz?
Todo o lugar estava em ruínas, as cidades vizinhas também. Andamos uma boa
parte do litoral da África do Sul até que o combustível acabasse. Abandonamos
o jipe, mas a fome mandou lembranças. Índios?
No principio tentamos pescar. Ficávamos horas a fio no mar e nada. Lembrei Agri
dos barcos vazios. Era o efeito da pôrra da bomba, deve ter dado certo no
oceano.
Resolvemos procurar (e logo) um outro carro por ali para que pudéssemos
encontrar uma fazenda ou coisa parecida. Lá deveria haver boi ou vaca mortos.
- E a contaminação? (perguntei)
- Que contaminação?
Sempre ouvi falar que depois de uma guerra nuclear ou coisa deste tipo, tudo e
todos se contaminam.
- Foda-se a contaminação! (esbravejou Agri)
E se a gente pegasse câncer? Morro de medo de morrer que nem um esqueleto.
- Foda-se o câncer! (concluiu o herói nervosinho)
Achamos, veja você, uma Mercedes, é mole? Em plena África do Sul, uma
Mercedes e conversível. Mas não foi isto que nos impressionou. Tudo em nossa
volta estava destruído e a Mercedes estava estacionada numa casa de praia
totalmente intacta. Forçamos a porta e entramos. O espetáculo não poderia ter
sido melhor.
Eu presumo que a garota negra e pelada ali de joelhos em frente ao loiro sentado
de camisa e gravata e calças pelos pés, estava lhe fazendo uma suculosa
chupetinha e acho até que aquela coisa meio amarelada que estava grudada no
canto da boca da negrinha fosse o esperma do alemão. Eu fui bem claro, disse
que presumia! Porque o espetáculo era fascinante: Um dos braços (o esquerdo)
do alemão estava preso no pixaim da negrinha e, fora de seu ombro, ossos
esticados. O outro braço estava largado sobre o sofá com a mão segurando um
copo de whisky. Intrigou-me o fato de o copo estar cheio, não caiu nenhuma
gota. Os seios da garota estavam literalmente amassados contra os joelhos do
alemão e o pênis dele, arrancado de seu corpo, estava na boca da negrinha.
Não é fascinante? Ah, um dos pés do alemão, ainda de sapato e meia, estava a
uns dois metros dali, sei disto porque tropecei nele. Fantástico. Tomei o
whisky do copo do alemão.
A mansão do sujeito tinha bastante comida. Ficamos um bom tempo por ali. De
tanto eu negar e de tanto o Agri insistir, deixei que tirasse o casal fascinante
dali. Estavam muito diferentes. Fediam.
A mansão tinha um purificador de ar elétrico, mas o que mais nos impressionou
foi a videotéca do sujeito. Todas as fitas eram de extermínio de negros.
Filhosdasputas! Imaginei que o cara fosse do governo de minoria branca.
Encontramos uma fazenda. No meio das plantações, que ao longe, já fediam.
Corpos de negros espalhados. Era o retrato da escravidão, ali, em preto e
preto. Fomos até a casa grande (outro mistério) e nela havia duas loiras e
ainda estavam inteiras... Porque também não se esfolaram? Até nisto têm
sorte. Que diferença faz?
Achamos e fomos cortar um boi.
Tínhamos carne para muitos dias agora, lavada e no freezer. Agri, a cada dia
que passava ficava mais excitado. Péssimo hábito adquirido no convívio com as
garotas. Ele se masturbava duas vezes por dia, eu me masturbava três.
Quem cuidava do freezer e da comida era o Agri. Eu lavava as louças, outro
hábito. Um dia eu fui guardar as sobras de carne e quando abri a tampa do
freezer, não acreditei.
- Que catso é isto Agri?
Ele tinha colocado as duas loiras no freezer. Mandou-me à merda e pediu para eu
não me intrometer. Será que ele tava cozinhando carne de gente? Vomitei.
Ficamos muitos dias na fazenda, talvez meses. Que diferença faz? Volta e meia
eu dava uma olhadela no freezer. As loiras continuavam lá e inteiras (ufa!).
Lembro que uma noite, quando fui tomar água, o chão da cozinha estava todo
molhado, também o carpete da sala até o quarto do Agri. Achei estranho, que
será que houve? Abri a porta... Ele estava transando com uma das loiras. Aquilo
me chocou. Não consegui dizer nada. Ele trepava com um cadáver. Era
impressionante. Um cadáver. Fechei a porta sem ser notado (pelo menos ela não
gritou). Saí da casa e fiquei olhando para o céu. Onde estaria o tal do Deus?
Europa? Será que ele existe? E o helicóptero? Europa. Um cadáver...
- Vem tomar café.
Era ele. Deu medo.
- Que é que há?
- Nada.
Tomamos café. Ele foi para o quarto. Corri para o freezer e as loiras estavam
lá. Qual é?
Agri passava a maior parte dos dias lendo os manuais de um jatinho que havia
por lá. Eu passava a maior parte dos dias jogando vídeo game. Sempre fui um
idiota.
- Vamos testar? (me convidou Agri)
- O jatinho? (já estava começando a ficar esperto)
Fomos.
Voamos pela fazenda e pousamos logo.
- Ainda preciso aprender muitas coisas. Inglês é foda, eu quase não entendo
esta língua.
- Inglês?
Traduzi tudo para ele. Eu sempre fui muito bom em línguas. Meu apelido na
escola era Poli, de poliglota.
Fizemos muitos testes. Era difícil pilotar aquele avião. Chegamos a voar até
a capital da África do Sul (não sei porque achei que era), mas ainda não
estávamos aptos a voar para muito longe, pelo oceano, por exemplo.
O nosso maior problema era aterrizar. Sempre achávamos que o trem de pouso não
tinha descido e temíamos nos arrebentar. Que diferença faz? Tínhamos mesmo
era medo de acabar a gasolina. Heróis. Dois heróis bichas.
Começamos a chupar gasolina de tudo quanto é carro que a gente via. Outro
problema. Onde colocar tanta gasolina? E se o avião começar a ficar muito
pesado por causa da gasolina, não pode dar uma pane? Retiramos todas as
mordomias que o aparelho tinha. Televisão, poltronas, etc. enchemos de galões
de gasolina. Cheiro delicioso. Adoro cheiro de gasolina... Bichas heróis.
- Vamos? (perguntou Agri)
- Vamos. Mas pra onde?
- Escolha. É tudo seu. Você é a nova raça humana.
- Vamos pra Austrália!
- Não. Vamos pra Europa.
O Agri é o dono das boas idéias. Só que eu queria ser original. Na verdade eu
não queria à Europa com medo de encontrar com os outros. Não sei porque, eu
queria ficar com o Agri, só nós dois, sei lá, heróis talvez...
Cheu o saco.
"Êta fonte mais estranha, que desce pela montanha, ainda que seja de
noite"... Parei. Ele ficou muito serio.
Já estávamos há algumas horas no ar. Não havia nada em pé sobre a África.
Estranhei novamente a casa de praia e a casa grande da fazenda. Não havia nada
em pé, estranho. Horas de vôo e nenhuma casa, nenhuma ponte, tudo destroçado.
Um novo mundo. Um novo mundo de ruínas.
- Agri, Agri, olhe lá em baixo. Estão de pé!!! Inacreditável.
Pousamos.
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