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UMA FACA SÓ LÂMINA Para Vinícius de Morais Assim como uma bala enterrada no corpo, fazendo mais espesso um dos lados do morto; assim como uma bala do chumbo pesado, no músculo de um homem pesando-o mais de um lado qual bala que tivesse um vivo mecanismo, bala que possuísse um coração ativo igual ao de um relógio submerso em algum corpo, ao de um relógio vivo e também revoltoso, relógio que tivesse o gume de uma faca e toda a impiedade de lâmina azulada; assim como uma faca que sem bolso ou bainha se transformasse em parte de vossa anatomia; qual uma faca íntima ou faca de uso interno, habitando num corpo como o próprio esqueleto de um homem que o tivesse, e sempre, doloroso, de homem que se ferisse contra seus próprios ossos. A Seja bala, relógio, ou a lâmina colérica, é contudo uma ausência o que esse homem leva. Mas o que não está nele está como uma bala: tem o ferro do chumbo, mesma fibra compacta. Isso que não está nele como a coisa ciosa presença de uma faca, de qualquer faca nova. Por isso é que o melhor dos símbolos usados é a lâmina cruel (melhor se de Pasmado): porque nenhum indica essa ausência tão ávida como a imagem da faca que só tivesse lâmina. nenhum melhor indica aquela ausência sôfrega que a imagem de uma faca reduzida à sua boca. que a imagem de uma faca entregue inteiramente à fome pelas coisas que nas facas se sente. B Das mais surpreendentes é a vida de tal faca: faca, ou qualquer metáfora, pode ser cultivada. E mais surpreendente ainda é a sua cultura: medra não do que come porém do que jejua. Podes abandoná-la essa faca intestina: jamais a encontrarás com a boca vazia. Do nada ela destila a azia e o vinagre e mais estratagemas privativos dos sabres. E como faca que é, fervorosa e energética, sem ajuda dispara sua máquina perversa: a lâmina despida que cresce ao se gastar, que menos dorme quanto menos sono há, cujo muito cortar lhe aumenta mais o corte e se vive a se parir em outras, como fonte. (Que a vida dessa fac se mede pelo avesso: seja relógio ou bala, ou seja faca mesmo.) C Cuidado com o objeto, com o objeto cuidado, mesmo sendo uma bala desse chumbo ferrado, porque seus dentes já a bala os traz rombudos e com facilidade se em botam mais no músculo. Mais cuidado porém quando for um relógio com o seu coração aceso e espasmódico. É preciso cuidado por que não se acompasse o pulso do relógio com o pulso do sangur, e seu cobre tão nítido não confunda a passada co o sangue que bate já sem morder mais nada. Então se for faca, maior seja o cuidado: a bainha do corpo pode absorver o aço. Também seu corte às vezes tende a tornar-se rouco e há casos em que ferros degeneram em couro. O importante é que a faca o seu ardor não perca e tampouco a corrompa o cabo de madeira. D Pois essa faca às vezes por si mesma se apaga. É a isso que se chama marébaixa da faca. Talvez que não se apague e somente adormeça. Se a imagem é relógio, a sua abelha cessa. Mas quer durma ou se apague: ao calar tl motor, a alma inteira se torna de um alcalino teor bem semelhante à neutra substância, quase feltro, que é a das almas que não têm facas-esquleto. E a espada dessa lâmina, sua chama antes acesa, e o relógio nervoso e a tal bala indigesta, tudo segue o processo de lâmina que cega: faz-se faca, relógio ou bala de madeira, bala de couro ou pano, ou relógio de breu, faz-se faca sem vértebras, faca de argila ou mel. (Porém quando a maré já nem se espera mais, eis que a faca ressurge com todos seus cristais.) E Forçoso é conservar a faca bem oculta pois na umidade pouco seu relâmpago dura (na umidade que criam salivas de conversas, tanto mais pegajosas quanto mais confidências). Forçoso é esse cuidado mesmo se não é faca a brasa que te habita e sim relógio ou bala. Não suportam também todas as atmosferas: sua carne selvagem quer câmaras severas. Mas se deves sacá-los para melhor sofrê-los, que seja algum páramo ou agreste de ar aberto. Mas nunca seja ao ar que pássaros habitem. Deve ser a um ar duro, sem sombra e sem vertigem. E nunca seja à noite, que estas têm as mãos férteis, Aos ácidos do sol sseja, ao sol do Nordeste, à febre desse sol que faz de arame as ervas, que faz de esponja o vento e faz de sede a terra. F Quer seja aquela bala ou outra qualque imagem, seja esmo um relógio a ferida que guarde, ou ainda uma faca que só tivesse lâmina, de todas as imagens a mais voraz e gráfica, ninguém do próprio corpo poderá retirá-la, não importa se é bala nem se é relógio ou faca, nem importa qual seja a raça dessa lâmina: faca mansa de mesa, feroz pernambucana. E se não a retira quem sofre sua rapina, menos pode arrancá-la nenhuma mão vizinha. Não pode contra ela a inteira medicina de facas numerais e aritméticas pinças. Nem ainda a polícia com seus cirurgiões e até nem mesmo o tempo como os seus algodões. E nem a mão de quem sem o saber plantou bala, relógio ou faca, imagens de furor. G Essa bala que um homem leva às vezes na carne faz menos rarefeito todo aquele que a guarde O que um relógio implica por indócil e inseto, encerrado no corpo faz este mais desperto. E se é faca a metáfora do que leva no músculo, facas dentro de um homem dão-lhe maior impulso. O fio de uma faca mordendo o corpo humano, de outro corpo ou punhal tal corpo vai armando, pois lhe mantendo vivas todas as molas da alma dá-lhes ímpeto de lâmina e cio de arma branca, além de ter o corpo que a guarda crispado, insolúvel no sono e em tudo quanto é vago, como naquela história por algúem referida de um homem que se fez memória tão ativa que pôde conservar treze anos na palma o peso de uma mão, feminia, apertada. H Quando aquele que os sofre trabalha com palavras, são úteis o relógio, a bala e, mais, a faca. Os homens que em geral lidam nessa oficina têm no almoxarifado só palavras extintas: umas que se asfixiam por debaixo do pó outras despercebidas em meio a grandes nós; palavras que perderam no uso todo o metal e a areia que detém a atenção que lê mal. Pois somente essa fraca dará a tal operário olhos mais frescos para o seu vocabulário e somente essa faca e o exemplo de seu dente lhe ensinará a obter de um material doente o que em todas as facas é a melhor qualidade: a agudeza feroz , certa eletricidade, mais a violência limpa que elas têm, tão exatas, o gosto do deserto, o estilo das facas. I Essa lâmina adversa, como o relógio ou a bala, se torna mais alerta todo aquele que a guarda, sabe acordar também os objetos em torno e até os próprios líquidos podem adquirir ossos. E tudo o que era vago, toda frouxa matéria para quem sofre a faca ganha nervos, arestas. Em volta tudo ganha a vida mais intensa, com nitidez de agulha e presença de vespa. Em cada coisa o lado que corta se revela, e elas que pareciam redondas como a cera despem-se agora do caloso da rotina, pondo-se a funcionar com todas suas quinas Pois entre tantas coisas que também já não dormem, o homem a quem a faca corta e empresta seu corte, sofrendo aquela lâmina e seu jato tão frio, passa, lúcido e insone, vai fio contra fios. * De volta dessa faca, amiga ou inimiga, que ais condensa o homem quanto mais o mastiga; de volta dessa faca de porte tão secreto que deve ser levada como o oculto esqueleto; da imagem em que mais me detive, a da lâmina, porque é de todas elas certamente a mais ávida; pois de volta da faca se sobe a outra imagem, àquela de um relógio picando sob a carne, e dela àquela outra, a primeira, a da bala, que tem o dente grosso porém forte a dentada e daí à lembrança que vestiu tais imagens e é muito mais intensa do que pode a linguagem, w afinal à presença da realidade, prima, que gerou a lembrança e ainda a gera, ainda, por fim à realiddade, prima e tão violenta que ao tentar apreendê-la toda imagem rebenta. |