Breve Memória da Ilha dos Esquecidos e dos Usos e Costumes de Sua Gente

     
     

UMA BREVE EXPLICAÇÃO

           

No primeiro ano da última Grande Guerra, chegaram ao Brasil os monges contemplativos cistercienses, vindos da Baviera, em busca de lugar sossegado onde pudessem, com mais isolamento, dedicar-se a longas horas de meditação e de estudo das Sagradas Escrituras.

A bagagem, embora volumosa, era muito simples, pois o grupo de trinta monges não necessitava de mais que instrumentos para a agricultura, paramentos e roupas, simples e grossas, e livros, muitos livros, em caixas dos mais diversos tamanhos, pois, em qualquer mosteiro, a biblioteca é um dos pontos basilares do dia-a-dia, com um significado todo especial para o próprio tipo de atividade que se tem ali.

Os livros a que me refiro eram de variadas espécies: literatura clássica alemã, inglesa, francesa e italiana; literatura filosófica, teológica, hagiológica e bíblica; clássicos gregos e latinos; obras escritas pelos Doutores da Igreja e por seus santos. Os livros eram escritos nas línguas originais dos autores, alguns em edições modernas, outros em antigas e raras impressões. Eram milhares de livros.

Misturados, naquelas caixas, havia centenas, milhares talvez, de pacotes e maços de cadernos, papéis avulsos, livros copiados a mão, com ricas iluminuras, estudos e anotações sobre a Regra de São Bento, esboços da história monacal, em geral, e da própria Ordem Cisterciense, em particular. E muitos outros documentos sobre a vida nos velhos conventos europeus, particularmente aqueles situados no sul da Alemanha.

E havia documentos outros, de origem e sobre assuntos não especificados, que os monges tinham achado prudente transladar para o Brasil, onde, certamente, estariam a salvo de destruição pela insânie humana.

Levantadas as primeiras paredes do Mosteiro de Nossa Senhora da Santa Cruz, em Itaporanga, arrumou-se a biblioteca e puseram-se os documentos esparsos em caixas, classificadas por assunto.

Era nessa biblioteca que, anos depois, demorava-se horas discutindo (discutindo, não, extraindo conhecimentos) sobre Bíblia, filosofia aristotélicotomista, literatura ambrosiana e agostiniana, e história eclesiástica, principalmente na parte referente aos antigos concílios.

Eram grandes e verdadeiros mestres os velhos e santos monges, que acumulavam toda a cultura milenar do monaquismo fundado por São Bento e reformado, há quase oitocentos anos, por Bernardo de Claraval.

Participavam desses colóquios religiosos e culturais o beneditino Dom Beda Kruze e os cistercienses Dom Davi Kneutinger, Dom Randolfo Wolf, Dom Bento Kil, Dom Estevão Stock, Dom Deodato Ten Kate, e muitos outros, entre os quais Frater Marcos, brasileiro, moço ainda, estudante de filosofia que muito me impressionava pelos conhecimentos bíblicos e de literatura. Às vezes, não muito raramente, estava presente àqueles encontros o próprio Abade, Dom Atanásio Merkle.

Foi o velho Dom Abade, santo com quase oitenta anos de idade, sessenta de vida monacal, que, um dia, me falou, em seu português difícil (misturado com palavras latinas, mas expressado conforme a gramática alemã) sobre um esquisito documento existente num daqueles maços de velhos papéis, antiqüíssimo, mas em bom estado de conservação, dos quais se desconhecia a origem, o autor, a data e o local de lavratura.

Informou-me o velho monge que, na Alemanha e há muitos anos, um seu amigo Mestre de Noviços tinha iniciado profundo e completo estudo daquele documento, havendo chegado a descobrir a chave de sua codificação; mas, infelizmente, não tivera tempo de iniciar o trabalho de tradução: fora chamado para perto do Senhor, sem ter tido tempo de passar para algum discípulo a chave do segredo desvendado.

O Abade pôs o documento à minha disposição, em sinal de confiança e, também, de desafio.

Fotografei o códice, página por página, anverso e verso; fiz ampliações das fotos e guardei-as. Recentemente, remexendo em velhas caixas de guardados e documentos, achei aquelas velhas reproduções fotográficas. E pus a trabalhar nelas.

Na primeira olhada, pude notar:

a.  o texto estava dividido em quatro colunas de dez símbolos cada uma, sendo que, na primeira página, em cima da quarta coluna, estava a palavra Kurie (Senhor), antecedida e seguida de ômega maiúsculo;

b.  o texto estava escrito em alfabeto grego, mas as palavras não eram, em absoluto, gregas, exceto a acima citada Kyrie;

c.  havia uma profusão de ômega maiúsculo (), sem o menor sentido aparente, uma vez que quase todo o texto estava escrito em letras minúsculas, à exceção de um tau (T), um delta () e um pi (P).

            Observando, cuidadosamente, a primeira página, notei que, na última linha, na quarta coluna, havia algo diferente no grupo dos símbolos: três ômegas maiúsculos, em espaços diferentes, mas entre o primeiro e o segundo ômegas, e entre este e o último, havia duas palavras, em escrita cursiva, que não consegui ler, pois seus caracteres não eram gregos.

             Sobre este pormenor, consultei meu velho amigo César Abraham, conhecedor de leitura paleográfica e de velhos alfarrábios medievais, quase tão antigos como ele mesmo. E ele – depois de virar e revirar o estranho documento e de tomar três cálices de bom Porto e saborear caríssimo queijo que, inadvertida e infantilmente, eu mencionara ter adquirido naquele dia – com toda segurança de quem quer parecer bom entendido, afirmou:

            - Está escrito aqui, entre estas garatujas que você afirma serem ômegas, a palavra Adromãm.

             - Adromãm? Que palavra mais esquisita você inventou em troca de meu queijo e de meu saboroso néctar dos deuses!

            - Adromãm – disse ele, enfaticamente.

            E completou, querendo demonstrar mais conhecimento do que realmente parecia ter, com ar de muita segurança, que me soou falsa:

            - Talvez Ádromam. São saudações de uma velha língua extinta do Oriente Médio, sobre a qual li um artigo, há muito tempo, numa revista especializada.

            Comecei a desconfiar, ainda mais, do conhecimento que meu bom amigo alardeava ter. Servi-lhe mais um cálice de Porto.

            E ele, depois de estalar a língua, continuou:

             - Adromãm significava Até breve; Ádromam queria dizer Até daqui a muito tempo. Não foi um Monge contemplativo quem lhe deu este documento? Era anacoreta? Eremita? Então? Os anacoretas falavam e sabiam línguas e coisas estranhíssimas – disse ele, estalando a língua, novamente, e olhando-me, com reprovação, enquanto eu guardava, avaramente, minha garrafa de Porto, então já quase consumida pela metade.

            - Quem já ouviu falar nessa sua invenção de língua de anacoretas? – perguntei, puxando-o ou empurrando-o para a porta de saída, e despedindo-me.

            - Pois sabia que anacoretas e eremitas tinham suas línguas próprias. E, mais, além de Adromãm ou Ádromam, havia, ainda, Adrômam, isto é, Até nunca mais. Adrômam para você – disse, sem sequer apertar minha mão.

            Depois que o velho amigo saiu, fui, lupa na mão, examinar o texto, mais uma vez.

            E, eureca! Realmente, as palavras eram, claramente, ad Romam, com um ômega entre ad e Romam, além dos dois outros iguais caracteres que iniciavam e terminavam aquele conjunto de símbolos.

A partir disso, foi tudo muito simples. O texto da primeira página começava com Kyrie (Kurie), Senhor, e terminava com "ad Romam", para Roma, em latim.

Esta era a chave do enigma. Bastaria trazê-lo do grego para o latim, e o texto estaria, praticamente, traduzido.

Em seguida, foi só ler as palavras em voz alta, como se fossem latinas, eliminar os ômegas maiúsculos, que só preenchiam os espaços entre vocábulos, substituir os caracteres pelos latinos e, finalmente, fazer a tradução do latim para o vernáculo, que, adiante, apresento.

Não há, no calhamaço, qualquer data, qualquer assinatura, qualquer indicação que elucide quanto ao autor, quanto ao tempo, quanto ao local em que foi escrito.

Se o documento que manuseei e traduzi era o terceiro relato, é evidente que houve um primeiro e um segundo relatórios e, talvez, um quarto e outros mais.

Prometo ao leitor que se um dia eu voltar ao Mosteiro de Nossa Senhora da Santa Cruz, dos monges cistercienses, procurarei, com diligência, os outros relatórios. É possível que contenham observações tão interessantes quanto as que o leitor conhecerá, nas páginas seguintes, sobre a desconhecida e formosa ilha habitada por uma curiosa gente de pouca memória e de costumes que parecem estranhamente bizarros.

Ah! Antes de apresentar o texto em português, uma admoestação: qualquer semelhança com pessoa, fato, data ou local é mera coincidência. Nada mais que coincidência.

Brasília, Advento de 1988.

O Autor

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