VIOLÊNCIA NO JARDIM * - parte V


Por Polly Peachum
Tradução por Vanderdecken
Adaptação para português brasileiro por rose



A minha história é difícil, mas muito menos difícil do que as vidas de outras pessoas, e não é diferente em nada das vidas de milhões de mulheres cujos sentimentos de submissão, se os têm, são uma coisa sem importância para elas. E contudo muitas destas mulheres, numa variedade quase infinita de circunstâncias, estão infelizes, confusas, sem saber o que fazer – e eu não estou. Paradoxalmente, descobri como por em prática as minhas convicções feministas, como fazer delas um elemento real e prático da minha vida, durante estes últimos anos, que passei como escrava de um homem. As premissas teóricas básicas do feminismo, tal como eu as vejo, são que as mulheres são tão capazes como os homens; que as mulheres deviam ter tantos direitos, opções e responsabilidades como os homens; e que é profundamente errado alguma coisa acontecer ou não acontecer a uma mulher apenas por ser mulher. O feminismo, tal como o tenho vivido durante estes seis anos, está ligado às partes da minha personalidade mais afetadas pelas atitudes mais sexistas da cultura em que cresci. A minha transformação em feminista praticante (por oposição às que apenas acreditam nos ideais feministas) envolveu que eu aprendesse a acreditar que as lições que aprendi em criança – que eu era inferior, incapaz de realizar alguma coisa importante, que as minhas opiniões não eram significantes nem valiosas, especialmente comparadas com as de um homem – não são verdadeiras e que aprendesse a agir em conseqüência disto.

Trabalho como empreendedora no campo da alta tecnologia; uma carreira extremamente arriscada e competitiva. Não tenho segurança no emprego, não sei de onde virá o próximo contrato ou projeto, e contudo sou muito bem-sucedida no que faço. Uma parte da razão por que consigo contratos é porque tenho confiança na minha capacidade de os conseguir. Embora trabalhe num campo técnico em que predominam os homens, não acredito que os homens que competem comigo sejam melhores do que eu. Não parto do princípio que são eles que vão ficar com os contratos em vez de mim. E geralmente não ficam. A minha confiança nas minhas próprias capacidades me permite perseverar num ambiente onde muitos outros desistem em desespero com a elevada taxa de rejeições inerente a este tipo de trabalho. Esta confiança não me vem inteiramente das minhas leituras feministas, as quais, embora tenham estabelecido as bases, nunca poderiam, dada a minha história pessoal e a minha expectativa de falhar, ser postas em prática, mas também do apoio e estímulo que o meu Senhor me deu. Ele acreditou desde o princípio na minha capacidade de fazer coisas excepcionais. Sabia que o que estava me detendo não era a minha falta de capacidade mas as minhas miseráveis expectativas. Ajudou-me a olhar para mim própria como uma mulher forte e competente. Também me ensinou a ter êxito e a não ignorar ou considerar sem importância êxitos passados. Sinto-me agora mais forte, mais competente, e simplesmente melhor em relação a mim mesma do que alguma vez me senti, e espero que estes sentimentos continuem a crescer por muito tempo.

A minha experiência de viver em um relacionamento de troca de poder e o meu conhecimento de outros sadomasoquistas, também me forneceram uma capacidade importante que me dá um sentimento crescente de domínio sobre mim própria e sobre o meu ambiente. Adquiri uma profunda compreensão do fato de que o poder é uma parte de todas as relações, sejam elas profissionais, políticas ou pessoais, e uso este conhecimento todos os dias para satisfazer mais completamente os meus ideais feministas no plano pessoal e profissional.

A maior parte das pessoas não tem consciência do papel que as transações de poder desempenham nas suas vidas. Não se dão conta de quando jogando fora poder ou de quando ele lhes está sendo retirado. Quando o estão tirando de outra pessoa, muitas vezes também não se dão conta disso. Cegas às trocas de poder que ocorrem na vida de todos os dias, as pessoas baseiam muitas vezes as suas ações e decisões em pressupostos falsos que ignoram uma parte importante da realidade. Como os Dominantes e os submissos estão constantemente a lidar direta e conscientemente, nos seus relacionamentos primários, com as realidades do poder, pode ser às vezes chocante para eles que as outras pessoas não se apercebam desta dinâmica tão claramente como eles. Esta consciência das dinâmicas de poder interpessoais mudou profundamente a minha vida: agora sei lidar com a maior parte das pessoas. Consigo aperceber-me de como as situações vão se desenvolver e portanto consigo prever quando é realista desistir e quando é realista insistir.

Estas competências que estou desenvolvendo têm me ajudado com freqüência. Uma vez, por exemplo, um administrador para quem eu estava fazendo um projeto apreciava claramente as minhas capacidades e competência, mas de vez em quando insistia que eu tinha feito algum erro óbvio quando isso não tinha acontecido. Dei-me conta, pela maneira como estas cenas se desenrolavam (ele teimava sempre que tinha razão e começava sempre por se recusar a considerar quaisquer provas que mostrassem que os seus pressupostos eram incorretos) que eu estava fazendo um trabalho bom demais para que ele se sentisse confortável e que sentia a necessidade de me corrigir de vez em quando para poder dizer a si mesmo, que ainda era ele quem mandava no projeto. O fato de compreender esta dinâmica de poder subjacente permitiu-me fazer duas coisas. Uma foi oferecer resistência mínima e ceder nos casos em que a sua convicção de que tinha razão não prejudicasse o trabalho; isto permitia-lhe sentir outra vez que era ele quem mandava no projeto. Mas quando o erro que ele estava fazendo pudesse ter um forte impacto no êxito do projeto, eu calmamente fincava o pé, apesar da sua cólera crescente e das suas acusações de que eu estava perdendo a razão, e continuava a apontar-lhe os fatos até ele acabar por entender aonde eu queria chegar. No fundo este homem era racional e eu, sabendo isto, tinha a paciência de esperar que a tempestade emocional passasse e a racionalidade regressasse ao debate.

Se eu não conhecesse as maneiras que as pessoas têm de usar o poder sem saber que o estão usando, ou se não soubesse porque o fazem, o comportamento deste administrador podia ter acionado o meu botão da integridade pessoal (como ousa ele não confiar em mim; como ousa ele duvidar da minha palavra neste ponto!), eu talvez tivesse abandonado o projeto e decidido, se o meu Senhor permitisse, nunca mais voltar. Mas por saber o que estava se passando na cabeça dele, tornou-se desnecessário me indignar. Assim, estranhamente, a minha natureza submissa me ajudou a ultrapassar limitações emocionais que me tinham sido impostas anteriormente pela minha história pessoal.

A relação da minha história pessoal com a minha sexualidade é em grande parte obscura. Temos que compreender que, embora abundem as teorias – muitas delas disparatadas – sobre as razões para as necessidades sexuais específicas de um indivíduo, nenhuma destas teorias provou ser válida na generalidade. E portanto, inevitavelmente, é fútil tentar medir as necessidades sexuais de uma mulher por um padrão arbitrário, que nunca foi provado, do que constitui a “normalidade” psicológica. Ainda pior e menos humano é imaginar que as necessidades sexuais de um indivíduo têm algum significado político generalizável. O Dr. Ronald Moglia, diretor do programa de doutoramento em sexualidade humana na Universidade de Nova Iorque, diz numa entrevista em Different Loving: The World of Sexual Domination and Submission, “Há tantas coisas que não sabemos sobre como se formam os nossos desejos sexuais. As pessoas interpretam muitas vezes politicamente os comportamentos sexuais. Muitos dos nossos comportamentos resultam das nossas aprendizagens socioculturais, e certamente, nas mulheres, esta é uma força poderosa. Mas pegar nesta observação e aplicá-la a pessoas que agem de uma forma masoquista − ou de outra forma qualquer – me leva a questionar até que ponto estas observações são científicas, até que ponto são politicamente enviesadas, e o que é que [esses teóricos] teriam a dizer sobre a correção política da mulher sádica e a incorreção política da mulher masoquista.” Apesar disto, a hostilidade da sociedade convencional, e de muitas feministas, contra as mulheres submissas é avassaladora.

Esta é uma das ironias dolorosas de ser uma mulher submissa. Mesmo depois de nos debatermos contra toda a confusão emocional e toda a ambigüidade política engendradas numa mulher com desejos fortes de submissão, e de termos atingido finalmente algum nível de resolução interior, continuamos a enfrentar o ódio e o desprezo vindos de muitas das pessoas com quem temos que viver e funcionar. A hostilidade parece inevitável por parte duma sociedade convencional, que nunca pensou no assunto e mete no mesmo saco o sadomasoquismo com a zoofilia e a pederastia, como sendo coisas completamente inaceitáveis – afinal é a mesma sociedade convencional que se espoja no racismo e no sexismo, enquanto nega ambos e que está destruindo o nosso planeta rapidamente e sem pensar. A hostilidade de muitas feministas famosas, contudo, é muito mais difícil de suportar.

Porque é que tantas feministas doutrinárias, incluindo muitas com acesso fácil à mídia, são tão hostis às mulheres submissas? As suas explicações centram-se, como mencionei acima, na idéia de que os relacionamentos em que as mulheres submissas se envolvem promovem o domínio cultural dos homens e que as imagens de mulheres submissas, nos meios de comunicação eróticos e em outros lados, promovem a violência contra as mulheres. Em Powers of Desire: The Politics of Sexuality, a ensaísta Jessica Benjamin escreve, “O perigo foi sempre que as mulheres e outras vítimas de violência fossem consideradas culpadas ou se culpassem a si próprias por a terem ‘provocado’. Isto levou a uma atitude de contra-culpabilização: qualquer discussão sobre dominação erótica ou sobre violência racional na qual a participação é voluntária ou fantasiada aparece a muitas pessoas como uma desculpa para a violência masculina em geral.” Mas a primeira objeção – de que os relacionamentos dominante-submissa promovem o domínio masculino na sociedade em geral – mesmo que fosse verdade (e eu não acredito que o seja) leva à negação da importância das experiências positivas de submissas como eu, quando vivemos as nossas identidades sexuais. Quanto à segunda objeção – como outras semelhantes levantadas desde há séculos por censores e reacionários de toda a espécie – é totalmente desprovida de base em quaisquer dados honestos e está completamente desacreditada.

Suspeito que por trás de toda esta preocupação com o significado político das minhas atividades e das atividades das minhas irmãs submissas e com o nosso bem-estar pessoal se esconde uma fome baixa e vil de poder. Há algo de incrivelmente arrogante e assustadoramente III Reich numa argumentação do gênero “Uma vez que a minha opinião pessoal desta forma de sexualidade é que ela seria terrivelmente errada para mim e me causaria mal, então também é terrivelmente errada para todas as outras pessoas e devia ser atacada e reprimida.” O feminismo, para mim, foi sempre no seu âmago uma tentativa de dar às mulheres a liberdade de fazerem as suas próprias escolhas, e não de lhes tirar esta liberdade para o seu próprio bem. Já me bastou que a sociedade patriarcal me fizesse isso; os teóricos da vitimização e as feministas anti-pornografia deste mundo que tentam privar-me do direito de escolher livremente o tipo de sexualidade e de estilo de vida que podem me fazer mais feliz não são melhores. Pelo contrário: uma vez que de certa maneira se apropriaram do feminismo para o perverter, são ainda piores. Essas pessoas, na sua tentativa de definir e controlar pessoas como eu que não correspondem ao seu modelo heterossexual idade saudável, estão apenas, na sua necessidade de controlar e dar forma aos destinos dos outros, a repetir os vícios do patriarcado, e eu não estou disposta, de modo algum, a trocar a minha liberdade, que tanto me custou a conquistar, em relação ao poder masculino pela subjugação a algo que é para mim igualmente odioso e ofensivamente errado: o poder feminino. Quero que o feminismo me ajude a atingir os meus objetivos de liberdade de escolher e de procurar a felicidade – e não que me impeça de os atingir.

Em última análise, creio que a pressão que as mulheres submissas sentem da parte de certas feministas radica num mal entendido fundamental da parte destas sobre a natureza efêmera do seu poder. Há apenas 25 anos, a discussão sobre o feminismo e os seus significados práticos era quase só acadêmica. Hoje, contudo, através da agitação ideológica nos meios acadêmicos e de uma capacidade recém-descoberta de influenciar a mídia, e alguns políticos abordando-a com o tipo de jargão que a impressiona, as feministas conseguem exercer alguma influência no debate político e mesmo dispor de algum poder político. Algumas começaram logo a usar este poder para reprimir a sociedade, como nas campanhas, bem-sucedidas em alguns lugares, para proibir materiais eróticos e pornográficos com o pretexto de promoverem a violência contra as mulheres. Nestas campanhas aliam-se alegremente à Direita Religiosa e a outros reacionários extremistas, que têm uma agenda repressiva bem mais substancial do que a de algumas ideólogas feministas inchadas de auto-importância.

O que estas feministas não compreendem é que, quando a voga momentânea de que gozam tiver passado, quando os acadêmicos e os políticos tiverem perdido o interesse nelas e passado à fascinação seguinte, a Direita Religiosa ainda cá estará, mais poderosa do que nunca por ter enganado e conseguido o apoio de algumas feministas. É desta Direita Religiosa, e não dos sadomasoquistas, que realmente vem a ameaça a longo prazo contra a emancipação das mulheres. Se eles atingirem os seus objetivos, então todas nós, mulheres, incluindo as suas aliadas feministas de hoje, encontrar-nos-emos, ou às nossas filhas, entregues a uma escravidão inteiramente involuntária.

Trago o meu gatinho macho todas as manhãs para o jardim-selva seguramente aninhado nos meus braços, porque o ar livre, que em tempos foi o paraíso natural dos gatos, se transformou, com a expansão da AIDS felina e da leucemia felina, num ambiente mortal. Do mesmo modo, temo que a luxuriante selva sadomasoquista na qual me sinto tão em casa se torne rapidamente demasiado perigosa para passearmos nela. Neste momento, o meu amado podia ser julgado pelas coisas que me faz, em quase todas as jurisdições do país, mesmo sem eu apresentar queixa. Se eu protestasse e dissesse que amo e encorajo o que ele me faz, esse protesto talvez fosse ignorado, e esta acusação totalmente injusta poderia seguir o seu curso. E a rápida deslocação para a direita atualmente em curso na política americana, com a concomitante pressão para punições cada vez mais draconianas – combinada com a atenção midiática que está sendo dada aos crimes contra as mulheres – é um péssimo presságio. Deste modo, nós, as mulheres submissas, somos muito menos iguais do que os outros e temos menos direitos perante a lei, como os homossexuais em algumas jurisdições. Ao contrário do que acontece com as mulheres que se satisfazem com vidas sexuais convencionais, o corpo duma submissa não lhe pertence, e ela não pode escolher o que lhe acontece; nem pertence completamente ao seu Senhor; pertence ao Estado, que pode ditar o que pode e não pode ser feito com ele, de acordo com definições de violência influenciadas por aquelas que, como mulheres, deveriam estar nos ajudando e apoiando, e não tentando nos reprimir! Se nós, submissas, nos recusarmos a substituir os nossos maravilhosos, ricos, violentos jardins por aquilo que seria, do nosso ponto de vista, o equivalente a um minigolfe, somos ameaçadas, no caso de esta escolha ser descoberta, com medidas punitivas aplicadas àqueles que amamos. E os esforços de algumas que ousam chamar-se feministas vão todos no sentido de tornar esta situação ainda mais intolerável. Que escolha tenho eu, que escolha têm outras mulheres submissas como eu, que não seja rejeitar totalmente uma ideologia que exige a nossa lealdade mas trai a nossa confiança e ignora os nossos pedidos de tolerância e apoio? Embora eu seja uma mulher que há de sempre apoiar a causa das mulheres em toda a parte, poderá em breve vir o tempo triste em que terei vergonha de me chamar feminista, especialmente se este termo continuar a tornar-se sinônimo, para mulheres como eu, de “opressora”.



* Título original: Violence in the Garden, publicado no site www.submissivewomenspeak.net


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