VIOLÊNCIA NO JARDIM * - parte IV


Por Polly Peachum
Tradução por Vanderdecken
Adaptação para português brasileiro por rose



Quando conheci online o meu Senhor eu esperava ser por Ele manipulada. Eu aparentava ser segura de mim mesma e me mostrava exibicionista, mascarando no entanto, um ego profundamente inseguro, tal como tinha encontrado em tantos homens que tinha conhecido ou com quem tinha tido relacionamentos. Ele tinha me dito numa das suas primeiras mensagens eletrônicas que tinha a vocação de curar, que ajudava pessoas infelizes a melhorar emocionalmente. Com efeito, quando começamos a falar, Ele deixou bem claro que, embora se sentisse atraído por mim, me encarava mais como alguém que podia ser ajudado do que como uma potencial companheira para a vida. Nesse tempo ele tinha uma escrava com quem era feliz, e embora esse relacionamento tenha terminado mais tarde (Ele tinha decidido terminar várias relações Dominante-submissa anteriores que havia julgado insatisfatórias por várias razões), Ele não estava “à caça de escravas” nem tentando me adicionar a qualquer espécie de harém sadomasoquista. Ele ajudava as pessoas numa base informal, segundo disse, sem cobrar nada pelos seus serviços, porque tinha uma paixão por essa missão, uma vocação. Isto tudo soava-me demasiado vago e New Age. Senti a mesma suspeita que sentiria por alguém que anunciasse ser um bruxo ou que podia se comunicar com os mortos. Assumi que esta pretensa terapia não era mais do que um escape para o ego Dele. E consequentemente decidi testá-Lo.

Sem realmente acreditar que Ele podia me ajudar emocionalmente (nunca ninguém na minha vida tinha sido capaz de me ajudar – todos os êxitos e todo o crescimento que eu tinha conseguido tinham sido apesar das pessoas à minha volta, não por causa delas), apresentei-Lhe, embora não me desse completamente conta que era isto que estava fazendo, um desafio. Em resposta à sua mensagem terapêutica disse-lhe em substância, e de um modo bastante cínico, “Está bem, Sr. Terapeuta, esteja à vontade para me dar todo o tratamento que quiser, mas não espere de mim resultados prodigiosos.” Muito mais tarde o meu Senhor me contou como tinha se divertido com esta minha afirmação “petulante” e como soube imediatamente, mesmo antes de começarmos, com que rapidez eu havia de mudar de idéias. Como é que Ele sabia isto sobre mim? Tendo lido cuidadosamente todas as minhas mensagens, e tendo uma vasta experiência com as pessoas, já sabia que eu era inteligente, motivada e muito sincera no meu desejo de submissão. Também já conhecia por esta altura muitos dos meus problemas e percalços: a realidade que eu não estava enfrentando, as coisas que eu estava assumindo sobre a vida e que não estavam dando resultados, os meus medos e os meus pontos sensíveis.

O me dar conta, como me dei rapidamente, de que Ele sabia tanto sobre mim foi apenas uma das descobertas extraordinárias que eu havia de fazer sobre Ele ao longo dos anos. À medida que a dinâmica Senhor-amante-escrava ia sendo adicionada à dinâmica terapeuta-paciente, comecei a ver que tudo o que Ele tinha dito sobre si próprio, incluindo aquelas coisas que eu acreditei que tinham que ser meramente expressão de vaidade Dele, porque eram boas demais para ser verdade, era exato e genuíno. Ele tinha realmente uma imensa confiança em si próprio e uma atitude positiva em relação ao que empreendia, atitude esta que era capaz de transmitir às pessoas que estava tentando ajudar. Assumia realmente a responsabilidade por tudo o que fazia, e cumpria sempre a sua palavra. Se dissesse que me ia telefonar às sete da noite de terça-feira, cumpria. Tinha uma personalidade absolutamente estável, imune a variações de humor e invulnerável à síndrome da conversão (depois de ler esta frase o meu Senhor disse com o seu humor sarcástico habitual – ele se tem na conta dum Oscar Levant dos nossos tempos – “Outra maneira de dizer que sou um fanático”). Tinha uma força emocional enorme e maturidade completa e uma ausência desconcertante de botões emocionais. Não ficava deprimido quando aconteciam coisas terríveis na sua vida, nem ficava exageradamente zangado ou perturbado por qualquer coisa que eu fizesse. O melhor de tudo é que não se levava a si mesmo ou a qualquer coisa na sua vida demasiadamente a sério, e constantemente fazia humor com tudo isso – uma coisa de que um egoísta a fazer o papel do “Senhor Lorde Dominante Onipotente do Universo” é totalmente incapaz. Estes fortes traços de personalidade permitiram ao meu Senhor ser razoavelmente bem-sucedido, e por vezes muito bem-sucedido, em tudo o que empreendeu. Em cinco décadas de vida foi escritor e editor de jornais e revistas; escritor de livros; fotógrafo, ator e músico; proprietário de um pequeno negócio; dirigente sindical e ativista de direitos humanos. Para além deste trabalho pago, arranjou sempre tempo para aconselhar quem o procurasse pedindo ajuda e, a maior parte das vezes, para os ajudar a efetuar mudanças pessoais profundas. Finalmente, é, desde há décadas, um feminista convicto e já se batia pelos direitos das mulheres muito antes de ter se tornado moda os homens falando a favor deles.

Passaram-se seis longos e maravilhosos anos, e estou extraordinariamente feliz com a escolha que fiz e com o rumo que a minha vida tomou em conseqüência dela. Se me fosse dada outra vez a oportunidade de decidir tornar-me uma escrava sabendo o que sei hoje, faria exatamente a mesma escolha. Olhando cuidadosamente para mim própria tal como sou hoje e para a pessoa que era antes de me tornar uma submissa life-style, posso afirmar que as minhas experiências como submissa melhoraram imensamente a minha vida e em alguns aspectos viraram-na do avesso. Sem a orientação experiente do meu Senhor, não acredito que nada disto fosse possível. Há seis anos eu estava incapaz de sair do pântano que eu própria tinha feito. Estava muito obesa e continuava a ganhar peso. Embora tivesse um emprego razoavelmente interessante, o meu próprio apartamento e um namorado, estava sem saber o que fazer da vida. Estava profundamente insatisfeita comigo mesma e me sentia impotente, incapaz de mudar uma vida que era perfeitamente funcional mas estava encravada em ponto morto. Tinha as minhas pequenas satisfações, coisas que me davam prazer, mas a maior parte destas tinham-se tornado vícios. Bebia quase seis cervejas todas as noites acompanhando os meus jantares enormes. Depois de meses deste auto-abuso corporal mal conseguia me arrastar para fora da cama todas as manhãs e ir trabalhar. Muitas vezes telefonava dizendo que estava doente e me sentia tremendamente culpada por isto. Comprava todas as revistas de moda e beleza assim que saíam e passava horas a olhar com inveja as belas manequins e a sonhar que me parecia com elas. Tal como comer e beber, a tentativa de me conformar aos ideais de beleza da sociedade era uma das maneiras que eu tinha de evitar o verdadeiro problema: os aspectos estéreis, irrealizados, da minha vida. Estranhamente, considerava-me feliz.

Agora tudo mudou. Perdi o peso que precisava de perder seguindo um plano de alimentação e de exercício saudável e lento (nem lhe chamaria uma dieta – era tão moderado e inclusivo). A maior parte das vezes já não sinto a compulsão de comer demais. Já não bebo demais, nem procuro um escape na bebida. Hoje em dia raramente leio uma revista de moda, pois as mulheres retratadas nelas já não me parecem tão atraentes ou desejáveis de imitar – pelo contrário, muitas vezes me pego pensando, quando olho para um desses sacos de ossos grotescos e pesadamente maquiados, que estas revistas tanto gostam de promover como o auge da atração, que é uma pena essas pobres modelos esquálidas não se parecerem um pouco mais comigo! Já não estou insatisfeita com a minha carreira: faço acontecer coisas. Raramente sofro emboscadas de resultados inesperados devidos à minha ação inconsciente, como antigamente sofria com regularidade. Já não ignoro o efeito das minhas ações no meu ambiente social ou de trabalho. Os meus esforços subterrâneos para sabotar a minha própria vida acabaram. Acredito que não estou tentando evitar ou ignorar nenhum aspecto da minha vida. Mais importante: quem sou e o que sou já não são mistérios obscuros para mim. Descobri quem sou, o que quero da vida, e cada dia aprendo mais sobre como o obter. Já não deixo ninguém passar por cima de mim, e consigo fazer coisas – como exprimir descontentamento para pessoas estranhas – atitude inconcebível para mim há seis anos. A minha emoção de fundo deixou de ser de depressão ligeira para se tornar de felicidade e paz comigo mesma. Já não estou à procura de um lugar na vida; cheguei em casa.

Apesar de o meu Senhor me ter ajudado a curar e a crescer, a maior parte do trabalho fiz eu mesma. Mas o que me permitiu desenvolver o meu poder de mudar a vida em aspectos tão importantes e positivos, quando tanta gente passa tantos anos em terapias formais sem obter estes resultados espetaculares, foi o fato de eu estar finalmente fazendo o que nasci para fazer, a fazer o que necessito de fazer na minha vida. Estou vivendo e experimentando, de modo positivo, sadio e inofensivo, as fantasias que tive durante anos de violação e cativeiro, perda de controle, sofrimento erótico e degradação. Depois de anos tentando compreender exatamente porque é que consegui o que consegui, concluí que quando alguém descobre o lugar a que pertence ou encontra alguma coisa que realmente adora fazer, muitos comportamentos negativos, incluindo hábitos arraigados, podem ser abandonados, porque não passam de sintomas duma profunda insatisfação com a vida.

Estou convicta que me tornei uma submissa apesar das minhas circunstâncias e experiências, e não por causa delas. Minha história de vida, é do tipo que transforma as pessoas em inválidas emocionais, não em submissas sexuais. O meu pai era um alcoólatra que morreu antes de eu atingir a puberdade. Enquanto foi vivo, ora abusou de mim física e emocionalmente, ora me estragou com amor e atenção. Depois dele morrer passei meses chorando todas as noites de solidão até adormecer. Por pior que ele fosse, foi a única pessoa na minha família que fez eu me sentir especial e amada. (Estou consciente que a minha vida adulta recria em alguns aspectos o meu relacionamento com o meu pai. Também estou consciente que para mim esta recriação é saudável e que a minha sexualidade envolve muitos aspectos que ultrapassam em muito esta representação infantil).

Pouco depois da morte do papai, a minha mãe me arrastou para fora do sistema público de educação e me enviou para um colégio católico. O fato de minha família passar a vida se mudando de um lado para o outro e eu ter que ir para uma escola nova a cada ano, somado ao choque recente de ter perdido o meu pai, teve o seu efeito em mim, e a essa altura eu tinha me transformado numa criança insegura, pateticamente tímida. Ficava parada contra a parede no recreio vendo as outras crianças brincar e inventava fantasias que me magoavam sobre a razão por que eu nunca era convidada a participar na diversão. Convenci-me que era muito estúpida; que era muito desajeitada. A minha família era demasiado pobre. Eu era uma estranha. Não era tão boa como os outros.

E além disso haviam as freiras. Peguem numa criança que já é insegura, com um sentido de si própria muito inadequado, e entreguem-na nas mãos de um bando amargo e meio louco de abusadoras emocionais, e vejam o sangue correr!

Durante estes anos de tortura a minha mãe recorreu a um emprego mal pago de professora para sustentar uma família com seis membros. A sua exaustão e a sua desilusão com a vida a tornaram emocionalmente distante e a impediram de notar sequer a minha infelicidade. Embora eu fosse uma criança dotada intelectual e criativamente, desenvolvi um sentimento de mim própria que continha elementos quase avassaladores de inferioridade e derrota. Me sentia impotente, sentia que quase toda a gente em meu redor era mais poderosa ou mais inteligente do que eu, que não era capaz de fazer nada, que era incompetente para tratar da minha vida simplesmente porque era uma mulher como a minha mãe. Embora uma parte de mim soubesse que os meus colegas do sexo masculino não eram, em quase nenhum caso, mais inteligentes do que eu, considerava as minhas próprias idéias e opiniões sem valor em comparação com as deles, e era encorajada a isto pelas minhas professoras. Os meus extensos recursos criativos foram postos ao serviço de inventar razões para os pensamentos dos rapazes serem sempre melhores do que os meus.

A minha saída do colégio católico, terrivelmente ferida, deixou-me desarmada para enfrentar a puberdade e a minha primeira experiência sexual: uma violação aos catorze anos. E com esta admirável introdução ao mundo maravilhoso do sexo no meu currículo, passei a minha adolescência e a maior parte dos meus vinte anos tão frígida como o Pólo Norte. A literatura feminista que comecei a ler por essa altura deu-me esperanças idealizadas sobre como as coisas deviam ser – sobre a maneira como eu, uma mulher jovem e forte, devia agir e sentir – mas não estava em posição de colocar estes ideais em prática. Não tinha um currículo de êxitos sobre o qual pudesse construir. Mas ainda estava viva muito lá no fundo, com um cerne inabalável de otimismo, uma esperança estúpida e constante de que tudo acabaria bem. É como se eu tivesse dentro de mim uma estrutura metafórica de aço, crua e sem forma, mas apesar de tudo, incapaz de ceder. Sei que consegui manter um lugar dentro de mim ao abrigo das coisas horríveis que a vida tinha posto no meu caminho, ao abrigo das crueldades da vida. Nesse lugar eu era feliz, nesse lugar eu tinha esperança de uma vida melhor, e nesse lugar vivi as minhas fantasias sexuais mais íntimas e mais preciosas.



* Título original: Violence in the Garden, publicado no site www.submissivewomenspeak.net


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