VIOLÊNCIA NO JARDIM * - parte II


Por Polly Peachum
Tradução por Vanderdecken
Adaptação para português brasileiro por rose



Uma vida assim, obviamente, não pode ser vivida sem ser examinada. As perguntas que as mulheres submissas se fazem, os colóquios interiores a que se entregam, surgem do mar cultural que as rodeia: as perguntas das submissas são em forma invertida as acusações que a sociedade lhes faz. Mas serão estas acusações justas, ou corporificam mitos em que a maior parte das pessoas acredita simplesmente porque lhes parecem a coisa mais simples e mais óbvia? Os próprios mitos têm que ser examinados. Será que aquilo que a sociedade assume sobre as submissas condiz com as experiências de vida pessoais das submissas? Os motivos daqueles que divulgam mitos e atitudes negativas sobre a sexualidade submissa têm também que ser examinados por qualquer mulher submissa que procure a sua própria aceitação das suas necessidades.

A mulher submissa mítica é fraca, incapaz de tomar decisões ou sem disposição para o fazer, porque não quer suportar os fardos normais e as responsabilidades que os outros adultos suportam, ou por causa de uma necessidade patológica de depender do Dominante. Diz-se dela e do Dominante que têm um relacionamento particularmente doentio e co-dependente.

Como é o caso com muitas crenças populares sobre pessoas e coisas, a crença na mulher submissa fraca é muitas vezes o exato oposto da realidade. De fato, a maior parte das pessoas seriam incapazes de manter uma relação de submissão life-style tempo todo, por mais que a desejem, simplesmente porque não têm a força de personalidade que isto exige. A maior parte das pessoas, quando pensam numa submissa, formam a imagem duma pessoa sem vontade própria, um capacho que pode ser pisado por qualquer um e não apenas um Dominante em particular. A verdade é que, apesar de existirem certamente submissas que são fracas e correspondem à imagem do capacho, também há muitas pessoas fracas envolvidas em relações convencionais. Existem pessoas auto-destrutivas - ponto final. Algumas são atraídas pelo sadomasoquismo, a maior parte não, mas todas elas irão até onde for preciso para encontrar a confirmação de que não têm qualquer valor.

Estas pessoas fracas constituem uma minoria entre as submissas conscientes, e são especialmente raras em relacionamentos life-style permanentes devido a um conjunto de razões inter-relacionadas. A mais importante destas é que as pessoas envolvidas em submissão life-style tendem a levar muito a sério a sua sexualidade e a dos seus parceiros potenciais. Isto dá lugar a uma longa e cuidadosa avaliação, tanto por parte da submissa como do Dominante, antes que uma união, especialmente uma união permanente, se forme. Seria terrivelmente difícil para uma pessoa fraca ou auto-destrutiva esconder estas tendências de um Dominante experiente, uma vez que sinais de uma auto-estima patologicamente baixa são uma das primeiras coisas que um Dominante experiente procura detectar - para a evitar - numa submissa que está aprendendo a conhecer (os Dominantes saudáveis evitam relacionar-se com submissas auto-destrutivas porque estão interessados numa verdadeira troca de poder, e o poder é uma moeda que uma submissa auto-destrutiva não tem em quantidade suficiente para trocar). Um relacionamento bem sucedido de submissão life-style requer uma medida de força e de dádiva altruísta, para a qual uma pessoa obcecada com ver confirmado o sentido negativo que tem de si mesma, não tem energia e, na qual, não está interessada. Uma obediência absolutamente sincera, do gênero que reverbera na alma quando o ato exigido é executado, é uma coisa rara e, mesmo para quem tem um talento natural, extremamente difícil de cultivar. Só uma mulher que tenha uma boa noção dos seus pontos fortes, e uma opinião positiva das suas capacidades, será capaz de aprender a obediência no grau e na forma requeridos numa relação sadomasoquista absoluta de Senhor-escrava. Só uma personalidade muito forte e muito persistente, será capaz de perseverar quando as coisas se tornam difíceis: quando não se deseja obedecer ou quando as ordens são dadas de forma humilhante, talvez até à frente de terceiros a quem ela gostaria de impressionar com a sua independência.

Outra característica do estereótipo da submissa fraca é considerar-se que as submissas “escapam” para um relacionamento life-style a fim de evitar as responsabilidades da vida adulta e a necessidade de tomar decisões que elas comportam. Não posso falar em nome de todas as submissas life-style, mas eu certamente não entrei voluntariamente numa relação de escravidão para toda a vida com o fim de me livrar da necessidade de tomar decisões. Tinha 30 anos de idade, vivia independentemente havia doze anos, tomando as minhas próprias decisões, e não tinha a menor dificuldade em cuidar de mim própria antes de me envolver com o meu Senhor. Pelo contrário, o que foi particularmente difícil para mim foi renunciar a tomar decisões. Estava habituada a tomar decisões nas minhas relações pessoais. Estava habituada a viver no meio de pessoas que gostavam que eu tomasse decisões, e tinha-me habituado a confiar no meu próprio critério. Confiar noutra pessoa para tomar decisões sobre o nosso relacionamento, para não falar em decisões sobre mim própria, que fossem tão boas como as minhas ou melhores, foi muito difícil de conseguir, e só uma longa relação com alguém que é realmente tão competente como eu me permitiu sossegar o espírito nesta área.

(Relacionada de perto com a imagem da submissa como capacho está a imagem do Dominante como um predador manipulativo, egoísta e fraco que tira vantagem dos mais fracos do que ele: uma pessoa que não consegue construir um relacionamento com alguém que lhe seja igual. É verdade que alguns homens são atraídos a um papel Dominante por razões de insegurança pessoal, por acreditarem que a única maneira que têm de atrair e conservar uma mulher é dominando-a; mas um Dominante life-style bem sucedido faz o que faz a partir duma fonte de auto-confiança que lhe diz que o que está a fazer é profundamente certo: que é essa a sua vocação. É a imagem, no outro lado do espelho, da sensação que a submissa tem de estar finalmente “em casa”. Os membros mais experientes das comunidades BDSM distinguem com facilidade entre um pretenso dominante que age por todas as razões erradas e o artigo genuíno. Uma pessoa insegura que não é realmente Dominante dá muitas pistas que podem ser facilmente interpretadas por uma submissa experientes, tal como um Dominador experiente consegue detectar uma mulher com problemas graves de auto-estima a tentar passar por submissa.)

Uma questão crucial sobre nós próprias que a maior parte das submissas tem que ter em consideração, e que é particularmente importante para uma feminista, é saber se nós, no nosso desejo egoísta de satisfação sexual bizarra, estamos perpetuando a violência contra as mulheres. O sexo sadomasoquista é encarado muitas vezes como uma forma de violência ritualizada: impessoal, brutal, desumanizante e objetificante. Dizem que perpetua a hostilidade contra as mulheres e que compromete o paradigma duma relação de amor e intimidade. É visto por muitos como algo que amplia as desigualdades de poder entre homens e mulheres e promove uma forma de sexo que é fria e emocionalmente distante. Estas idéias são de várias ordens e convém examiná-las uma a uma.

Será que uma submissão consciente tem alguma coisa a ver com a desigualdade entre os sexos? Não me parece. Na internet há seções onde qualquer um pode colocar anúncios solicitando sexo sadomasoquista. Tipicamente, as pessoas que colocam estes anúncios mencionam a sua orientação Dominante ou submissa. A maior parte destas mensagens é colocada por homens submissos que procuram mulheres dominantes. (Esta informação não é definitiva, é claro. Há muitos fatores que influenciam a disposição de procurar publicamente parceiros sexuais. Mas a realidade refletida na internet não sustenta a idéia de que os papéis desempenhados no sexo sadomasoquista reforçam os estereótipos sexuais - como não a sustenta nenhuma outra informação disponível.).

De acordo com Different Loving: The World of Sexual Dominance and Submission , “Muitos sexólogos aderem tradicionalmente à opinião de que os homens têm mais probabilidades do que as mulheres de terem fantasias sexuais sádicas… que as mulheres têm mais probabilidade do que os homens de terem fantasias sexuais masoquistas. Nenhuma prova, nenhuma história pessoal, sustenta estas conjecturas. Pelo contrário, o grupo mais numeroso nas comunidades [sadomasoquistas] é constituído por homens submissos e o generalizado interesse masculino pela submissão é um fenômeno observável.” Uma parte da crença de que a submissão feminina perpetua papéis sexuais estereotipados e promove a violência contra as mulheres radica sem dúvida numa confusão sobre a violência. Os que acreditam no mito da perpetuação afirmam que quando uma pessoa atinge outra com força suficiente para causar dor, o ato físico em si, independentemente de a pessoa atingida o ter pedido à outra e tirar dele grande satisfação, é violência no mesmo sentido que uma violação, um assalto ou um caso de abuso doméstico. Nem a intenção da pessoa “abusada” nem a do “abusador” são tidas em conta. Mas então, e a mulher submissa que erotiza a dor e os atos de força? Se estas são coisas que ela quer, que a afirmam cotidianamente e a elevam por vezes ao êxtase, podem ser comparadas seja de que maneira for, à violência brutal infligida à força a uma vítima desesperada e involuntariamente impotente?

A crença de que as submissas tomam parte em relacionamentos que são impessoais e desumanizantes é particularmente aterradora. Os que acreditam nisto tendem a ser indivíduos que não têm qualquer experiência com submissas ou com relacionamentos sadomasoquistas. Um pouco de experiência com estas pessoas os ensinaria que quem está envolvido em relacionamentos sadomasoquistas de longo prazo, tende a ser alguém com uma considerável experiência sexual convencional, e considera esta experiência insuficiente em termos de intimidade e de intensidade na comunicação pessoal (eu, por exemplo, tive um pequeno número de relacionamentos curtos, um relacionamento de 12 anos com um homem e outro de dois anos com uma mulher antes de me tornar uma sadomasoquista ativa). As mulheres submissas chegam geralmente à conclusão que o sexo sadomasoquista permite uma intimidade profundamente vivida e um sentimento de proximidade que o sexo convencional está longe de proporcionar. A “não-consensualidade consensual” que é um elemento central nos relacionamentos sadomasoquistas conscientes requer um nível de honestidade profundo, e até radical, entre Dominante e submissa para poder funcionar com êxito. Qualquer sadomasoquista bem sucedido aprendeu a praticar esta honestidade superdesenvolvida de um modo quase instintivo. Uma submissa que não esteja disposta a partilhar o que realmente sente ou que seja ativamente desonesta quando o chicote a atinge ou a humilhação começa, é geralmente alguém que um Dominante experimentado evitará, e é alguém que em todo o caso tenderá a falhar como submissa (do mesmo modo, um Dominante que seja desonesto e não-comunicativo torna-se perigoso e tende a falhar). A confiança e a honestidade, pedras angulares da intimidade, podem existir numa relação sexual convencional, mas nada na dinâmica destas relações as exige em grau elevado a quaisquer dos participantes. Mas como estas qualidades são obrigatórias para quaisquer praticantes bem sucedidos num relacionamento sadomasoquista consciente, a impessoalidade numa tal relação torna-se simplesmente impossível. Do mesmo modo, a desumanização, embora possa ser usada por um Dominante como uma técnica destinada a produzir fervor erótico numa submissa durante o sexo, condena qualquer relacionamento sadomasoquista a um fim prematuro se refletir a atitude real de um ou dos dois participantes.

Contudo, apesar de ser esta a realidade duma mulher submissa, muito mais quente e aconchegada do que os leigos suspeitam, tão exigente em termos de auto-confiança e força emocional, tão requintadamente satisfatória, muitas submissas debatem-se, por vezes de modo recorrente, com a questão de saber se os seus gostos sexuais e sociais refletem uma patologia grave, talvez relacionada com algum abuso físico ou sexual de que tenham sido vítimas na infância. Eu própria, com certeza, me debati com esta idéia.

Alguém que conhece muito bem os meus gostos e atitudes deu-me uma vez um botom em que se lê “Fui reduzida a ISTO!” Gosto muito deste botom, mas gostaria de modificá-lo um pouco de modo a fazê-lo dizer “Sempre quis ser reduzida a ISTO!”, uma vez que esta formulação descreve tão bem a história da minha vida.



* Título original: Violence in the Garden, publicado no site www.submissivewomenspeak.net


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