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"Eu dormi na sarjeta bêbado ao lado do Flaxaflói há 5 anos atrás": sobre elitismo na cena mendiga
05-nov-2007
por Flaxaflói Sannlegafriður

Tem marmanjo chorando porque o Dynamite Pub tem um puta 'descaso pela cena' deathrock, coisa que o Dynamite Pub raramente saberá do que se trata. O que aconteceu foi que a casa marcou um evento com essa gente deathrock e ninguém foi abrir o club no dia marcado. Mancada das grandes, eu reconheço, e isso já aconteceu com Flaxaflói quando ele era DJ e 'músico' na noite, pelo menos umas cinco vezes.
Eu poderia dar mil versões pra história: o dono do Dynamite arrumou uma namorada, a mãe dele ficou doente, ele se deprimiu assistindo novela e não quis ir trabalhar. Acontece a todo momento. Eu mesmo fazia essas versões quando esperávamos congelando na frente dos clubs por um salvador que abrisse aquela merda e torna-se possível "a cena acontecer". O interessante é que os atuais 'representantes ideológicos' dessa cena, com toda razão de xingarem, assumiram que o club é tipo de 'inimigo da cena', pois tem descaso pelo esforço dos outros de criarem e alimentarem esse Ser Abstrato (cena, cena).
Que é uma cena? Melhor, partindo do que eu suponho pela discussão acerca desse evento, o que é o que é: uma coisa que se alimenta e que se pode ter descaso por? Definem por cena, mas eu sugeriria uma criança, talvez.
(Talvez a infantilidade de alguém. Não se sabe.)

O problema é que ideológos são todos teleologistas de alta categoria. Eles concretizam seus gostos e estilos de música que acharam no baú da vovó (muitos que não existem mais, parte de movimentos culturais do passado britânico) em pessoas e tendências. Cena musical no Brasil não depende de contexto social, como acontece nos EUA e UK: isso poderia ser usado positivamente no Brasil. O foda do exterior é que todas as cenas se reciclam. Punk fazia sentido quando todos os jovens britânicos eram fodidos e não tinham futuro algum. Hoje eles podem estudar em Oxford e trabalhar na Europa inteira. Em New York a mesma coisa: se nos anos 70 e 80 punks viviam em uma das cidades mais violentas do mundo em gangues, hoje eles se amontoam em apartamentos de Downtown Manhattan pagando 3500 dólares de aluguel por mês. Há algo de deslocado nisso tudo, e as cenas realmente desvanecem e dão espaço pra outras no hemisfério norte. Hoje Deathrock mesmo é uma coisa que só acontece na Califórnia e em Berlin talvez, ainda que hajam boas bandas em NY (Empire Hideous, Brides; já o Din Glorious é uma bosta). Deathrock em NY existe uma vez por ano: quando tem Drop Dead Festival. O NY Decay mesmo só promove shows de Psychobilly durante o ano inteiro. O resto é nostalgia.

No Brasil o que há não é nostalgia, mas um idealismo para que "algo substancial" aconteça. Isso coloca as cenas underground brasileiras anos-luz a frente das americanas, na minha opinião, ainda que as segundas parecem se desenvolver muito mais. Eu pretendo explicar porque isso acontece.
Eu não posso negar que entre 2003 e 2005 realmente houve algo chamado Deathrock em São Paulo (agora eu não sei porque fui deportado do Brasil, de volta pro pólo norte). Deathrock-SP existiu pra mim enquanto não tínhamos espaço nenhum pra ouvir o som que gostávamos, invadíamos eventos da alta-burguesia (como RIP, Fetish4Fun) e chutávamos os DJs da cabine pra tocar Rudimentary Peni. Foi a época dos zines, das brigas com meio mundo, dos shows, bem antes de Deathrock começar a ter algo a ver com cena punk e psychobilly (que são cenas realmente fortes, mais fortes que as cenas de New York, por exemplo).

Uma tendência geral de "agitadores culturais underground" de cenas visando ganhar espaço é: eles desprezarão 90% dos integrantes de sua 'tendência' porque eles não tiveram as mesmas "intenções puras" que eles ao entrarem em cena, algo como lutar pela cena e conhecer tudo que define tal tendência (bandas, livros, história), o que geralmente é é o que define o que esses líderes fazem. É como um presidente passado de nosso país que disse que 90% do povo brasileiro é formado por patifes porque eles não se preocupavam em mudar o cenário político, agir em prol da nação e outras baboseiras-frases-feitas. Curioso é que, analisando bem, tudo o que ele estava querendo exigir do povo só é realmente possível de ser feito por políticos, que têm acesso a determinadas votações e congressos.
O mesmo vale pros ideológos. O newbie de sua cena sempre terá que passar por um tortuoso processo de adaptação e aprendizado da cultura local; esse indivíduo carregará a estigma do poser até ficar velho e poder dizer de boca cheia "Há 10 anos atrás eu já dormia na sarjeta bêbado, cheirando benzina ao lado do Flaxaflói". Essa atitude vale pro punk, gótico (principalmente), e agora também está a venda nas lojas em versão DeathRock.

Minha pergunta central é: o que é cena além de "pose"? O significado da palavra CENA em si é 'aparição, revelação via mera aparência'. ENCENAÇÃO, palavra prima de cena, trás ainda algo de falso, de simulação ou simulacra. OB-scené, que forma OBSCENO, é aquilo que não deveria aparecer e aparece.
O poser talvez é o que há de obsceno na cena, é o resto-que-é-maioria e que dá corpo a ela. Que paga entrada e lambe as bolas dos DJs. É o mal necessário. O ideólogo, DJ, artista e promoter são o cérebro da molecada toda, que visa direcionar a tendência pro lado que mais o apetece, que faz a seleção e, quando algo externo acontece, defende a cena jogando argumentos que talvez só façam sentido pra ele.

Mas esses personagens centrais sofrem de uma doença chamada teleologia, que é tentar ver uma ligação lógica em tudo que acontece, e mais, tentar supor ou agir em prol da concretização de um futuro promissor. O ideólogo de cenas undergrounds geralmente tenta aumentar seu público, tornar as bandas e manifestações culturais mais legíveis pelos seus fãs, trazer bandas de fora, apoiar as de dentro. Esse objetivo parece ser óbvio em todos os meios. Mas ele mesmo é contra esse seu objetivo, isso o contradiz e destrói aquilo que ele mesmo construiu. Todo mundo que vê um ideólogo crescer e ficar popular julga que ele "traiu a cena", o destino do underground é nunca sair do underground, do obsceno. Se tiver acesso à mídia ou à classe média paulista, já era, virou carne de vaca. Assim ele cria uma espécie de teleologia auto-reversiva, como quando que está evoluindo volta a involuir por um amor nostálgico ao um passado em que "só nós conhecíamos todas essas coisas há 10 anos atrás, aquela época que era realmente foda".
O Obsceno, o conhecimento restrito de algo proibido, que é a teleologia do ideólogo underground. Curiosamente é o mesmo conceito que define aquele que ele chicoteia como câncer de sua cena, o poser. Daria pra fazer uma análise psicológica de DJs, promoters underground e guitarristas de bandas: eles matam sua própria cena, no momento que ela está florescendo, em prol de um mecanismo de auto-defesa e vaidade por estar enchendo a lata em clubs pulguentos há mais tempo que os outros. O resultado final é que pouca coisa sobra, ainda que temos um certo idealismo que nos põe em uma certa vantagem em relação às já citadas cenas gringas.

Portanto: elitismo no meio de mendigos fodidos é o caralho, fuck the pain away, e por favor: dinamitem o Dynamite Pub.


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