POVO KRAHÔ-KANELA

A SAGA DE UM POVO EM BUSCA DO RECONHECIMENTO OFICIAL DE SUA TERRA ( 1 )
Kariny T. de Souza - Missionária do Cimi-Regional GO/TO

HISTÓRICO DO POVO KRAHÔ KANELA

 Por que Krahô-Kanela?

Este povo assim se auto-identifica por ser descendente de duas etnias distintas: Krahô e Kanela, povos  Timbira (tronco Macro-Jê), originários do Maranhão.

manifestação dos Krahô-Kanela em Palmas, Tocantins foto Wellington Antenor(28-outubro-2005) 

Décadas de migrações e sofrimentos

Devido as frentes de expansão das atividades econômicas  que usurparam seu território de origem  no local denominado Morro do Chapéu, município de Barra do Corda, MA,  os Krahô-Kanela vêm padecendo com as sucessivas migrações desde o século XIX.

Após violentos massacres, em busca de um novo território onde pudessem manter a unidade e coesão do povo, reconstruir sua historia, manter seus costumes e tradições, adentraram o Estado do Tocantins na década de vinte.  

A partir de então fixaram moradia em três localidades: Serra do Carmo (1933 a 1949), Mumbuca (1949 a 1959) e Atoleiro (1959 a 1960), porém, não obtiveram êxito nessas tentativas de fixação territorial. E, por conseguinte, conforme atesta o cacique Mariano “Fomos forçados a nos separar porque os fazendeiros tinham medo de nós tomar suas terras. A nossa comunidade sofreu ataques, agressões físicas, nos roubaram, nos ameaçaram. Além disso, fomos obrigados a perder a nossa língua para sobreviver”.

Mata Alagada - a `Terra Sem Males`

A esperança nasceu entre os Krahô-Kanela quando, em 1960, fixaram-se na terra Mata Alagada, entre os rios Formoso e Javaé, hoje município de Lagoa da Confusão, a cerca de 300 km de Palmas.

Nesta terra encontraram as condições necessárias para garantir sua sobrevivência física e cultural: diversificados recursos naturais, solo fértil para o nascimento e crescimento de novas gerações, espaço para  fortalecer a identidade indígena.

Assim,  Mata Alagada tornou-se a terra tradicional do povo  Krahô-Kanela, pois ele a ocupou e a apropriou segundo seu modo tradicional de  se relacionar com a terra – coletivamente, com o sistema de produção baseado no trabalho familiar, relacionando-a simbolicamente a seus mitos e ritos -  ou seja, segundo seus usos, costumes e tradições.

“A história do nosso pessoal quando nós morávamos na Mata Alagada, antes do homem branco chegar naquela região, era a de uma aldeia muito boa. Nosso pessoal não sofria nenhum tipo de doença, com muita alimentação, com muito peixe, muita caça, muita fruta nativa. Nós fazíamos nossas roças. Plantávamos bananas, cana, mandioca, batata, inhame, arroz, milho, feijão, fava. Plantávamos tudo para nossa alimentação e criávamos animais, como porco, galinha, vaca. Não tínhamos necessidade de irmos a cidade, e nem o povo da cidade tinha necessidade de ir até nós. (....)”  (Cacique Mariano Wekedé krahô)

Expulsos de sua própria terra 

Em 1977 os Krahô-Kanela, mais uma vez vítimas do nosso sistema econômico,  “engolidos” pelo latifúndio, foram brutalmente expulsos da terra Mata Alagada pela Cervejaria Brahma, sob alegação de ser a legítima proprietária da terra.

manifestação das mulheres em Palmas,
28-outubro-2005
foto Wellington Antenor

Apenas com os pertences pessoais, deixando pra trás roças plantadas, foram colocados em caminhões, sob vigia de homens armados,  e “jogados” na cidade de Dueré. Aqueles que não se sujeitaram a esta humilhação pegaram suas canoas, seguiram o percurso das águas e hoje vivem como ribeirinhos. Deu-se, então, nova dispersão do povo:

“Foi um momento de muito sofrimento, pois as famílias ficaram separadas, sem contato umas com as outras. Ficaram espalhadas até o momento, pois ainda não temos a posse da terra.”  (Cacique Mariano Wekedé krahô)

Se estivessem  todos reunidos, os Krahô-Kanela somariam aproximadamente 300 indígenas.

Na Ilha do Bananal

O grupo despejado na periferia de Dueré, composto por cerca de 90 pessoas e liderado pelo cacique Mariano, foi transferido pela Funai (a contragosto, pois temiam perder definitivamente sua terra tradicional, Mata Alagada) para o parque indígena da Ilha do Bananal, território Javaé/Karajá. O Órgão argumentava que esta transferência seria provisória, vigorando apenas o tempo necessário para a solução da questão fundiária com a empresa Brahma.

“A Funai nos levou para a Ilha pois, o fazendeiro que tinha nos tirado da nossa terra propôs, em uma audiência, pagar em dinheiro por nossa terra e nós não aceitamos a proposta, pois o que nós queríamos era a nossa terra. Quem recebeu o dinheiro do fazendeiro foi a própria Funai, quem afirma é o senhor Amiltom Geronimo Figueiredo, o Sub-intendente da Funai na época. Por não aceitar receber este dinheiro, nós fomos levados para a Ilha do Bananal, passamos 12 anos sob ameaças por parte da Funai, pois ela queria tirar nosso nome de índio para que ela não tivesse problemas com a justiça.”           (Cacique Mariano Wekedé krahô)

 Lá, eram constantemente humilhados e ameaçados  por servidores da Funai que, alegando ser a terra de outro povo negavam aos krahô-Kanela o direito de plantarem, de tirarem lenha, de reformar suas casas (que eram perecíveis, uma vez construídas de palha), e até de pescarem no rio (era permitida somente a pesca nos lagos). 

Foi também, por conseqüência  desta transferência que o grupo passou a adotar o nome composto Krahô-Kanela:

“Quando chegamos à Ilha do Bananal, a Funai disse que não era mais pra nós escrevermos mais o nome Krahô, e que a partir daquele momento teríamos que ser chamados de Kanela. Como a nossa mãe é Kanela, todos nós teríamos de dizer que éramos Kanela, pois a Funai dizia que os Karajá tinham brigado com os Krahô. Pois foi desta forma que nós começamos a nos chamar de Kanela.`

(Cacique Mariano Wekedé krahô)

O massacre

Uma série de violências foi cometida contra os Krahô-kanela pelo órgão que deveria atuar na defesa de seus direitos – e não violando-os. Indígenas relatam, ainda hoje traumatizados, os massacres e torturas-psicológicas  sofridos quando habitavam a Ilha:

Em 1991 nós sofremos um massacre feito pelo Administrador e seus funcion[arios. Um dia, na aldeia, por volta das 14 horas, chegou um grupo liderado por um dos funcionários da Funai, com um grupo de 80 índios armados, consumindo bebidas alcoólicas, chegaram até onde nós estávamos, fazendo um absurdo com valentias, ameaçando colocar fogo nas casas, riscando fósforos e colocando na biqueira da casa para nós vermos, armando as flechas e armas de fogo apontando para nós, mandavam nos calarmos, ficar em pé, firme,sem se mexer. Ameaçando bater e começaram a receber ordens dos funcionários da Funai, mandando que saqueassem a aldeia e revirassem todas as coisas, pegassem o que pudessem e destruíssem o que pudessem, e botassem o nosso pessoal pra correr.(...)

As mães faziam a guarda das crianças colocando-as no colo, outras pelos braços. Ameaçavam bater nas pessoas idosas.

As pessoas que sofriam de problemas cardíacos começavam a desmaiar, estávamos gritando com medo dos tiros. Eram tantos que não tínhamos condições de ouvir um ao outro. Não tínhamos para onde ir.(...)

Uma casa que estava fechada com cadeado, eles deram um tiro no cadeado e pegaram todos os pertences que tinha dentro. Até roupas de vestir, as panelas, as bacias, colchas, nos deixando sem o que comer.(...)

Eu estava grávida do nono mês, quando de repente, no meio do massacre, comecei a sentir dores e percebi que estava entrando em trabalho de parto... Com isso, a criança nasceu morta. Se ele estivesse vivo entre nós, seria um guerreiro dentro da nossa comunidade. Sinto muita falta dessa criança.

Em outro momento, em 1997, o Administrador e outros funcionários chegaram armados serrando uma casa nova que acabava de ser construída, pois a velha não segurava mais a chuva, e já não tinha mais parede em pé. Fizeram várias ameaças de tirar o nosso pessoal em menos de 24 horas da Ilha do Bananal. Sendo que nós não tínhamos para onde ir. Eu estava novamente grávida de 5 meses, comecei a sentir câimbra na barriga e com muita dor. No dia seguinte a criança nasceu morta. (...)”   (Alderes Hairiru Krahô)

Relegados à clientes da Reforma Agrária

Após esta atuação comprometedora, evidenciando a falta de compromisso da Funai junto aos Krahô-Kanela, esta renunciou suas atribuições e delegou ao Incra – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - a responsabilidade de alocá-los em outra terra.

Krahô-Kanelas em Duerê, TO

Assim, como “solução” ao impasse, os indígenas foram levados para o Assentamento Tarumã, no município de Araguacema, distante 630 km da Mata Alagada.

Nos dois anos que lá permaneceram não se adaptaram  às condições ambientais inóspitas e adversas,  tampouco à forma de ocupação da terra comum aos assentamentos e sem qualquer ligação simbólica com a história do povo.

“Neste lugar tinha muitas cobras que mataram muitas criações. Nosso povo vivia muito doente, sofrendo, passando muita necessidade. A terra era muito fraca. Nós não tínhamos recursos para gradear a terra, e nem adubos para plantar.

A água era contaminada e para beber era trazida de um cano vindo do colégio. Era somente uma torneira. Cada família tinha direito de pegar um balde pela manhã e outro pela tarde.”  (Alderes Hairiru Krahö)

A primeira retomada

Como viver nestas condições? Impossível!

Como esquecer Mata Alagada? Nenhum povo esquece sua terra tradicional!

Assim, em setembro de 2001, os Krahô-Kanela empreenderam a tentativa de retomar sua terra.

Alegria, expectativa, apreensão e esperança. Estes sentimentos os acompanharam durante os quatro dias em que pisaram novamente Mata Alagada,  até ser concedida a liminar de reintegração de posse contra os indígenas.

No Assentamento Loroty ou `Capão do Coco`

Transferidos, então para outro assentamento -  Loroty ou `Capão do Coco`,  em Dueré, cerca de 90 indígenas  passaram a ocupar os oito cômodos da sede de uma fazenda, dispondo apenas de meio hectare. Mas, estavam geograficamente mais próximos de seu sonho: estavam a cerca de 2 km da terra tradicional.

Tanto para os Krahô-Kanela, quanto para os assentados, foi feita  a promessa de que esta estadia seria provisória, pois, num prazo de dois anos, estaria concluído o trabalho  do GT (Grupo de Técnico), designado pela Funai para proceder os estudos relacionados à  identificação da terra indígena.

Grande exaltação acometeu os assentados ao saberem que os estudos  reconheceram a legitimidade da terra indígena Mata Alagada e apontaram que oito lotes do assentamento Loroty incidem dentro dos limites da área reivindicada (por direito) pelos indígenas. Tal conclusão vem apontar, também,  o erro cometido pelo Incra ao desapropriar lotes destinados  a reforma agrária de maneira irregular, já que se tratava de território indígena.

Os assentados reviveram, então, a mágoa e a inconformidade por terem sido outrora retirados da Ilha do Bananal, quando da demarcação da mesma. Agora, estavam decididos a não abdicar da nova terra em prol de  outro povo indígena.

O clima ficou tenso no assentamento e, no dia 02 de novembro de 2003, um grupo composto de 300 moradores do local bloqueou a entrada da sede, tomando como reféns todo o povo Krahô-Kanela, funcionários do Itertins, Funai e Incra, que concluíam o estudo fundiário da Terra Indígena Mata Alagada. Com isso, pretendiam expulsar o povo, usando como argumento vencimento do prazo estabelecido de dois anos para que os indígenas ali permanecessem até que a Funai solucionasse a questão (o prazo teria expirado em  30/10/03).

Assim, os Krahô-Kanela  foram impiedosamente expulsos pelos assentados.

O confinamento

Após serem, de forma constrangedora, retirados do assentamento Loroty,

mais uma promessa fora feita aos indígenas: eles permaneceriam por quatro dias na antiga Casa do Índio, em Gurupi, período em que a Funai alugaria uma terra para alojar a comunidade até a demarcação de sua terra.

Mas,  em condições sub-humanas, já estão confinados neste local há dois anos, sofrendo discriminação por parte da sociedade envolvente e sobrevivendo às custas de insuficientes cestas-básicas e doações, sem a liberdade e a dignidade de proverem a própria sustentação.

“Somos um povo sadio e robusto que tem força e vontade de trabalhar, cultivar a terra e dela tirar seu sustento. Somos impedidos de trabalhar na terra porque a lei até o momento não pode decidir nossa volta para nossa terra tradicional. Estamos aqui, sofrendo nessa nossa situação.”

(Alderes Hairiru Krahô)

A segunda retomada

Padecendo, indignados pelo descaso e omissão do Governo Federal, em junho de  2004 decidem novamente retomar a terra que lhes fora roubada.  Desta vez não estavam sozinhos; contaram com a solidariedade e o apoio  dos povos Apinajé e Krahô.

Ato Público em Tocantins, 28-outubro-2005
foto Wellington Antenor

Resistiram na terra  o quanto foi possível; não obstante, o desfecho desta batalha, mais uma vez, foi desfavorável aos  Krahô-Kanela:

“Ficamos na nossa terra por volta de dez dias, e novamente fomos surpreendidos quando vimos chegar os mesmos Oficiais de Justiça, trazendo novamente outra liminar para nós desocuparmos imediatamente aquela área. Nós pedimos que tirassem esse caso da Justiça Comum para a Justiça Federal. Mesmo assim, o Juiz Federal mandou a liminar para nós desocuparmos a nossa terra. Assim, mais uma vez retornamos à Casa do Índio.”

 (Alderes Hairiru Krahô)

 

Qual será o futuro dos Krahô-Kanela?

Para que se retirassem da Mata Alagada com alguma garantia de que os órgãos se responsabilizariam pelos encaminhamentos necessários à imediata regularização daquela terra indígena, foi realizada uma Audiência em Palmas, no dia 18 de junho de 2004, estando presentes o Procurador da República, representante da Funai de Brasília, o cacique Mariano, advogados de ambas as partes que reivindicam área Mata Alagada.

Nesta Audiência foi acordado que a Funai teria 45 dias para disponibilizar um imóvel, localizado na região dos rios Formoso e Javaé e indicado  pelos indígenas, onde os mesmos pudessem permanecer até que o processo de demarcação de sua terra fosse concluído.

Tal acordo consta em ata da Audiência referente a Ação Possessória no 2004.43.00.001418-1:

“(...)

4 – No prazo de 45 (quarenta e cinco) dias, a contar do momento em que lhe for indicado o imóvel capaz de acomodar os Requeridos, a Funai se compromete a formalizar procedimento administrativo para arrendamento de tal imóvel a fim de que os integrantes do grupo indígena nele permaneça até a finalização do procedimento de identificação e demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pela etnia Krahô-Kanela;

5 – A indicação do imóvel acima referido, que preferencialmente ficará localizado na região dos rios Formoso e Javaé, será feita por grupo representativo da comunidade Kraô-Kanela, devendo ser observada a estrita necessidade de alocação das famílias indígenas envolvidas neste processo;

(...)”

Mais um acordo que não foi cumprido.

Assim, desprezados pelo poder público, feridos por uma história marcada por expulsões, sempre jogados de um lado para outro, com a conivência do órgão que deveria zelar pelo cumprimento dos seus direitos, os Krahô-Kanela encontram-se novamente confinados na  Casa do Índio em Gurupi.

“Aqui, novamente estamos sem saber o que a Lei vai fazer conosco. Nestes quase trinta anos andando de um lado para outro, e isso, nunca nos tirou a lembrança da nossa Terra Mata Alagada. Ali, plantávamos nossa alimentação, criávamos nossas criações, vivíamos uma vida digna, tínhamos saúde, conforto, a nossa vida era a mata, as águas, corríamos, brincávamos.

Hoje, vivemos trancados dentro de um muro (...)”

(Alderes Hairiru Krahô)

“A lei tem nos deixado na gaveta do esquecimento”

(Alderes Hairiru Krahô) 

A identidade étnica

O Estatuto do Índio – Lei 6001/73 define como índio “todo individuo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional” (art. 3º, I).

Não obstante, a sociedade nacional muito tem questionado a legitimidade da identidade do povo Krahô-Kanela. Seriam seus membros indígenas de fato? A própria Funai apresentou grande relutância em reconhecer oficialmente este povo, pois isso implicaria empenhar-se na sua defesa, na aplicação de seus direitos, ainda que com parco orçamento.

Infelizmente, o preconceito disseminado em mais de cinco séculos de colonização e opressão das minorias étnicas (os negros e os indígenas) em nosso país e a hegemonia da cultura ocidental, perpetuaram  a visão (míope)  estereotipada do “índio puro”: aquele ser que vive no mato, que se pinta, que vive da caça e da pesca, que anda nu, que fala uma língua diferente da nossa... enfim, uma figura exótica, que corresponde mais  àquela que encontramos nos antigos livros de História do que à realidade.

Os povos indígenas foram obrigados a manterem contato com “os brancos”, a se relacionarem com a nossa sociedade, à medida em que íamos povoando (invadindo) seus territórios. Com este contato, muitos de seus costumes foram modificados por conta de nossa influência, assim também, como adquirimos um legado cultural proveniente da sabedoria indígena – visível na culinária, no vocabulário, no uso de objetos, etc.

Mas, esta troca foi e continua sendo muito desigual. Afinal, muitos povos indígenas perderam o elemento essencial a que está condicionada sua sobrevivência física e cultural: a TERRA. E, defendendo-a, muitos povos foram exterminados; outros continuam lutando com a maior arma que possuem: a coragem.

Tal qual os Krahô-Kanela que, obrigados a saírem de seu estado de origem,  devido a pressões econômicas, buscaram um novo território onde pudessem garantir sua sobrevivência sem  renunciar seus costumes, suas tradições, sua identidade indígena; encontraram-no quando pisaram na Mata Alagada e construindo uma relação com esta, a elegeram sua terra tradicional; mas, dela, foram violentamente expulsos.

 E, durante toda a trajetória deste povo, em inevitáveis contatos com a sociedade não-indígena perderam a língua, foram perseguidos, humilhados, discriminados, relegados à “caboclos” e à “assentados”, mas, na memória coletiva do povo sobreviveu a identidade indígena. São descentes de índios Krahô e de índios Kanela, portanto, são Krahô-Kanela. Esta identificação cabe a eles somente.

E, a partir da ratificação da Convenção 169 da OIT – Organização Internacional do Trabalho, pelo  Brasil, não há mais o que se questionar quanto a esta auto-identificação, pois a mesma  estabelece que: “A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos quais se aplicam as disposições da presente Convenção” (Art. 1º - OIT 169).

Ou seja, não cabe a nenhum Governo,  a nenhum órgão indigenista e  a nenhum setor da sociedade a responsabilidade de dizer “quem é índio e quem não é índio”; a ninguém é dado o direito e o poder de negar a identidade de um povo indígena  se este assim se reconhece.

O direito originário à terra tradicional

A Constituição de 1988 vem resgatar a dívida histórica que o Estado Brasileiro acumulou ao longo dos anos em que sua relação com os povos indígenas esteve pautada na perspectiva integracionista, em outras palavras, quando, então,  visava assimilar os indígenas à sociedade nacional, negando-lhes o direito de viverem como povos distintos.

Reza o  Artigo 231 (Capítulo VIII):

“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os

seus bens.”

Assim, nossa lei maior, não apenas reconhece que o Brasil é uma país pluri-étnico (garantindo que cada povo viva segundo seus costumes), como também torna explícito o direito dos povos indígenas sobre suas terras.

Quando a CF/88 reconhece aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, isso significa que, como primeiros habitantes destas terras, antes mesmo da criação do Estado Brasileiro, o direito à posse e usufruto dos índios não depende da demarcação ou de qualquer documentação. A demarcação é tão somente um processo que tem como objetivo delimitar as terras indígenas para que estas não sejam alvos de invasões. 

Em suma, mesmo que uma terra  não esteja demarcada ela já pertence, por direito originário, ao povo que a ocupa.

Muitos também ainda desconhecem o conceito de tradicionalidade a que se refere o texto constitucional - `direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam`- gerando um questionamento que é comumente apresentado por aqueles que contestam o direito dos povos sobre seu território.

 O “tradicional” não se refere ao tempo de ocupação da terra, mas, ao modo, as formas de uso e ocupação desta, que estará  sempre de acordo com sua especificidade cultural. Destaca-se que  também sempre haverá um profundo vínculo simbólico entre o povo e sua terra.

Isso quer dizer que, não importa se a ascendência dos Krahô-Kanela seja de povos oriundos do Maranhão, pois o que torna procedente a reivindicação pela demarcação da  Mata Alagada é que, após tantas peregrinações esta foi a terra escolhida pelo povo para sua fixação, foi a terra que lhes garantiu sua continuidade enquanto povo.

Esta não é um caso isolado e atípico. Inúmeros foram os povos que obrigados a mudanças freqüentes adotaram outro território para construírem  sua história. Citemos como exemplo o povo Krahô que, mesmo vindo do Maranhão, obteve o reconhecimento e a homologação de sua terra Kraolândia, localizada nos  municípios de Goiatins e Itacajá,  no nordeste do Estado do Tocantins. Da mesma forma, estudos apontam que no passado, um grupo de Xerente se separou daqueles que têm sua terra demarcada no município de Tocantínia, TO, indo para o estado do Mato Grosso. Hoje são reconhecidos como Xavante e também conquistaram o direito sobre a terra em que vivem, corroborando que o conceito de tradicionalidade se pauta na contemporaneidade das relações  entre o povo e a terra que ocupam e seu uso, e não em seu vínculo original (uma vez que este sofreu diversas interferências exógenas).

A própria Constituição assim define: São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (CF/88, Art. 231, parágrafo 1).

Desta forma, segundo a própria Constituição,  Mata Alagada é a terra tradicional do povo Krahô-Kanela. Isso é irrefutável, como ainda nos atesta o relatório da Antropóloga Graziela Rodrigues de Almeida, responsável pelo estudo do GT constituído para identificação desta terra:

“A terra reivindicada pelos krahô-Kanela é a Mata Alagada, uma vez que apesar do grupo ter habitado outros locais, entre eles o Atoleiro, a sua concepção, enquanto coletividade, de sua terra, seu local de pertencimento, é referente à Mata Alagada. É essa área que reúne todas as condições para sua reprodução física e cultural dos Krahô-Kanela e da qual o grupo não saiu espontaneamente como no caso das outras, mas foi obrigado a abandoná-la”

(Ofício GT 613/PRES, fls. 196)

A epopéia burocrática e a atuação da Funai

Já se passaram 21 anos desde que o povo Krahô-Kanela formalizou o pedido pela demarcação de sua terra tradicional. Nesse período poucos avanços foram obtidos, em detrimento ao sofrimento do povo, que se torna cada vez mais crescente.

Embora todos os estudos realizados na terra reivindicada a tenham credenciado como terra indígena, inclusive com provas materiais de artefatos e cemitério indígena encontrados na mesma, ainda que o último relatório antropológico a tenha apontado como terra tradicional do povo Krahô-Kanela, recomendando a demarcação de cerca de 30 mil hectares, a Funai vem, contrariando toda legislação vigente,  protelando, ou melhor, recusando-se,  reconhecer oficialmente os direitos do povo Krahô-Kanela.

Data de 1984 o primeiro pedido oficial remetido pelos Krahô-Kanela à Funai para que esta procedesse à regularização fundiária da terra Mata Alagada. Na ocasião denunciaram também as violências contra eles cometidas e a expulsão  da referida área.

vestígios da presença dos Krahôs-Kanela em Mata Alagada
(cemitério)

O Órgão indigenista instaurou, então, o Processo Administrativo Funai / BSB / 1701 / 84 com o objetivo de levantar elementos que fundamentasse o pedido de regularização da terra em questão. Coube ao Antropólogo do Museu Nacional do Rio de Janeiro, André Amaral Toral,  efetuar tal estudo, que, concluído, foi intitulado “Os ‘caboclos’de Dueré”.

Em síntese, o pesquisador afirma ser Mata Alagada uma terra indígena, destacando os vestígios materiais encontrados na mesma e que, outrora, esta poderia ter sido uma área também ocupada pelo povo Javaé.  Afirma ainda, que a presença dos Krahô-Kanela no local se deu de 1963 a 1977, portanto 14 anos de ocupação ininterrupta.

Acerca da titulação do imóvel (Lote no 02 do loteamento Mata Alagada) constatou-se que, à época, pertencente ao Estado de Goiás, foi liberado para venda em 1967, sendo titulado a particulares em 1968.

Portanto, devemos nos atentar que,  ambas as datas são posteriores a ocupação do povo Krahô-Kanela e que, a Constituição Federal de 1967, já apregoava serem da União as terras habitadas pelos silvícolas (art. 4º, IV), bem como garantia a estes o direito de “posse permanente das terras que habitavam” (art. 186).

Os procedimentos legais para regularização da terra permaneceram estancados até 2003, ano em que a Funai instituiu  GT – Grupo Técnico, coordenado pela Antropóloga Graziela Rodrigues de Almeida.

Em seu  relatório, entregue à funai em 15 de setembro de 2004, a Antropóloga aponta elementos incontestáveis quanto ao direito do povo Krahô-kanela sobre a terra Mata Alagada e propõe sua delimitação.

Ainda que o relatório do GT tenha apontado conclusão afirmativa quanto a legitimidade da terra indígena e, conseqüentemente, seu pertencimento legal ao povo Krahô-Kanela, a Funai não acatou tal conclusão. Seu posicionamento consta no Parecer no 194/CGID, de autoria da Coordenadora Geral de Identificação e Delimitação, Nadja Havt Bindá, que considera inconsistentes e frágeis as conclusões do relatório do GT.

Assim, a Funai já vem propagando, conforme nota  publicada no Jornal Correio Brasiliense de 29/07/05, pelo seu Coordenador Geral de Assuntos Externos, Sr. Michel Blanco Maia e Souza,  que a Funai não reconhece Mata Alagada como Terra Indígena, portanto sua regularização fundiária cabe ao Incra.

Opinião contrária foi emitida pela 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, através da  Nota Técnica no 67/2005, onde os Analistas Periciais em Antropologia, Marcos Paulo Fróes Schettino e Elaine Amorim, afirma que o relatório da Antropóloga Graziela Rodrigues de Almeida deixa claro a legitimidade da Terra Indígena, estando em consonância com o artigo 231 da Constituição Federal. Ainda, posicionam-se veementemente contrários à transferência de responsabilidade (da Funai) pela regularização da Terra Indígena para o Incra, o que consistiria em uma violação à  identidade e aos direitos indígenas.

Tantas evidencias tornam suspeita a recusa do órgão indigenista oficial em efetivar a imediata regularização fundiária da Terra Indígena Mata Alagada, ao ponto de ora transferir os Krahô-Kanela para uma terra de outro povo (sendo, portanto, a responsável pelo massacre ocorrido neste período), ora ser conivente com sua transferência para  assentamentos e, por incrível que pareça (seria cômico, não fosse trágico, ultrajante e ilegal), encaminhar o processo de regularização fundiária de uma terra indígena para o Incra.

Afinal, perguntamos: qual será o futuro dos Krahô-Kanela se o constituído órgão de PROTEÇÃO aos direitos indígenas transformou-se num órgão de PROTELAÇÃO dos direitos indígenas?

MANDE SUA MENSAGEM DE APOIO AO POVO KRAHÔ-KANELA

[email protected]

MODELO DE CARTA AO PRESIDENTE LULA

Excelentíssimo Senhor Luís Inácio Lula da Silva,
DD Presidente da República Federativa do Brasil

Excelentíssimo Senhor Presidente da República,

Dirigimo-nos respeitosamente a Vossa Excelência para Exigir uma imediata, justa e definitiva solução para o problema do assentamento dos indígenas Krahô-Kanela nas terras das quais foram expulsos, na região da "Mata Alagada", município de Lagoa da Confusão, estado de Tocantins, em 1977. Desde então os mesmos vem sendo instalados de maneira improvisada, pela Fundação Nacional do Índio - FUNAI, de um lugar para outro, de onde acabam também sendo expulsos, sempre de forma violenta e desrespeitosa.

 Hoje encontram-se jogados e amontoados ao todo 114 homens e mulheres, inclusive crianças, enfermos e idosos na Casa do Índio em Gurupi-TO,  que não apresenta mínimas condições para acolhê-los e atendê-los em suas necessidades básicas, apesar das seguidas promessas de rápida solução, que nestes trinta anos lhes tem sido reiteradas pelos órgãos públicos responsáveis por sua tutela.

 Em nome do Direito e da Dignidade, exigimos que o Estado Brasileiro reconheça os direitos daquela Comunidade sobre as terras que lhes foram subtraídas em 1977, com a complacência dos órgãos públicos, e lhes faça justiça viabilizando seu rápido retorno à região que nunca deveriam ter sido obrigados a abandonar, e a qual jamais renunciaram. Requeremos também que enquanto for necessário sua permanência na Casa do Índio em Gurupi, os Krahô-Kanela sejam atendidos com plena suficiência em suas necessidades básicas de alimentação, saúde,  educação e vestimenta. 

Confiantes no elevado espírito público e no senso de justiça e compaixão que caracterizam a vida pública de Vossa Excelência, temos certeza que o senhor, sensível à realidade dos despossuídos, irá atender aos justos reclamos que os Krahô-Kanela fazem-lhe por intermédio de nossa voz.

 Atenciosamente,

segue(m)-se a(s) assinatura(s)

email do Presidente Lula: [email protected]

 

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