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A casa ao p� do penhasco

O bom de morar entre as pedras, quando chove, � sentir o vapor mineral que sobe depois dos primeiros pingos e desaparece quando as rochas est�o completamente molhadas.

O barulho da chuva consola. Mas � triste ver os pingos explodindo nas pedras e a �gua escorrendo pelos veios vermelhos, t�o longe da terra.

A �nica m�sica que se ouve � o vento, mas nessa �poca do ano ele apenas sussurra durante o dia e se cala � noite. Nem parece o vento cortante do inverno, que assobia semanas a fio, limando os nervos.

�s vezes grito palavr�es, de p� na varanda. Ningu�m responde. Um desconhecido que errasse por esses lados na certa ia espalhar que um louco mora no p� do penhasco. Um outro, ouvindo contar essa hist�ria, acrescentaria que h� muitos anos um homem abandonara seu filho no alto de um penhasco, afogara a mulher e fugira para os bra�os da amante, na cidade vizinha. Outro ainda ajuntaria que o menino crescera falando com as pedras. E que, fato in�dito, as pedras n�o s� compreendiam o que ele dizia, como o consolavam com palavras de afeto. 

Nos fundos da casa de meus pais, caminhando descal�o sobre as pedras do pequeno rio, descobri ainda menino como os p�s dependem dos olhos.

Embora eu conseguisse chegar antes que meus irm�os na outra margem, pulando sobre as pedras, demorei muito at� aprender a manter o equil�brio numa �nica perna, com os olhos fechados, sobre uma pedra escolhida ao acaso. Eu acreditava que para manter o equil�brio era preciso esquecer os gritos, assim como o barulho da �gua.

Quantas vezes n�o fiquei de p�, depois que vim morar aqui, os olhos fechados, uma perna dobrada, sobre essas pedras cor-de-rosas, rid�culo e im�vel. Os ouvidos bem abertos, para que o sil�ncio passasse por mim como o vento pelos c�modos abertos de minha casa.

Ontem, tinha apenas escurecido, eu estava deitado sem fazer nada, flutuando entre fragmentos de id�ias, desejos, lembran�as. Uma cigarra continuava cantando apesar do sol ter se posto h� pelo menos uma hora. Dormi profundamente, embora n�o costume dormir t�o cedo. Sonhei com uma mulher que gritava do meio das pedras para a casa:

- O penhasco come�a ou termina aqui?

Subitamente confuso, sem conseguir resolver essa equa��o que me parecia um enigma terr�vel, n�o tive discernimento sen�o para dizer algumas bobagens como � preciso subir muito ainda at� o topo, ou muitos j� passaram por aqui, alguns nunca voltaram.

A mulher, visivelmente desapontada, virou as costas e desapareceu atr�s de uma rocha mais alta. No resto do sonho, essa esp�cie de eternidade que todos conhecemos, eu fazia c�lculos e mais c�lculos debru�ado sobre uma folha t�o grande como um mapa, mas n�o conseguia chegar a um resultado convincente. At� que rascunhei dois versos no meio daquele universo ca�tico de tra�os e n�meros. E tive certeza de ter encontrado a chave.

Acordado, no meio da noite escura, os dois versos ainda estavam frescos na mem�ria, os mesmos dois versos que agora, � luz do dia, ditos em voz alta, n�o significam nada.

Todas as manh�s estendo essa tira preta de papel � minha frente e penso: eis a morte. Assim, sobre o assoalho, o preto parece a delimita��o de um espa�o a ser preenchido. Nada mais enganoso. Resisto como posso � tenta��o de espalmar as m�os sobre ele. Seria belo, eu sei, colocar sobre suas extremidades algumas dessas pedras espalhadas pela casa, de diferentes formas e tamanhos. Ou escrever uma �nica palavra, qualquer uma, sobre sua superf�cie aveludada, pressionando as fibras contra as t�buas do ch�o. Belo, talvez, mas falso.

Depois de algum tempo torno a enrolar a tira preta, com cuidado para n�o deixar nenhuma marca no papel, e guardo o rolo dentro de um vaso de boca estreita, sobre a mesa.

Nunca me ocorreu enfeitar o vaso com uma flor, at� a primavera do ano passado, quando milhares de florzinhas silvestres desabrocharam nas frinchas do penhasco. O rolo negro, ent�o, deu lugar por alguns dias ao amarelo, ao branco e ao lil�s aquarelados dessas esp�cies vulgares que parecem brotar das pedras e que n�o vivem mais do que um par de dias.

 H� pedras t�o moles e farelentas que lembram o talco. Outras mais duras do que o ferro. A unidade absoluta de ambas, por�m, n�o esconde sua natureza composta. Foi mais ou menos isso que meu professor de ci�ncias escreveu no quadro h� mais de trinta anos, numa de suas primeiras aulas, nos obrigando a copiar em sil�ncio, como se por tr�s daquelas palavras houvesse um significado oculto, que ele naturalmente conhecia e ao qual nunca ter�amos acesso.

Aquele plat� � nossa esquerda, logo abaixo - ele na certa acrescentaria, caso estivesse aqui - por mais coeso que pare�a � a soma de milh�es de fragmentos. O segredo das pedras est� em dar integridade � dispers�o.

Mas � bem capaz daquele desgra�ado j� ter morrido e eu estar evocando um fantasma.

Voc� est� vendo aquela pedra maior, depois do caminho, ao lado de outras duas que parecem monges? Algu�m que nos olhasse trepado nela, al�m da casa, devorada pelo pared�o de pedra, veria montanhas �ngremes ao fundo, e � direita o vazio.

V�rias vezes apoiei os p�s na espinha dorsal daquela pedra, as v�rtebras irregulares descendo de ambos os lados, como as costas de um animal pre-hist�rico. Pois ou�a bem o que vou lhe dizer, minha sombra. Caso eu saltasse para o vazio, n�s nos separar�amos por alguns instantes, mas ser�amos obrigados a nos reencontrar pela �ltima vez, l� embaixo. Portanto, n�o me tente com esse seu debru�ar-se para o desfiladeiro.

A pedra calc�ria incrustada no dorso desta gigantesca pedra ferro parece um l�rio. Macia ao toque da m�o, t�-la como parte de uma amea�a constante sobre o telhado n�o me assusta.

Nas noites em que o sil�ncio � absoluto e o medo de morrer sozinho morde meus ossos, � no branco leitoso dessa pedra-flor que procuro descanso. Como um cego, tateio no escuro at� o extremo da varanda. Esticando o bra�o para fora, toco a pedra fria. Ent�o subo com a m�o at� sentir a maciez da cal na ponta dos dedos.

O s�bito contraste entre a dureza da pedra e aquele reduto de fragilidade me devolve a calma. O sil�ncio volta a emitir seus resmungos de costume e o medo, o medo finge que dorme, sob as pilastras da casa.

 Esta manh�, mal abri os olhos, uma alegria s�bita me arrancou da cama. Como se tivesse sido esfaqueado, o golpe me devolveu de uma s� vez todas as alegrias da inf�ncia e os desejos da maturidade.

Corri para fora de casa e comecei a escalar o penhasco pela encosta leste, parcialmente iluminada pelo sol. A umidade do orvalho noturno, sobre as rochas, gelava a sola dos p�s. Uma brisa suave, � medida que subia, refrescava os olhos. Mas esse frescor s� fazia despertar ainda mais meus sentidos.

Na metade da subida, pouco antes das duas pedras g�meas, o calor t�nue nas costas, me virei de frente para o sol. Com os olhos semi-abertos, contra a horizontalidade dos raios, pude ver a encosta deste e a dos outros penhascos se encontrando l� embaixo, no vale ainda coberto pela neblina.

No final da manh� cheguei ao topo. Minha sombra n�o era mais do que uma mancha irregular ao redor dos p�s. Tirei a roupa e, nu, abri os bra�os, girando ao redor de mim mesmo, � medida que gritava, lentamente, os nomes das pessoas com quem eu havia convivido. Embora o vento se encarregasse de dissip�-los, eu acrescentava outro e outro ainda, riscando com minha voz o sil�ncio do meio-dia.

- Francisco, Lisa, Lurdes, Ant�nio, Maria, Augusto, �ngelo, Dolores, L�cia, Matias, Laura, Gabriel...

De todos os lados, inclu�do o vazio do precip�cio, a natureza continuava indiferente. Mas essa indiferen�a era combust�vel para minha alegria.

 
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