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Cora��o do Brasil
A id�ia de que a afetividade � um componente do car�ter nacional h� muito parece
ris�vel. Tanto o dia-a-dia violento das grandes cidades como a satisfa��o consumista da
classe m�dia, para citar apenas dois exemplos, indicam que o brasileiro n�o � mais o
mesmo - e que sua cordialidade talvez n�o tenha sido mais do que uma miragem.
Bani-la do seu traballho, como se ela pertencesse �
pr�-hist�ria do homem tupiniquim, foi o que artistas de todo o pa�s fizeram por v�rias
d�cadas. Ela foi banida da poesia, onde a simples men��o � palavra emo��o provocava
calafrios nos vov�s concretistas, e ainda hoje irrita alguns disc�pulos perdidos. Banida
da pintura, que viu suas cores engolidas pela solid�o crepuscular de Iber� Camargo - em
oposi��o �s tardes ensolaradas de Alfredo Volpi. Banida da escultura, reduzida a
instala��es t�o descart�veis como os livros de auto-ajuda, ou condenada � contri��o
formal de uma pobreza lim�trofe, na figura e obra de Amilcar de Castro, um dos seus
maiores nomes. Banida tamb�m de boa parte da literatura, especialmente desse g�nero
orgulhoso que � o romance, cada vez mais reduzido � express�o farsesca e ir�nica do
que se sup�e seja a face do homem contempor�neo.
A afetividade s� resistiu mesmo na m�sica, e n�o estou
pensando na pieguice da m�sica sertaneja, ou nos cantores de d� de peito. Mesmo assim,
teve de enfrentar advers�rios de peso, como o Caetano de Verdade Tropical, livro
em que o compositor critica reiteradamente, por exemplo, a interpreta��o dram�tica de
Elis Regina e o que foi O fino da bossa.
O fato � que a express�o da afetividade nas artes por muito
tempo pareceu ingenuidade, falta de cosmopolitismo, coisa de caipira. Ou, pior, n�o
condizente com "a mesquinharia da alma humana", segundo a opini�o dos iniciados
nas coisas do esp�rito, entre eles esse tipo m�ope representado com perfei��o pelo
intelectual universit�rio.
� nesse contexto que prefiro pensar o filme Central do Brasil,
de Walter Salles. Pouco importa se o filme faz chorar; ele n�o foi feito com essa
inten��o, nem se reduz ao choro que eventualmente provoca. Mas o choro � um ind�cio de
que estamos assistindo a uma hist�ria que tem na afetividade um motor "capaz de
mudar nossa rela��o com a vida", nas palavras do diretor de Terra Estrangeira.
Num cotidiano cada vez mais politizado, embora cada vez menos
ideologizado, onde as solu��es tanto para os problemas nacionais como para os problemas
mais particulares parecem passar sempre pelo vi�s econ�mico, � um al�vio ver algu�m
acreditar que a afei��o tem uma for�a transformadora insuspeitada. E � surpreendente
que quem pade�a � afetividade, no filme, seja uma trambiqueira, Dora, que escreve cartas
para sobreviver, na rua, cartas que nunca s�o enviadas ao seu destino.
N�o � do policial, de nenhum outro representante do poder
p�blico, que o menino Josu� pode esperar ajuda. Mas de algu�m que s� tem o presente
como horizonte de expectativa, nunca o futuro. Ou seja, de um igual. Metaforicamente, a
viagem ao interior do Brasil em busca do pai diz bem o que discurso pol�tico e est�tico
algum teve a coragem e a compet�ncia de dizer com tanta clareza: que a afetividade ainda
� uma forma poss�vel de sobreviv�ncia - chame-se ela de generosidade, compreens�o
humana, ou - imposs�vel n�o correr o risco de usar esta palavra - o amor.
Central do Brasil j� foi acusado de ter sido feito para
ganhar o Oscar, mas isso � balela. Qualquer um sente que um tom �pico transborda da
tela, apesar de nada de grandioso estar sendo narrado. � justamente esse tom que engaja o
espectador, dilatando sua nacionalidade at� os limites do drama do menino em busca do pai
que ele nunca ir� encontrar. Como se se dissesse ao povo brasileiro que ele n�o tem pai,
que a m�e morreu, que s� o que lhe resta � viajar at� o cora��o do Brasil para
conhecer dois irm�os que ele sequer sabia que existiam.
Como n�o ver aqui um apelo � alteridade, � ressensibiliza��o
como um dos �nicos caminhos para chegar ao outro? Mas o diferencial do filme � que o
outro � descoberto � medida que se compartilha com ele sua dor, seu desejo, suas
cren�as, sua alegria, suas expectativas. N�o se trata aqui do outro resultado de
formula��es te�ricas, mas do outro de carne, osso e sentimentos.
Mais do que sugerir uma fr�tria, Walter Salles nos diz que ela
� poss�vel em meio a um extrato social comumente reduzido � indig�ncia. O belo no
filme � que os protagonistas s�o uma crian�a e uma trambiqueira, unidos pelo afeto. H�
muito n�o se via no meio intelectual brasileiro tamanha ousadia e otimismo, aliados a
tanta for�a est�tica - resultado em grande parte de uma compet�ncia cinematogr�fica
inquestion�vel.
E n�o h� pieguice nenhuma no filme, nenhuma miss�o de
catequizar, ao contr�rio, ele � de um realismo contundente. Um misto de Vidas Secas,
paradigma do que nos � doloroso mas essencial, e M�rio Quintana, s�mbolo da ternura de
que sempre fomos capazes. H� muito n�o se via esbo�ado um projeto t�o belo - e vi�vel
- para o Brasil. |