14/05
As colagens para a porta de vidro jateado est�o quase prontas.
Um cardume de peixes corta os vidros na diagonal, com um leve movimento em sentido quase
horizontal na parte inferior. Em meio aos peixes, uma mor�ia, ou cobra d�gua; uma
pequena estrela do mar; este peixinho branco, no canto inferior esquerdo, integrado ao
cardume, mas nadando contra a corrente, dono de uma inten��o s� sua.
15/05
Embora os esbo�os para meu pequeno para�so aqu�tico tenham
como destino objetivo o jato de areia sobre o vidro, n�o descuido das colagens, da
harmonia do conjunto. Algu�m que visse essas duas dezenas de peixes coloridos n�o
entenderia como esbo�o neles a transpar�ncia do vidro. Mas eu sei como dependo desse
olhar de vi�s.
O que d� unidade ao cardume, al�m do corte harm�nico, mas
incisivo, na vertical, � a linguagem com que cada peixe foi tratado. Embora eles sejam de
v�rias esp�cies, um conjunto de linhas semelhantes cria um jogo de auto-refer�ncias,
�s vezes mais �s vezes menos sutil. Espero que esse jogo, inclu�do a� o pequeno peixe
branco que nada em sentido contr�rio ao do cardume, seja capaz de fazer o olhar do
espectador saltar de um vidro para outro, como um paleont�logo que descobrisse em alguns
metros quadrados todos os ossos de um r�ptil extinto. E junto com essa descoberta viesse
a alegria.
De alguma forma, essa porta � a transposi��o para o vidro das
Cantatas e Partitas de Bach, que ou�o diariamente desde o come�o do ano. Usei o mesmo
recurso da repeti��o. Definido um padr�o formal, acrescentei a cada novo peixe
varia��es particulares, procurando criar uma rela��o de auto-espelhamento. Assim como
cuidei dos cortes, seja na delimita��o do corpo dos peixes, seja na sec��o dos peixes
com o limite do vidro.
16/05
As colagens para minha porta do para�so aqu�tico est�o
prontas. Agora � cuidar para que nada se perca no vidro. Ao contr�rio, com a
transpar�ncia espero conseguir uma delicadeza silenciosa comum aos cardumes. Mas uma
delicadeza cortante, aguda como o corte de uma arma branca.
Enquanto recortava, com o estilete, essas folhas de papel
japon�s - presente da Hideko - pouco me importava o significado simb�lico do peixe. O
que aconteceu foi a fus�o de minha m�o com o estilete e com o papel. Por alguns
instantes me entreguei ao prazer de mergulhar na mat�ria. E que bela mat�ria n�o s�o
essas folhinhas coloridas, com sua trama vis�vel de fibras.
18/05
Acabei de jatear dois vidros para teste. O resultado �
exatamente o que imaginei: a transpar�ncia viva da �gua e o jateado dos peixes, graduado
conforme a necessidade de definir linhas mais sutis.
Enquanto desenhava sobre a fita adesiva colada no vidro, um
prazer todo dos olhos e das m�os, confirmado pelo corte do estilete. Um prazer muito
semelhante ao de retirar a fita para ver o resultado, depois de voltar do vidraceiro.
Quero que olhando esta porta as pessoas sintam a fugacidade da
vida, mas tamb�m a beleza que ela cont�m. E que as crian�as vejam nela um jogo, uma
brincadeira como tantas outras que tornam mais alegre a inf�ncia.
24/05
Os oito vidros menores da porta est�o prontos. Nos �ltimos dias
vivi somente para eles. Agora faltam os dois maiores, laterais. Uma tristeza dif�cil de
vencer. O que sobrou da minha alegria canalizo completamente para meu trabalho e para meus
filhos. � significativo que este cardume animado por uma alegria silenciosa tenha nascido
de uma colagem como "o car� preto da debilidade", feita sobre uma p�gina do
livro Oriental flowers. Como se minha alegria poss�vel decorresse do reconhecimento de
minha debilidade.
25/05
Enquanto esperava que dois vidros fossem jateados, encostado no
batente da porta, um avi�o a jato riscou o c�u azul. Lembrei da alegria que essa vis�o
provocava na minha inf�ncia. A alegria completa de quem se esquecia todo naquele risco
branco de fuma�a que ia desaparecendo aos poucos, at� sumir completamente. E o azul
limpo, outra vez.
Com o �ltimo vidro da porta, o lateral, de quase um metro e
meio, jateado nas m�os, a impress�o de que basta respirar fundo e eu me despeda�o com
ele. Mais uma vez essa insuport�vel sensa��o de fragilidade. Mas a porta com o cardume
silencioso est� pronta. Agora � a vez da luz fazer sua parte do trabalho. Espero
sinceramente que ela n�o me contradiga. Do contr�rio estaria tudo perdido.
28/05
Refiz pela terceira vez um dos vidros jateados. Finalmente
encontrei a solu��o certa. Enquanto voltava da vidra�aria, caminhando, tirei a fita do
vidro. Alguns pingos de chuva marcaram momentaneamente um peixe e parte da cobra
d�gua.
Parece absurdo, mas quanto mais deficiente me reconhe�o, quanto
mais desarticulado, impaciente, exagerado, mudo e incoerente, mais meu trabalho se torna
claro, impressivo, belo. � absurdo, mas de certa forma tranq�ilizador, que meu trabalho
diga com tanta clareza aquilo que sou incapaz de articular.
29/05
Acabei de acompanhar a instala��o da porta de vidro. Fiquei
satisfeito, embora pudesse continuar trabalhando nela por muito tempo ainda. Mas �
preciso p�r um ponto final no trabalho quando o cerne do que se pretendia j� foi dito. O
cerne aqu�tico do meu ser.