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Um tra�o inconfund�vel

 A morte � um lugar-comum, mas como d�i. Poty enfrentou a morte da �nica forma digna de um artista, trabalhando, como fizeram Iber� Camargo e Henri Matisse.

Todos que o visitavam, amigos ou compradores, o encontravam sempre sentado a uma enorme mesa de jantar, n�o almo�ando, que a sala de seu apartamento-atelier na rua da Paz, seu pen�ltimo endere�o, tinha outra utilidade. Era debru�ado sobre uma confus�o de pap�is, livros, jornais, dezenas de penas para desenho, e potes de tinta nanquim, que ele desenhava. E nunca um artista brasileiro desenhou tanto.

Poty ilustrou praticamente todos os grandes escritores nacionais, de Machado de Assis a Dalton Trevisan. Apesar de grande parte de sua obra ter sido encomendada, ele desenhava por um misto de prazer e necessidade. Lembro de ter entrado em um dos quartos do seu est�dio, que servia de biblioteca, e encontrar pilhas de autores ilustrados sem que ningu�m houvesse encomendado nada. Ilustra��es in�ditas que aos poucos devem vir � luz.

Tudo parecia incit�-lo ao desenho: os objetos ind�genas, a hist�ria da imprensa, a ida do homem � lua, cenas de cinema, a hist�ria dos imigrantes brasileiros, a dan�a, o teatro, a m�sica, mas principalmente os livros. Quantas vezes n�o o vi sair da Editora Hatier carregado de livros, livros sobre quiromancia - os desenhos das m�os eram outro incitamento -, cinema franc�s do anos 40, um pequeno livro sobre la p�tanque, a paix�o dos velhos franceses, e tantos outros.

Mesmo quando projetava vitrais, murais de cer�mica e pain�is de cimento - transformando-se sem d�vida no maior muralista brasileiro, e num dos mais importantes do mundo - Poty desenhava. Os esbo�os se sucediam com uma for�a obsessiva de quem procura extrair o melhor de si. Como desenhava quando projetava cartazes, calend�rios, capas de livros e revistas, convites e cart�es postais. Este homem que dedicou a vida ao desenho, acabou imprimindo seu tra�o na cara do Brasil.

Com seu tra�o duro, de quem aprendeu a desenhar na goiva, na madeira, na pedra, ele acabou estabelecendo uma unidade toda particular entre v�rios escritores, por mais distintos que eles fossem entre si, mas principalmente entre v�rios aspectos da cultura brasileira. O que Jos� de Alencar pretendeu com o romance - abarcar o pa�s inteiro, inten��o seminal na constitui��o da nossa identidade -, Poty acabou fazendo. N�o por um projeto deliberado, mas pelo prazer de se debru�ar sobre tudo que por alguma raz�o despertasse sua curiosidade.

E o que aqui parece exagero - principalmente se lembrarmos a timidez e a mod�stia do artista - n�o � mais do que uma constata��o ineg�vel: a de uma vida dedicada integralmente ao trabalho.

Mas � a qualidade do tra�o de Poty que d� visibilidade � amplitude de sua obra. Ao lado dos grandes desenhistas do s�culo - como George Grosz, Max Ernst, Matisse, Paul Klee e sempre Picasso -, ele tornou-se dono de um tra�o inconfund�vel, duro e incisivo, como se estivesse gravando e n�o desenhando sobre o papel.

� � gravura que se deve a personalidade da linha de Poty. O que � primeira vista parece nervosismo � o fluxo da respira��o de seu tra�o. Por isso a predile��o pelas penas de metal como instrumento de desenho, daqueles modelos antiquados, ao inv�s das modernas canetas-nanquim. Ao contr�rio destas, a pena pode ser manejada como um violino, segundo suas pr�prias palavras. Basta uma leve press�o e o tra�o fino se torna mais grosso, �spero, incorporando as hesita��es e os desejos que movem a m�o.

Mesmo o papel freq�entemente usado por Poty, o grain canson, contribui para acentuar a particularidade de seu tra�o. Sua textura rugosa - ele � vendido como um papel para aquarela - n�o � a mais indicada para o desenho, pelo menos para o desenho de um aprendiz. Esse detalhe revela a que ponto ele sabia extrair dos seus instrumentos de trabalho o que queria.

Napoleon Potyguara Lazzaroto tornou-se um virtuose do desenho � for�a de se exercitar, mas ao mesmo tempo por utilizar com uma particularidade extrema os instrumentos do seu of�cio. Por isso seu tra�o consegue ir com uma naturalidade espantosa do rosto de S�o Francisco ao tubo do Ligeirinho. De uma briga de cangaceiros a um astronauta. Das mulheres no mangue ao retrato da pr�pria m�e. E sem perder a identidade. Talvez ele seja o �nico artista brasileiro que tenha conseguido representar uma arauc�ria sem cair na pieguice - e foram tantos os que tentaram!

Mas � preciso lembrar que o artista que chegou a tal ponto de depura��o era um homem do povo, um homem simples, um doce, como ele era carinhosamente chamado pelos amigos. Imposs�vel n�o lembrar, com tristeza, que toda uma gera��o de artistas brasileiros, que contribu�ram para que o pa�s tivesse uma cara mais humana e bela, est� morrendo. Ant�nio Callado, Darcy Ribeiro, Iber� Camargo, Carib�, Tom Jobim... Longe de sermos nost�lgicos, temos a obriga��o de reconhecer, com a mais viva alegria, que juntos eles alargaram o imagin�rio desse pa�s.

Poty foi um deles, o mais humilde. Qualquer um que o tenha conhecido pessoalmente sabe da sua simplicidade, mal disfar�ada pela sua fala econ�mica. Ele sabia que o que move o ato de criar n�o s�o desejos grandiloq�entes, mas a necessidade, quase obsessiva, de trabalhar.

Numa das vezes em que o visitei, entrando em um dos c�modos do est�dio, vi quatro ou cinco portas de guarda-roupa encostadas na parede, nas quais ele havia esculpido v�rios S�o Franciscos. De mudan�a, ele deixou o guarda-roupa, mas trouxe as portas. Sobre um balc�o uma cabe�a de isopor. Perguntei:

- Molde para alguma pe�a nova, Poty?

Ele respondeu:

- N�o, isso � pra descarregar!

Ainda hoje me surpreendo com a resposta. Ent�o era dessa necessidade que nascia seu trabalho? O que carregava aquele homem que precisava tanto ser "descarregado"?

 
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