Assim como � uma bobagem reduzir a cidade de S�o Paulo ao caos
e � inviabilidade, � uma bobagem ainda maior dizer que Curitiba � uma cidade tranq�ila
e planejada. Em ambos os casos est�-se dizendo no m�ximo meia verdade.
� justamente por causa de seus problemas, e da forma como eles
s�o resolvidos, naturalmente, que s�o Paulo se tornou a cidade mais cosmopolita do
pa�s, mais interessante de se viver. Como Nova Iorque, Paris, T�quio e Londres, S�o
Paulo fugiu ao controle do Estado. E � por isso que ela pertence mais aos seus moradores.
Se por um lado a deteriora��o do meio urbano chega ao extremo, - e dificilmente se
encontrar� solu��o para os males da viol�ncia, da mis�ria, da explora��o da m�o de
obra infantil e etc -, por outro seus moradores est�o permanentemente experimentando
novas formas de sobreviv�ncia. E quando digo sobreviv�ncia, n�o estou pensando s� nos
exclu�dos da sociedade, mas em todos aqueles que reinventam seu dia-a-dia. Seja atrav�s
do seu trabalho, seja de suas id�ias e sentimentos.
Viver em uma cidade como S�o Paulo significa correr riscos
constantes, mas talvez por isso mesmo o dia-a-dia de seus moradores seja mais inventivo.
Embora as solu��es encontradas n�o sejam quase nunca planejadas previamente, elas
est�o ligadas ao imagin�rio de seus habitantes. Al�m de serem particularmente belas. De
uma beleza quase feia, discreta, como a de suas meninas. Planejador urbano algum, por mais
competente que fosse, seria capaz de agregar ao concreto armado ou �s vias p�blicas o
sentido que Caetano Veloso atribuiu a elas, e que est� indissoluvelmente ligado ao
imagin�rio da cidade.
O que as grandes metr�poles possuem em comum � a capacidade de
produzir id�ias, e portanto de intervir simultaneamente no espa�o urbano. � essa
capacidade que falta a Curitiba, apesar de todo o esfor�o oficial. O Estado aqui pretende
ser o �nico promotor do imagin�rio da cidade. A ele se alia um empresariado medroso,
incapaz de interferir por conta pr�pria na comunidade, quanto mais de se sentir
respons�vel pelas chagas sociais.
� surpreendente, por exemplo, como uma capital que tem ilhas de
excel�ncia publicit�ria possui ainda uma id�ia retr�grada de marketing cultural. E que
no m�ximo investe na imagem ecol�gica que Jaime Lerner criou para a cidade. Um
investimento sem risco, politicamente correto, e quase que subsidiado pelo Estado. �
claro que as �rvores e os p�ssaros merecem todo o nosso respeito, respeito ali�s que
j� existia antes em muitos de n�s.
O Canal da M�sica, onde pude assistir aos belos solos da
violoncelista Sharon Robinson, na semana de inaugura��o, o Parque Tangu�, com a enorme
pra�a dedicada a Poty Lazzaroto, por mais concretos que sejam, e inegavelmente belos,
n�o s�o capazes de criar um imagin�rio aut�ntico da cidade. Uma cidade n�o se faz
bela, muito menos apaixonante, por causa da engenhosidade de seus administradores. Ela
n�o pode excluir os sonhos dos seus moradores, suas aspira��es, seus projetos de vida,
sob pena de desprezar o que eles t�m de mais particular, sua identidade.
Hoje a identidade de Curitiba parece reduzida aos manequins que o
governo insiste em ver no lugar dos seus habitantes. Por isso essa gana de se apropriar
dos artistas curitibanos assim que eles morrem. Pouco importa se o imagin�rio de suas
obras n�o coincide com o imagin�rio oficial da cidade. Muito menos se eles foram
ostensivamente ignorados em vida. � preciso recicl�-los, como no programa lixo que n�o
� lixo, at� que eles ressuscitem � imagem e semelhan�a desse nosso Estado prepotente e
narcisista.
Penso sempre em Dalton Trevisan, n�o como quem resiste �
apropria��o oficial, mas como quem v� o mundo com olhos pr�prios, como quem esperneia
a ser reduzido ao que n�o �. Penso na sacanagem que essa cidade fez com Poty. Penso que
n�o � preciso nem ser muito rigoroso para ver que Leminski � mais do que uma Pedreira,
ir�nico destino para quem tentou desesperadamente se livrar dos concretos, e seus poemas
frios como as pedras. Mas claro, nenhum deles � ou foi ing�nuo. O poder de barganha
oficial encontra poucos advers�rios de peso.
� claro que � interessante ver uma exposi��o de
"arquitetura ornitol�gica", no hall de entrada da SEC, mas mais importante do
que casinhas de passarinhos seria ver esclarecido o assassinato do diretor curitibano
Cleon Jacques. E nesse ponto a reabertura do Teatro do Parque S�o Louren�o, agora sob o
nome do diretor e ator violentamente assassinado em 1996, � mais do que correta. Embora
n�o reparadora da sua morte, e da de outros homossexuais, principalmente ligados ao
teatro, mortos nas mesmas circunst�ncias.
Embora um marketing eficaz e bons restaurantes tamb�m sejam
indicativos de qualidade de vida, falta a Curitiba bom humor, descontra��o para al�m
dos preconceitos de sexo, cor e idade. Mas sobretudo falta respeito ao imagin�rio dos que
aqui vivem e produzem, principalmente dos artistas, inclu�dos a� os pintores, cantores,
m�sicos, poetas, romancistas, cr�ticos, core�grafos, atores, diretores de teatro,
escultores, jornalistas, fot�grafos...
Aqui quase tudo parece se comprazer em virar cart�o postal. �
essa beleza posti�a, que decora tanto as pra�as como as salas da classe m�dia, que faz
a fama de Curitiba no resto do Brasil. � ela que atrai escritores, jornalistas,
empres�rios. Mas felizmente quanto mais a cidade for invadida por estrangeiros mais
chances ela tem de mudar. Talvez a diversidade escandalosa de interfer�ncias no tecido
urbano que sobra a S�o Paulo, ao Rio e � Bahia, falte a Curitiba. Nada como um bom
carioca contra o humor ranzinza da Boca Maldita, ou como a eleg�ncia discreta de uma
paulistana contra o topete das nossas meninas. Nada como a generosidade baiana contra a
frieza que faz com que os membros da tradicional fam�lia curitibana se comportem como
pequenos ex�rcitos, soberbos e ignorantes.
Se fosse comparar Curitiba a uma mulher, diria que ela cuida
tanto da apar�ncia que dificilmente nossos olhos conseguem enxergar seu corpo. A
atra��o que ela exerce sobre n�s, mas principalmente sobre os estrangeiros, � a mesma
que essas menininhas de oito anos vestidas de Xuxa, Ang�lica ou Carla Peres exercem sobre
os pais. Da� sua vulgaridade infantil e ostentat�ria. Que dist�ncia entre esse
simulacro de mulher e o corpo desej�vel da mulher madura!