Soaria como uma heresia dizer que a capital ecol�gica do pa�s � uma
cidade chata. Melhor dizer que ela �, �s vezes, ma�ante. Nos domingos � tarde, por
exemplo, quando toda a popula��o gastronomicamente ativa parece ter almo�ado polenta e
frango - a 10 reais por cabe�a! - em Santa Felicidade, ou peixe na Mateus Leme, ou
espeto-corrido nas churrascarias da Av. das Torres. Mas isso parece implic�ncia, afinal
� dif�cil, especialmente para um curitibano, imaginar uma cidade onde os domingos �
tarde n�o sejam chatos.
Essa cidade talvez seja ma�ante, ent�o, porque a sala onde a
maioria das fam�lias mais tarde se re�ne, para assistir aos Fant�stico, est�
invariavelmente decorada com os mesmos m�veis e os mesmos quadros? Em que outro lugar �
h�bito largamente difundido combinar o sof� da sala, enfeitado com as inevit�veis
almofadinhas de bico, com um quadro da mesma cor, e de qualidade duvidosa?
� ineg�vel reconhecer que, com insignificantes varia��es, os
m�veis, objetos e quadros s�o iguais aos encontrados na maioria das casas e apartamentos
da nossa orgulhosa classe m�dia. E o morador pode ser tanto um contador como um
esclarecido professor universit�rio, um lojista ou um vaidoso profissional liberal. Mas
tamb�m a isso se poderia protestar, acrescentando que esses h�bitos pertencem � classe
m�dia brasileira, n�o sendo privil�gio nosso.
* * *
Mas e as pra�as? Cada vez mais enfeitadinhas com
postezinhos, relojinhos, arquinhos, canteirinhos de florezinhas, tudo muito limpinho. A
n�o ser pela pobreza e indig�ncia dos �nicos que se atrevem a sentar nos bancos de
madeira: os mendigos, os desempregados, os vagabundos, numa esp�cie de resist�ncia surda
� "revitaliza��o" dos espa�os p�blicos - que mais parece estrat�gia de
expuls�o dos pobres e marginalizados para a periferia. Por que raramente uma m�e comendo
um sandu�che com o filho? Onde um senhor respeit�vel lendo um livro? Nenhum casal de
jovens namorando na grama? Melhor preservar o decoro, o respeito.
A bola da vez � a Pra�a Os�rio, que gra�as � interven��o
oficial h� algum tempo organizou o servi�o dos engraxates, enfileirando aquelas cadeiras
vermelhas horrorosas, mas que tamb�m expulsou dali os meninos que viviam desse of�cio,
com suas prosaicas caixinhas de madeira. Se pelo menos eles estivessem na escola, mas �
mais sensato acreditar que eles fugiram para a Tiradentes, para a Carlos Gomes.
Com a divulgada instala��o de um caf�, pr�ximo ao chafariz,
mais do que oferecer um servi�o o que se conseguir� � expulsar dali os hippies, que
exp�em produtos artesanais e balangand�s na cal�ada, como tamb�m as prostitutas
ocasionais, os desocupados, os b�bados.
* * *
N�o que n�o interesse a essa cidade resolver seus
problemas sociais, mas parece que ela prefere faz�-lo varrendo para a periferia a
mis�ria, como quase todas as grandes cidade brasileiras fizeram. E nisso ela n�o
demonstra a mesma criatividade que a tornou famosa por seus parques, pelo programa
diferenciado de coleta de lixo e pelo sistema integrado de transporte coletivo. Se por um
lado essa estrat�gia de exclus�o mant�m a imagem de para�so urbano, por outro ela
acentua ainda mais a desigualdade social.
A despeito de toda a propaganda, � dif�cil acreditar que a rua
da cidadania descentralizou servi�os essenciais, que os postos de sa�de v�o al�m de
cuidar de gestantes, medir a press�o e distribuir alguns rem�dios, que os far�is do
saber alteraram o perfil cultural da popula��o carente. Quem acredita nisso, sem
hesita��o, provavelmente nunca p�s os p�s nesses lugares, n�o sabe onde a empregada
mora, nem conhece os pontos finais dos �nibus alimentadores.
Quem n�o ouviu pelo menos uma vez que n�o se deveria alardear
as qualidades da cidade para n�o atrair bandidos, assaltantes, nordestinos pobres?
Afirma��es como essa, desdobramento natural da fala oficial, s� fazem acentuar a id�ia
de que Curitiba � uma ilha de prosperidade. Ou os problemas teriam sido herdados de
governos anteriores ou sequer seriam nossos, eles viriam de fora.
* * *
� caracter�stica da por��o provinciana dessa cidade o
bastar-se a si pr�prio, atribuir seus erros ao outro, olhar com desd�m o diferente, n�o
sem um regozijo mal contido, ir�nico, cheio de emp�fia. Mesmo a indiferen�a, essa
postura inegavelmente cosmopolita, que ostenta com tanto garbo e desenvoltura aquele a
quem chamamos de curitibano t�pico, n�o pode ser tomada ao p� da letra. � preciso
morar alguns anos aqui para desconfiar que por tr�s dela talvez medre o desprezo e a
inveja, sempre corrosivos.
* * *
Outro lugar-comum nativo � vender a id�ia de que Curitiba
� dona de uma arquitetura particular. Naturalmente quem pensa assim n�o est� se
referindo aos setores hist�ricos, nem aos remanescentes de um neoclassicismo tanto mais
grandiloq�ente quanto mais tardio, mas � arquitetura moderna.
No entanto, os marcos de nossa modernidade arquitet�nica
continuam sendo a resid�ncia do arquiteto catarinense Frederico Kirchgassner, de 1929, as
resid�ncias de Vilanova Artigas, dos anos 40, mais dois ou tr�s nomes, entre eles Ernani
Vasconcellos, colaborador de L�cio Costa. A eles se deve uma arquitetura art�stica que,
embora n�o tenha despertado interesse algum em sua �poca, � precursora n�o dos
arquitetos paulistas e cariocas que trabalharam aqui na d�cada de 50, mas dos
escrit�rios de arquitetura dos anos 60 at� metade dos anos 70. Nomes como Rubens
Meister, Forte/Gandolfi, Domingos Bongestabs, Leo Grossman e Alfred Willer deram
conota��o paranaense ao estilo de Le Corbusier e Oscar Niemeyer. Talvez n�o seja
exagero dizer essa � a �nica contribui��o criativa da arquitetura moderna de Curitiba
ao modernismo brasileiro, pelo menos at� a d�cada de 80.
Quando ao "estilo caixote" da fachada do Cemit�rio
Municipal, do Cemit�rio �gua Verde, das Ruas da Cidadania, da nova Cinemateca e dos
portais de alguns bairros, ele � de um evidente mau gosto - al�m de desmerecer a
hist�ria do IPPUC, �rg�o que durante d�cadas teve uma import�ncia fundamental para a
viabiliza��o do Plano Diretor da cidade. Embora d� unidade � arquitetura oficial, o
estilo caixote reproduz � perfei��o um aspecto cada vez mais evidente da forma Jaime
Lerner de governar: a supremacia da imagem - naturalmente forte, prepotente, impositiva -
sobre a capacidade de enxergar de fato a realidade multiforme da popula��o. Se na
d�cada de 70, devido a certa pujan�a na transforma��o do meio urbano, essa postura
tingia-se de esquerda, agora ela se mostra com o conservadorismo de direita que sempre a
animou.
Com linhas austeras e duras, de forte apelo popular, os mirantes
e torres dos parques parecem guaritas, os portais lembram antigas fortifica��es. Essa
imagem de estado b�lico, refor�ada pela recente instala��o de totens da pol�cia
militar em v�rios pontos da cidade, mais do que proteger a popula��o � o sintoma de
que alguma coisa n�o vai bem. E que o problema n�o � s� a viol�ncia, t�o evidente
aqui como em qualquer outra capital brasileira. Embora tenhamos que conviver com as
mazelas nacionais, somos praticamente obrigados a aceitar que a cidade � um reduto de
calmaria e paz em meio � tempestade.
Assim como o estilo caixote � composto de colunas que n�o
sustentam peso algum e de arcos que n�o trabalham, farsa imperdo�vel segundo o mestre
L�cio Costa, Curitiba vende, e vende caro, uma imagem sen�o inconsistente de cidade de
primeiro mundo, ao menos question�vel.
P.S.
Entre as cartas, fax e e-mail enviados em resposta a essa coluna,
uma me chamou a aten��o, n�o porque guardasse alguma particularidade, mas pelo
contr�rio por repetir obsessivamente um tra�o deprimente do imagin�rio oficial da
cidade, um tra�o que encontra eco em boa parte da popula��o, um tra�o nazist�ide: o
de que Curitiba, e todo a riqueza que esse nome guardaria, � para os curitibanos. Eco,
por sua vez, de um slogan do per�odo da ditadura militar: Brasil, ame-o ou deixe-o.