Depois de procurar
a campainha sem sucesso, ela abriu o port�o. Surpreendentemente n�o havia nenhum c�o.
As margens da pequena estrada de pedra que levava at� a casa, as
hort�nsias pareciam n�o ter sido podadas desde que ela tinha ido embora com a m�e. As
flores vicejavam, no entanto, ora em azul aquarelado ora em quase branco.
A porta principal estava aberta. Ela deixou a mala de n�ilon na varanda e
entrou. No sof� da sala uma mulher mais ou menos da sua idade dormia, uma toalha cobria
parte do corpo nu. Os cabelos lisos, negros, ainda estavam molhados. Os seios eram menores
do que os seus, talvez n�o tivesse vinte anos. Entre as pernas, a penugem escura n�o
escondia a parte superior dos l�bios.
Enquanto caminhava para o fundo da sala, ela apertou o pr�prio sexo, com
ambas as m�os, sobre a cal�a. A enorme porta de correr aberta deixava ver o pequeno
vale, como aprendera a chamar a encosta suave do morro que vinha terminar no jardim
interno. O verde das �rvores come�ava a ganhar um tom mais claro, que tornava a mata
mais espessa mas tamb�m mais �ntima.
Da soleira p�de ver o pai deitado na grama, sem camisa, � sombra de um
caquizeiro, os dois meninos pequenos aninhados um em seu peito, o outro entre as pernas.
As crian�as com certeza dormiam, ele talvez cochilasse, ou apenas ouvisse o canto de um
pintassilgo.
Um estrondo repentino, como o de um pneu de caminh�o furado, fez com que
ela recuasse dois passos. O homem apenas se moveu um pouco, sem abrir os olhos. Ela
desviou o olhar para a mesa da sala.
A mesma miscel�nea que estava acostumada a ver durante a inf�ncia:
revistas, recortes de jornal, livros, cartas, cart�es, um ou outro brinquedo, e a velha
fruteira de vime, repleta de fruits exotiques, como sua m�e dizia, assumindo um ar
afetado, que na realidade ela n�o possu�a. Al�m de um pequeno �lbum de fotografias,
provavelmente tiradas em seq��ncia. As crian�as usavam todo tipo de chap�us, bon�s,
boinas, com express�es que iam do c�mico ao dram�tico.
� esquerda, a porta do escrit�rio entreaberta, via-se o computador
ligado, contra a janela. Ela entrou. Na tela um poema sem t�tulo, provavelmente
inacabado. De p�, sem medo de ser surpreendida, ela leu.
um sil�ncio
um grande sil�ncio n�o se ouve
apenas este canteiro de sil�ncios mi�dos
perfumando meu vale
entre pedras e fontes
um grande sil�ncio
ultrapassa o riso e a tristeza
o rio da circunst�ncia silencia
imposs�vel ouvir um grande sil�ncio
apenas esses sil�ncios animados
de que s�o feitas as casas
pequenos sil�ncios infantis
o caprichoso sil�ncio da leitura
o sil�ncio da chuva
Levantou os olhos, por um momento viu a si mesma correndo na chuva, de um
lado para o outro, o vestidinho colado ao corpo, enquanto seus pais a chamavam para
dentro, rindo e gesticulando. A mesma paisagem vista da janela, a mesma estante pequena, a
mesma organiza��o relaxada. Os livros, com certeza, n�o seriam exatamente os mesmos.
Sentou-se, e como se o computador fosse seu abriu uma janela de pastas,
escolhendo a que tinha como t�tulo Di�rio. Depois selecionou o m�s de julho, e
mais uma vez leu, como leria uma carta em seu pr�prio quarto.
10/07
"Sei que para o impasse da poesia e do homem n�o h� solu��es
definitivas: pretendo que a poesia tenha a virtude de, em meio ao sofrimento e ao
desamparo, acender uma luz qualquer. Uma luz que n�o nos � dada, que n�o desce dos
c�us, mas que nasce das m�os e do esp�rito dos homens." uma luz do ch�o F.
G.
12/07
A indiferen�a solar, pelo menos, ilumina e aquece, enquanto que a
indiferen�a humana � um bloco negro de gelo.
26/07
Todos os dias pergunto, temente ao meu destino de homem: o que tenho que
fazer agora? Nenhum deus responde. Meus versos s�o minha resposta. Preciso trabalhar
ininterruptamente n�o porque saiba o que pretendo, mas ao contr�rio porque desejo saber,
porque n�o vejo outra possibilidade para isto que constitui minha vida sen�o tentar,
sempre, conhecer mais e melhor o mundo comum a todos.
28/07
Nenhuma palavra, nenhum significado, sequer uma v�rgula que n�o seja a
express�o do meu sentimento mais vital me interessa. Creio em mim como Santo Agostinho
creu em deus, cheio de d�vidas, mas capaz de apazigu�-las.
30/07
Introduzir uma cigarra em cada ouvido. Ouvir seu canto serrilhado. E nos
intervalos de sil�ncio cristalino, emudecer cada c�lula do corpo humano.
Depois de uma longa pausa, o rosto apoiado na palma da m�o esquerda,
ela fechou o di�rio e voltou ao poema sobre o sil�ncio. Seus olhos refizeram o trajeto
do poema, verso a verso, at� o final. Depois de nova pausa, ela acrescentou uma �ltima
estrofe ao original: um grande sil�ncio n�o grita / corta, separa / o que o
princ�pio n�o devia ter unido.
Num movimento brusco, voltou para a sala. O rel�gio com mostru�rio de
pedra, presente de um casal de argentinos, marcava tr�s e meia da tarde. Com um pouco de
sorte ainda conseguiria pegar o �nibus das quatro.
Atravessou a sala em dire��o � porta da frente, os cabelos da mulher agora estavam
secos, apanhou a mala na varanda e fez o caminho de volta pela estradinha das hort�nsias.
Chegou � esta��o �s quatro e cinco, mas o �nibus estava atrasado. Ainda teve que
esperar quinze minutos antes de partir.