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Que Natal, Que Nada!

- V�, tem certeza que n�o quer vir com a gente? O tio Toni, a Maristella, o tio Guido, todo mundo vai estar l�.

- � natal, v� - disse a neta menor, incentivada pela irm�, que tinha falado primeiro e agora passava as unhas no volante do carro.

- Que natal, que nada! Eu n�o entro num restaurante de Santa hoje nem morta. Chega a ser obsceno toda aquela gente comendo ao mesmo tempo. Deus me livre. V�o voc�s e fa�am bom proveito. - E j� dava as costas ao carro lotado, em dire��o ao jardim, quando ouviu a voz da filha:

- N�o quer que a gente traga nada, uma por��o de polenta ou frango prensado, hein dona Angelina?

Mas como resposta � gra�a da filha, ela apenas levantou os ombros, de costas, e deixou-os cair como se tivesse seis anos e algo muito mais importante a fazer do que jogar conversa fora.

Caminhou at� o jasmineiro e arrancou um galhinho com uma flor e um bot�o. O cheiro de jasmim estava t�o forte que chegava a parecer adocicado. Mesmo que tomasse todo o cuidado, trocando a �gua, ou colocando uma colherinha de a��car, o bot�o n�o abriria. Era uma pena.

De volta � cozinha, ela encheu um copo d'�gua e tomou alguns goles enquanto olhava pela janela. Havia uma �nica nuvem no c�u, que ia se esfiapando lentamente. A m�o levantou o jasmim at� o nariz, os olhos se fecharam e ela ficou assim por alguns instantes. Depois colocou a flor no resto de �gua que havia no copo, sobre a pia, e foi para a sala.

Puxou uma gaveta de onde tirou o bin�culo que tinha sido do marido. Apanhou um livro em cima da tev� e deu uma olhada na dedicat�ria escrita pelo amigo invis�vel. Que id�ia dar a uma pessoa da sua idade um livro s� com textos sobre a velhice. Por que separar o mundo assim, os velhos de um lado e os jovens de outro? O t�tulo at� que era bonito: Quando envelhecer vou usar p�rpura. Que id�ia n�o deviam fazer dela! Naquela hora teve vontade de casar com um garoto de vinte anos e sair em lua de mel num carro convers�vel, s� pra escandalizar a fam�lia.

Na cozinha ainda apanhou uma cadeira, e assim, equipada do que achava necess�rio, caminhou para o quintal, entre as figueiras e os p�s de lim�o. Sentou-se ao lado do eucalipto que o pai tinha plantado no dia do seu primeiro anivers�rio.

Com o bin�culo pendurado no pesco�o e o livro sobre o vestido, passou a m�o na casca da �rvore. Sua pele e a casca pareciam feitas da mesma mat�ria enrugada. Ambas haviam envelhecido juntas. Mas Angelina sabia que l� no topo a casca da �rvore era como a pele de um beb�, e que gra�as a essa capacidade rejuvenescedora o eucalipto viveria muito ainda. Mais do que ela e seus filhos e seus netos juntos. Mas quem gostaria de viver como uma �rvore? Afinal uma �rvore era uma �rvore, assim como uma mulher era uma mulher e um gato um gato.

Para esquecer esse pensamento, que lhe pareceu de uma obviedade est�pida, ela abriu o livro e leu o primeiro texto, pulando o pref�cio. A autora, uma mulher jovem, avisava - Aviso era o t�tulo do poema - que quando de repente fosse velha ia usar um vestido p�rpura, mas que talvez fosse melhor treinar um pouco antes, para n�o chocar os outros mais tarde.

Na segunda estrofe ela dizia que velha poderia comer quilos de salsicha, p�o com picles, juntar canetas e l�pis e bolachas de cerveja, e outras asneiras do tipo. Mas o que dava um sentido verdadeiro aos versos, embora n�o fosse nenhum recurso liter�rio, era a foto da autora, do tamanho da p�gina, bem ao lado do poema. Tirada pelo menos cinq�enta anos depois, a foto mostrava uma velha vaidosa e alternativa, se � poss�vel que estas tr�s fatalidades coincidam numa �nica pessoa. Deus do c�u, se a velhice n�o era uma droga, como insistiam em supor, tamb�m n�o era uma d�diva.

Talvez para fugir desses pensamentos, Angelina empunhou o bin�culo. As letras da nova placa da churrascaria do outro lado da rua tomaram todo o campo de vis�o. Ela se virou, procurando as pombas, no extremo do terreno.

Todas as tardes, por volta das quatro, ela jogava milho para as pombas silvestres, que com o passar dos anos foram se tornando mais e mais numerosas. Embora n�o passasse das duas e houvesse apenas alguns gr�os no ch�o, um pequeno bando catava as sobras do dia anterior.

V�rias vezes ela tinha pensado em desistir dessa mania, mas sentia d� das pombas. Provavelmente elas estavam acostumadas demais com essa facilidade. Depois ela sabia que a principal raz�o era outra: enquanto observava o esvoa�ar cinza das pombas, seus olhinhos min�sculos e alegres, ela sentia a presen�a do marido, morto h� dois anos. Era como se ele voltasse a caminhar pelo terreno, alvoro�ando seu corpo at� o meio das pernas.

Com o livro em cima dos joelhos, ela mirou as lentes para o telhado do vizinho. O sol refletia nas telhas novas. H� uma semana ela tinha visto um homem de bon� soltando as telhas velhas numa canaleta de madeira. Por alguma raz�o a canaleta ainda estava l�. Um menino trepado no muro empurrava uma menina de vestido branco pra cima do telhado. Ela se esticava toda para alcan�ar a antena da tev�. Quando finalmente conseguiu, manteve uma m�o presa � antena e esticou a outra para o menino, mas ele deu um salto exibido e foi parar ao lado dela.

Os dois foram para o ponto em que a t�bua encostava no telhado, ele com os bra�os abertos, como um batman mirim, ela apoiando a parte da frente do corpo nas m�os, as pernas um pouco dobradas. Antes mesmo que ela chegasse, ele sentou na canaleta, as m�os nas bordas, e escorregou com um grito de alegria.

A menina ficou l�, indecisa. Por mais que o menino gesticulasse, amea�ando jogar uma pedra ou peda�o de tijolo caso ela n�o descesse logo, ela continuava sem se mexer. Depois, para desespero do colega, irm�o ou sei l� o qu�, ela subiu at� a cumeeira e sentou de costas. Talvez chorasse, ou simplesmente quisesse irritar o menino.

Nesse momento Angelina abaixou o bin�culo. Descal�ou as sand�lias e enfiou bem os p�s no ch�o, entre a grama e a terra. O som das folhas de eucalipto balan�ando aumentava a sensa��o de frescor.

 
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