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Preto Molin�sia

Deformados pela curvatura do vidro, os olhos da menina, do outro lado do aqu�rio, pareciam amea�adores. Os peixinhos negros, no entanto, nadavam com a lassid�o dos animais nascidos no cativeiro. Mesmo quando ela encostava a ponta do nariz no vidro, e o verde dos olhos crescia, intensificado pela luz da janela refletida na �gua, os peixes n�o se assustavam.

A extrema aten��o com que a menina seguia aqueles movimentos dava um vigor novo ao sil�ncio do apartamento. Nem o alheamento do pai, debru�ado sobre os livros, nem as m�os h�beis da m�e, podando os galhos do f�cus na varanda, estavam imunes � sensa��o de bem estar que emanava do canto da sala.

Embora eu estivesse dirigindo, pude perceber a express�o de inquieta��o em seu rosto. Ele fechou o livro, o indicador da m�o esquerda marcando a p�gina. Olhou para fora, ainda est�vamos presos no tr�nsito da cidade, virou-se para mim e disse:

- Uma menina est� em casa com os pais. Enquanto o pai estuda, talvez seja um tradutor, e a m�e cuida das plantas, ela fica olhando para os peixinhos do aqu�rio, na sala. Os peixes s�o todos pretos. Ela os observa atentamente, o nariz colado no vidro.

E depois de uma pausa, desafiador:

- Como voc� continuaria essa hist�ria.

Pelo espelho retrovisor pude ver a cara do engravatado que buzinava pela segunda vez. Arranquei, decidida a aceitar o jogo sem demonstrar nenhuma hesita��o.

- No dia seguinte a menina viaja por um m�s. A m�e fica encarregada de alimentar os peixes, trocar a �gua do aqu�rio, mas esquece e eles morrem. Para pedir perd�o � filha ela escreve uma hist�ria, contando como tudo aconteceu.

- A mulher que matou os peixes - ele disse rindo, e continuou - Pode inventar outra, ambos sabemos que essa hist�ria j� foi escrita. Al�m do mais os peixinhos eram vermelhos, dois apenas.

Depois de pegar a Mariano Torres o tr�fego fluiu naturalmente. O sol tinha voltado a aparecer, aquecendo o interior do carro. Enquanto colocava os �culos escuros, fiz nova tentativa.

- O pai levanta da mesa, vai at� o banheiro e depois sai. Do corredor � poss�vel ouvi-lo dizendo que vai comprar o jornal. A m�e corre antes que a porta do elevador se feche e grita para a filha que num instante eles est�o de volta. Desapontada, a menina fecha a porta do apartamento e volta para junto do aqu�rio. Os peixinhos negros nadam indiferentes � s�bita tristeza da menina. Ela olha para os p�s descal�os, chuta uma boneca. Sem arrega�ar as mangas, enfia o bra�o n'�gua, e persegue o maior de todos. Com a m�o fechada aperta o corpo vivo entre os dedos, at� que o punho estreme�a. Livre, a m�o persegue outro peixinho, encurralando-o no canto do aqu�rio. Ainda sem tirar a m�o da �gua ela afunda os olhos sem p�lpebras, fazendo o indicador e o polegar se encontrarem. Na boca do terceiro ela tenta enfiar uma pedrinha esverdeada.

- Mas essa menina � um pequeno dem�nio! - Ele me interrompeu, batendo com o livro nas minhas pernas. - � melhor restringir o n�mero de peixinhos a tr�s.

- Tr�s ou seis n�o importa. Ela matou os peixes e depois talvez tenha ido assistir ao Castelo Ra-tim-bum.

- Eu disse, ultrapassando v�rios carros. Mas ele parecia me desaprovar duplamente.

- E por que ela fez isso? - E depois de um pequeno sil�ncio - Ser� que ela mataria os peixinhos por desapontamento? Falta alguma coisa a�. Um fato novo, n�o digo uma explica��o.

- E que fato seria este, senhor leitor profissional?

Ele sorriu satisfeito. Mais alguns quil�metros e come�ar�amos a descer a serra.

- Quando os pais dela sa�ram, a porta ficou aberta. O filho do vizinho, que tinha acabado de subir, entrou sem ser visto. Chegou bem perto da menina, que falava irritada com os peixes, ficou alguns segundos �s suas costas e quando ela se virou beijou-a na bochecha. Antes que ela come�asse a chorar ele saiu correndo e sumiu num lance da escada. Ela fechou a porta, ainda chorando. Olhou para os p�s, chutou uma boneca e sem arrega�ar as mangas enfiou o bra�o n'�gua.

Nesse momento ele parou, atento ao contorno das montanhas. Abriu o vidro do carro e apoiou o bra�o na porta. Pediu para eu ir mais devagar. Depois continuou.

- Quanto aos peixes, � bom mesmo que sejam s� tr�s, os que ela matou. Digamos que havia ainda outros tr�s, que continuavam vivos.

- E por que ela teria desistido de mat�-los? - Perguntei, como tinha certeza que ele esperava que eu perguntasse.

- A menina, ainda com o bra�o dentro d'�gua, lembra dos pais e fica com medo. O beijo pode ser escondido, mas e os peixinhos mortos?

- Ela podia enterr�-los num vaso da m�e. - Sugeri, temendo estragar a surpresa que ele parecia guardar.

- O vaso de f�cus em que a m�e tinha estado trabalhando, na varanda! - ele disse, mal contendo a alegria.

E sugeriu com os olhos que eu continuasse.

- Enquanto a m�o direita escava um buraco na terra, a esquerda segura os peixinhos enrolados na dobra da camiseta. Quando acaba de cobri-los ouve a campainha.

Com a manga molhada, e as unhas sujas de terra, ela abre a porta para os pais.

Antes de continuar, olhei para o lado. Ele tinha os olhos fechados. Fora, o verde da serra desprendia seu cheiro �mido. Os galhos das �rvores � margem da estrada estavam repletos de brom�lias. Deixei que ele dormisse.

S� percebi que ele tinha morrido porque o livro caiu, quase uma hora depois, quando fui obrigada a parar por causa de um acidente, na divisa entre o Paran� e Santa Catarina.

 
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