PEQUENA INTRODUÇÃO À POESIA DE FOED CASTRO CHAMMA

 

Julio Marcos Bronislavski

 

Resumo: Este pequeno ensaio  busca transitar livremente pela poesia de Foed Castro Chamma, nascido em Irati em 1927. Procura aproximar os caminhos trilhados em Irati, na infância e nas muitas visitas que o poeta faz regularmente à cidade,  com sua trajetória poética. Provavelmente, no fluxo inconsciente está o desejo de despertar em todos os  leitores, especialmente universitários,  uma nova  percepção do espaço  da linguagem na  representação do real.  O poeta  reconstrói  o mundo  aproximando o real do eterno, a sombra da luz, exigindo do pensamento o resgate das  sensações e imagens fragmentadas pela vida cotidiana. Cabe ao leitor exercitar essas sensações para refinar as imagens elaboradas pelo  poeta. Talvez esteja aí  a   linha motivacional deste trabalho.

Palavras chave: Irati – Ir a Ti – imaginário – signos – sombra – labirinto – ave – fala – visível – invisível – grito – ofício –  linguagem – magia – alquimia – canto – Rio.

 

A trajetória de Foed Castro Chamma começa na calma do Rio das Antas, no canto dos sabiás e canários, no azedo do butiá e no doce do jarivá. Na geada queimando a grama e nos cabelos das espigas de milho.  Ali, cercado pela Serra dos Nogueiras,  o  menino  despertou dentro do sonho. Queria ter asas, voar sobre as águas, planícies e serras, para longe do mulo que vive nos porões da infância

“Como as aves o pensamento vai/ a lugares distantes onde o sonho/

 completa-se em imagens que não cabem/ onde está o que sonha”.

 

Entender a sombra, o vazio, o escuro. Não balançar os pés para não embalar o demônio. Concentrar-se na pedra, na voz dormida, na linha do horizonte. Observador calado,  viu cair o fio azul da chuva em dias de sol (casamento de viúva, diziam). Através da janela, observou  o curvo  capenga que  “corta os arames da chuva/ avança o corpo/ estremece/ o ar em fuga”, enquanto  o lampejo dos relâmpagos  iluminava os arvoredos e prolongava o grito da coruja. E as tintas de fogo a colorir as belas tardes crepusculares do outono. Eram estrondosos  sinais que marcariam   o imaginário para   compor uma nova aurora para o futuro andarilho.

No íntimo eu cantava/ desposando o canto às mais recônditas

vibrações do ser./ Via evaporar-se em fuga nas conquistas/ do invisível:

Porisso a qualquer hora me aproximo:/ Se a porta está fechada/ se o muro cerca/

se o medo me repele/ eu atravesso/ um    a    um/ espaço    porta    muro    medo/

diante de quem quero,/ apareço e me evaporo.”

 

Duro oficio o do menino. Cantar, evaporar-se, inventar sons. Correr atrás do vento. Prender a respiração. Capturar o que é essencial.  Segurar a linha do horizonte. O  ser e o não ser. O  espanto e o deslumbramento diante dos elementos da alquimia na casa paterna. Alternar-se em círculos. Conter o medo do desconhecido, da sombra atada aos pés e  deixar a  imaginação ir fluindo como o Rio das Antas, enquanto um conflito permanente ia se anunciando em suas sensações.

Meu exercício é inventar-me e não me invento/ senão para esperar que nesta sala

eu me escute calado a celebrar/ a magia da minha própria /De que confins eu chego, de que noites/ abismadas que chego e já me encontro/ presente a surpreender minha chegada?/ Invento-me num círculo e me queimo/

e me reinvento e não descubro a fala,/ mas sei que está em mim atravessada.” 

 

Os poemas  são um exercício criativo permanente de linguagem e sentimentos.  O menino chega de Irati, dos dias claros de Março. Do encanto da representação teatral no colégio. Das longas horas que seus   olhos inquietos observaram  as pessoas  nas ruas da cidade e seguiram juntos no vôo dos pássaros nos fios de luz e no beiral das casas. Em Irati,  o pensamento incorporou as  árvores e  seus frutos. Os cachos eriçados de espinho. As laranjas no inverno. A guabiroba.  A erva-mate. As borboletas. O mandorová. A geada na grama.  As retinas queimadas. O orvalho.  As pedras silenciosas.  Os significantes e significados. O riso nas faces rosadas.  Os gestos e  sons.  Esferas, cones, cilindros. O martelo batendo na bigorna. As chaves e ferramentas dependuradas na parede.  Na “mudez da fala  tudo era poesia  para o jovem.  Letras, traços, ritos,  palavras pairando no ar de Irati.

 “Há uns cabelos nascendo nos meus olhos,/ vêm do íntimo da infância : crescem negros/ cobrindo um céu de carne descoberto,/ aranha e pássaro, beleza e medo./

Seja a que cresce neste céu ou viva/ se abra em flor ou pássaro ou aranha/

é em meu olhar que cresce e se desmancha/ Bela, te chamo, e sempre permaneces

acordada no peito, e enquanto canto/ aclaras-me de amor e me anoiteces.”

 

No peito persiste a busca obstinada pela  beleza da fala,  enquanto rumina a perplexidade e o deslumbramento diante do mistério do olhar e do sentir. No claro das manhãs e no escuro da noite, Foed caminha  com seus risos e rebanhos, entregando-se ao encanto do “círculo que encerra a mesma ave/ que voa enquanto falo”.

A ave e a fala entrelaçadas marcam o poeta como  pedras que indicam a saída do labirinto.  Lá dentro, as vozes do medo, o metal fundido e o tempo que se consome em movimentos belos. 

·        “...Em mim é que resido, no meu campo / colho os sons de que falo...”

·        “Os metais que trabalho, estes triângulos / e círculos que traço e não contenho / porque me fogem, são amados sonhos / de a fórmula encontrar no esquivo espaço / a fórmula do encanto”

·         “Como as aves o pensamento vai / a lugares distantes onde o sonho / completa-se em imagens que não cabem / onde está o que sonha”

·        “Vede como ele nasce dos obscuros / silêncios – como rito preexistido, / nasce de minhas mãos, de meus augúrios / e cresce nos meus dedos e ignora / que nem eu conhecera o seu sentido / mas já o amara como o amo agora”

·        “Das raízes do sonho nasce o verso, / verde lâmina ardente que atravesso / cintilando no olhar”

 

Além do Nhapindazal a estrada se desenrola,  muitos caminhos, longos e cheios de sombras. Mas “os sábios se apoderam do corpo” e  os sentidos exigem novas descobertas. “Meus olhos têm formas diferentes/ eles trabalham/ vão longe...”  O jovem Foed  e sua família  atravessam a Serra dos Nogueiras e partem em  direção ao Rio de Janeiro.

·        “não cessa o tempo:/  sob a guarda de um Deus/  tudo caminha, tudo/  se alonga para alçar-se/  ao espaço”

·        “desfaço o que me habita – o secundário - / e caminho empunhando o belo facho / de luz que me revela sempre março / aberto para todo itinerário”.

 

            Leva consigo as coisas e paisagens que viu e transformou pela imaginação. Carrega também as pessoas que irão compor a liturgia de seu poema Ir a Ti. Na então capital convive com poetas e intelectuais. Participa da fase áurea do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, dirigido por Mário Faustino. Vive poesia.  Com os vanguardistas da época , vai construindo um discurso poético moderno, consistente que busca a essência da linguagem. Ao mesmo tempo, dedica-se à vida familiar: casa-se com Lúcia Monteiro (Dona Luci) que lhe dá dois filhos: Alfredo e Maria Alice. Mas não se afasta de Irati,  transpondo sempre  as fronteiras estreitas de uma cidade interiorana: “As asas acomodam-se à visão / do amanhecer. O vôo então se espraia / certo de retornar ao mesmo pouso / de onde alçou-se à lonjura”

“À margem deste canto recomponho/ o rosto que perdi nos vãos da tarde/

 antiga em que brincava com as nuvens apascentando meus brancos rebanhos.

Perdi-o, rosto de pastor menino/ mergulhado na sombra de meu sonho.

Caminho a procurar pelo seu rastro/ entre os silêncios do ar, na cor das águas,/

no azul que brilha no bico dos pássaros:/ ele emerge tranqüilo, traços rubros,

mexe-se em minhas mãos, bulo em sua boca,/ e no som das palavras o descubro.”

 

O discurso poético  é universal. As palavras têm poder e sons melodiosos: são elas as chaves da alquimia, o metal em ouro. O verso  emerge fácil, livre, surpreendente. O poeta se desnuda – “reuno-me ao que sou (sossego e espaço)” – e  se transforma nas próprias ferramentas de trabalho, preciso, consciente:

 

“Tocai-me e vede que sou tempo e nasço/ destas palavras: último ou primeiro

existo no aro que me cerca o espaço”

 

Autodidata, dedica-se à tradução de livros, poesias, enciclopédias,  em inglês,  francês e latim. Do polonês, traduz  Adam Mickiewicz. Colabora em diversos jornais. Em todos os trabalhos, a força criadora da arte poética.  Seus versos, se a principio podem parecer demasiado concretos, oferecem-se  facilmente á decifração do leitor. Reflete o universo visível e invisível. As árvores, o vento. A sombra, a luz. A quietude, o abismo. O humano e o vegetal.  “O que se move e o que tem as raízes na terra”.  O poeta se alimenta do tempo, da ausência dos espaços, da sombra, da dúvida.  Estuda a forma  até doer-me a idéia  para conquistar  o encanto do verbo, não o do discurso “mas o verbo-metáfora capaz de alar-se / ou tisnar a retina dos curiosos / pela relâmpago da azul cintilação”.  O encanto e a paz  reconstituídos no verbo:

“O quadro que se vê desta colina / é a da minha cidade. Ele me chama:

prazeroso já vou ao seu encontro/ como filho que volta ao lar paterno,/ após longa jornada. A Natureza  acolhe-me festiva, logo à entrada, com as flores em torno das moradas/ risonhas onde as aves fazem ninho./ Tão bela é a vista aqui de onde a contemplo/ que suas cores convergem aos meus olhos/ como pedras brilhantes, afogueadas,/e a alegria que sinto se transmuta/ em soluços profundos sufocados

no peito, confundindo-me com as pedras.”

 

Foed Castro Chamma é um mestre da expressão. Um artesão constante, que busca sempre a beleza plástica, visual e encantatória das   palavras.   Sua força reside na poética, na exploração dos significados e significantes.    No prazer consciente do ofício:

“Eu sou o corpo sobre o qual galopa/ veloz o pensamento que refreio/ ao tilintar dos cascos e os arreios/ em disparada. O corpo sobre o qual/galopa o pensamento são meus atos,/ e neles me detenho para dar/ ao seu curso paciente rendimento

de artesão que conhece sua armadura...”

 

Foed não é apenas um grande poeta que conduz sua poesia despertando fagulhas de fogo, como um ferreiro ao bater seu martelo no ferro em brasa. Ensaísta, dedica-se também a trabalhos de  filosofia, semiologia, estética.  Suas preocupações com a lingüística e a estética encontraram eco em  Parmênides, Platão,  Aristóteles, Julia Kristeva, Jean Baudrillard,  Roland Barthes, Rimbaud, Charles Sanders Peirce, alguns dos autores que convivem em seu escritório, ao lado de chaves e ferramentas da alquimia.  Respira poesia e  filosofia.  É um patrimônio cultural  que apenas alguns amigos tem o privilégio de admirar e compartilhar. É um prazer vê-lo condensar suas idéias com a poética, com  Virgílio e Kirkergaard. E o entusiasmo  com que  discorre sobre a arte e a palavra, envolvendo Kant,  Martin Heidegger, Friedrich Nietzsche, Michel Foucault. Cativa o interlocutor, dando-lhe uma visão geral da arte, com suas transgressões e unidades significantes. Todo esse entendimento filosófico-semiótico está também disponível a todos nos artigos publicados em  suplementos literários, no jornal de poesia (http://secrel.com.br/jpoesia/fcc.html), no site (http://geocities.yahoo.com.br/castrochamma)  e revistas de  universidades.  Basta recompor o pensamento e deixar que a beleza das palavras floresça ao lado da forma  poética e da contemplação das faíscas da vida. 

 

“...A energia imortal que me sustenta/ eu a dedico à cálida ambição/ de alimentar o reino deste Deus, /pois ao deixar-me envolver alcanço,/ para melhor sentir a vibração,/que perpetua toda a minha espécie,/ a sensação de ser o próprio Deus.”

 

Conclusão: A poesia é a verdade traduzida em  palavras. Reflete a luz, modifica o cotidiano e permite um decifrar do real  de cada um.  Reconstitui o silêncio na magia de perceber o som das palavras até muito depois de pronunciadas – soltas no pensamento “Despir-se da fala / como quem se despe / de seus pensamentos”.  Colhe do íntimo do ser as imagens que o real supunha perdidas em algum canto da memória “Dos submersos porões aflora o verso, / ativo som que prega o que imagino:”. Pura  magia, como em Foed Castro Chamma..

“Ir a ti/ colher as iras/ crespas do ar /os verdes cachos / eriçados / de espinho,/

despir do solo/ o resto de uvas/ que espremi no frio/ armar na grama/ os ramos de amor / presos a terra...”

 

A Obra: No início recebe influência de Castro Alves, Melodias do Estio (1952) e Cecília Meireles. Iniciação ao Sonho (1953).   O Poder da  Palavra (1959),  Prêmio Olavo Bilac da Prefeitura do Distrito Federal.  Em 1967, publica Labirinto, Prêmio Nacional de Poesia do Instituto Nacional do Mate, com marcas do movimento concretista..  Colabora com o Diário de Notícias e o Correio da Manhã, importantes jornais da época. Autodidata, traduz, para editoras, livros em  inglês e francês, inclusive verbetes para a edição brasileira da Enciclopédia Larousse. Em 1969, em edição do Jornal O Debate publica  Ir a ti, título que atomiza sua cidade natal. O Poder da Palavra, Labirinto e Ir a ti foram reeditados, em convênio com o MEC , sob o título de O andarilho e a aurora, em 1971. Resultado da caminhada de 13 anos (1962 a 1975, segundo o próprio poeta) lança, pela Melhoramentos de São Paulo,    Pedra da Transmutação – 10 mil versos decassílabos de rimas toantes e organizados em quartetos. Com eles recebe o Prêmio Nestlé de Literatura, edição de 1984, impressionando os membros de júri que, além das qualidades artesanais na elaboração dos versos, perceberam no conjunto um sólido embasamento filosófico, pouco comum na poesia brasileira contemporânea. Sons de ferraria, lançado em 1989, edição da Secretaria de Cultura de Irati,  acrescido de paráfrases de Epigramas latinos traduzidos do latim, foi reimpresso em 2004 com breve estudo do soneto. Em 2001, a Imprensa Oficial do Paraná lança sua Antologia poética, organizada pelo poeta e crítico André Seffrin – reimpressa em 2002. Ainda inéditos: Navio Fantasma, cartas dirigidas aos pais, Filosofia da arte e Ferraduras do Raio, ensaios e leituras proferidas em cursos de letras de universidades do Paraná e Rio de Janeiro, além de outros poemas e uma peça de teatro.

 

Referências Bibliográficas

 

1.      Obras de Foed Castro Chamma

2.      CHAMMA,  Foed Castro. O Poder da Palavra, Edições Jornal de Poesia, Rio de  Janeiro, 1959.

________ ,   Labirinto, Instituto Nacional do Mate, 1967.

________,   Ir a ti, Edições O Debate, Irati (PR), 1969.

________, O Andarilho e a aurora, Livros do Mundo Inteiro, Convênio com Instituto Nacional do Livro, 1971.

Sons de Ferraria, Secretaria de Cultura de Irati, 1989.

2. Obras de Apoio

PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e Filosofia, Editora Cultrix, São Paulo, 1975.

BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia, Editora Cultrix, São Paulo, 1972.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas, Editora Martins Fontes, São Paulo.

 

 

 

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