Carl Gustav Jung e a Psicologia Anal�tica

por

Carlos Antonio Fragoso Guimar�es




M�sica: Vocalise Op. 34, N� 14, de Rachmaninov


Jung e sua obra



Carl Gustav Jung nasceu a 26 de julho de 1875, na cidadezinha de Kesswil, na Su��a, no seio de uma fam�lia voltada para a religi�o. Seu pai e v�rios outros parentes eram pastores luteranos, o que explica, em parte, desde a mais tenra idade, o interesse do jovem Carl por filosofia e quest�es espirituais e o pelo papel da religi�o no processo de matura��o ps�quica das pessoas, povos e civiliza��es, embora questionasse a teologia. Crian�a bastante sens�vel e introspectiva, desde cedo o futuro colega de Freud demonstrou uma intelig�ncia e uma sagacidade intelectuais not�ves, o que, mesmo assim, n�o lhe poupou alguns dissabores, como um lar algumas vezes um pouco desestruturado e a inveja dos colegas e a solid�o.

Ao entrar para a universidade, Jung havia decidido estudar Medicina, na tentativa de manter um compromisso entre seus interesses por ci�ncias naturais e humanas. Ele queria, de alguma forma, vivenciar na pr�tica os ideais que adotava usando os meios dados pela ci�ncia. Por essa �poca, tamb�m, passou a se interessar mais intensamente pelos fen�menos ps�quicos e investigou v�rias mensagens hipoteticamente recebidas por uma m�dium local (na verdade, uma prima sua), o que acabou sendo o material de sua tese de gradua��o, "Psicologia e Patologia dos Assim Chamados F�nomenos Ps�quicos".

Em 1900, Jung tornou-se interno na Cl�nica Psiqui�trica Bugholzli, em Zurique, onde estudou com Pierre Janet, em 1902, e onde, em 1904, montou um laborat�rio experimental em que criou seu c�lebre teste de associa��o de palavras para o diagn�stico psiqui�trico. Neste, uma pessoa � convidada a responder a uma lista padronizada de palavras-est�mulo; qualquer demora irregular no tempo m�dio de resposta ou excita��o entre o est�mulo e a resposta � muito provavelmente um indicador de tens�o emocional relacionada, de alguma forma, com o sentido da palavra-est�mulo. Mas tarde este teste foi aperfei�oado e adaptado por in�meros psiquiatras e psic�logos, para envolver, al�m de palavras, imagens, sons, objetos e desenhos. � este o princ�pio b�sico usado no detector de mentiras, utilizado pela pol�cia cient�fica. Estes estudos lhe granjearam alguma reputa��o, o que o levou, em 1905, aos trinta anos, a assumir a c�tedra de professor de psiquiatria na Universidade de Zurique.

Neste �nterim, Jung entra em contato com as obras de Sigmund Freud (1856-1939), e, mesmo conhecendo as fortes cr�ticas que a ent�o incipiente Psican�lise sofria por parte dos meio m�dicos e acad�micos na ocasi�o, ele fez quest�o de defender as descobertas do mestre vienense, convencido que estava da import�ncia e do avan�o dos trabalhos de Freud. Estava t�o enstusiasmado com as novas perspectivas abertas pela psican�lise, que decidiu conhecer Freud pessoalmente. O primeiro encontro entre eles transformou-se numa conversa que durou treze horas ininterruptas. A comunh�o de id�ias e objetivos era tamanha, que eles passaram a se corresponder semanalmente, e Freud chegou a declarar Jung seu mais pr�ximo colaborador e herdeiro l�gico, e isso � algo que tem de ser bem frisado, a m�tua admira��o entre estes dois homens, frequentemente esquecida tanto por freudianos como por junguianos. Por�m, tamanha identidade de pensamentos e amizade n�o conseguia esconder algumas diferen�as fundamentais, e nem os confrontos entre os fortes g�nios de um e de outro. Jung jamais conseguiu aceitar a insist�ncia de Freud de que as causas dos conflitos ps�quicos sempre envolveriam algum trauma de natureza sexual, e Freud n�o admitia o interesse de Jung pelos fen�menos espirituais como fontes v�lidas de estudo em si. O rompimento entre eles foi inevit�vel, ainda que Jung o tenha, de certa forma, precipitado. Ele iria acontecer mais cedo ou mais tarde. O rompimento foi doloroso para ambos. A turbulenta ruptura do trabalho m�tuo e da amizade acabou por abrir uma profunda m�goa m�tua, nunca inteiramente assimilada pelos dois principais g�nios da Psicologia do s�culo XX e que ainda, infelizmente, divide partid�rios de ambos os te�ricos.

Aterior mesmo ao per�odo em que estavam juntos, Jung come�ou a desenvolver uma sistema te�rico que chamou, originalmente, de "Psicologia dos Complexos", mais tarde chamando-a de "Psicologia Anal�tica", como resultado direto de seu contato pr�tico com seus pacientes. O conceito de inconsciente j� est� bem sedimentado na s�lida base psiqui�trica de Jung antes de seu contato pessoal com Freud, mas foi com Freud, real formulador do conceito em termos cl�nicos, que Jung p�de se basear para aprofundar seus pr�prios estudos. O contato entre os dois homens foi extremamente rico para ambos, durante o per�odo de parceria entre eles. Ali�s, foi Jung quem cunhou o termo e a no��o b�sica de "complexo", que foi adotado por Freud. Por complexo, Jung entendia os v�rios "grupos de conte�dos ps�quicos que, desvinculando-se da consci�ncia, passam para o inconsciente, onde continuam, numa exist�ncia relativamente aut�noma, a influir osbre a conduta" (G. Zunini). E, embora possa ser frequentemente negativa, essa influ�ncia tamb�m pode assumir caracter�siticas positivas, quando se torna o est�mulo para novas possibilidades criativas.

Jung j� havia usado a no��o de complexo desde 1904, na diagnose das associa��es de palavras. A vari�ncia no tempo de rea��o entre palavras demonstrou que as atitudes do sujeito diante de certas palavras-est�mulo, quer respondendo de forma exitante, quer de forma apressada, era diferente do tempo de rea��o de outras palvras que pareciam ter estimula��o neutra. As rea��es n�o convencionais poderiam indicar (e indicavam de fato) a presen�a de complexos, dos quais o sujeito n�o tinha consci�ncia.

Utilizando-se desta t�cnica e do estudo dos sonhos e de desenhos, Jung passou a se dedicar profundamente aos meios pelos quais se expressa o inconsciente. Os sonhos pessoais de seus pacientes o intrigavam na medida em que os temas de certos sonhos individuais eram muito semelhantes aos grandes temas culturais ou mitol�gicos universais, ainda mais quando o sujeito nada conhecia de mitos ou mitologias. O mesmo ocorria no caso dos desenhos que seus pacientes faziam, geralmente muito parecidos com os s�mbolos adotados por v�rias culturas e tradi��es religiosas do mundo inteiro. Estas similaridades levaram Jung � sua mais importante descoberta: o "inconsciente coletivo". Assim, Jung descobrira que al�m do consciente e inconsciente pessoais, j� estudados por Freud, exitiria uma zona ou faixa ps�quica onde estariam as figuras, s�mbolos e conte�dos arquet�picos de car�ter universal, frequentemente expressos em temas mitol�gicos. Por exemplo, o mito b�blico de Ad�o e Eva comendo do fruto da �rvore do Conhecimento do Bem e do Mal e, por isso, sendo expulosos do Para�so, e o mito grego de Prometeu roubando o fogo do conhecimento dos deuses e dando-o aos homens, pagando com a vida pelo sua presun��o s�o bem parecidos com o moderno mito de Frankenstein, elaborado pela escritora Mary Schelley ap�s um pesadelo, e que toca fundo na mente e nas emo��es das pessoas de forma quase "instintiva", como se uma parte de nossas mentes "entendesse" o real significado da hist�ria: o homem sempre paga um alto pre�o pela ousadia de querer ser Deus.

Enquanto o inconsciente pessoal consiste fundamentalmente de material reprimido e de complexos, o inconsciente coletivo � composto fundamentalmente de uma tend�ncia para sensibilizar-se com certas imagens, ou melhor, s�mbolos que constelam sentimentos profundos de apelo universal, os arqu�tipos: da mesma forma que animais e homens parecem possuir atitudes inatas, chamadas de instintos, tamb�m � prov�vel que em nosso psiquismo exista um material ps�quico com alguma analogia com os instintos. Talvez, as imagens arquet�picas sejam algo como que figura��es dos pr�prios insitintos, num n�vel mais sofisticado, ps�quico. Assim, n�o � mais arriscado admitir a hip�tese do inconsciente coletivo, comum a toda a humanidade, do que admitir a exist�ncia instintos comuns a todos os seres vivos.

Assim, em resumo, o inconsciente coletivo � uma faixa intraps�quica e interps�quica, repleto de material representativo de motivos de forte carga afetiva comum a toda a humanidade, como, por exemplo, a associa��o do femino com caracter�sticas maternas e, ao mesmo tempo, em seu lado escuro, crueis, ou a forte sensa��o intuitiva universal da exist�ncia de uma transcend�ncia metaforicamente denominada Deus. A m�e boa, por exemplo, � um aspecto do arqu�tipo do feminino na psique, que pode ter a figura de uma deusa ou de uma fada, da m�e m�, ou que pode possuir os tra�os de uma bruxa; a figura masculina poder� ter uma representa��o num s�bio, que geralmente � representado por um ermit�o, etc. As figuras em si, mais ou menos semelhantes em v�rias culturas, s�o os arqu�tipos, que nada mais s�o que "corpos" que d�o forma aos conte�dos que representam: o arqu�tipo da m�e boa, ou da boa fada, representam a mesma coisa: o lado feminino positivo da natureza humana, acolhedor e carinhoso.
Este mundo inconsciente, onde imperam os arqu�tipos, que nada mais s�o que recepientes de conte�dos ainda mais profundos e universais, � pleno de esquemas de rea��es ps�quicas quase "instinitvas", de rea��es ps�quicas comuns a toda a humanidade, como, por exemplo, num sonho de persegui��o: todas as pessoas que sonham ou j� sonharam sendo perseguidas geralmente descrevem cenas e a��es muito semelhanes entre si, sen�o na forma, ao menos no conte�do. A ang�stia de quem � perseguido � sentida concomitantemente ao prazer que sabemos ter o perseguidor no enredo on�rico, ou a sua raiva, ou o seu desejo. Estes esquemas de rea��es "instintivas" (uso esta palavra por analogia, n�o por equival�ncia) tamb�m se encontram nos mitos de todos os povos e nas tradi��es religiosas. Por exemplo, no mito de Osires, na hist�ria de Krishna e na vida de Buda encontramos similiradades fascinates. Sabemos que mitos encobrem frequentemente a vida de grandes homens, como se pudessem nos dizer algo mais sobre a mensagem que eles nos trouxeram, e quanto mais carism�ticos s�o esses homens, mais a imagina��o do povo os encobrem em mitos, e mais esses mitos t�m em comum. Estes padr�es arquet�picos expressos quer a n�vel pessoal que a n�vel mitol�gico relacionam-se com caracter�siticas e profundos anseios da natureza humana, como o nascimento, a morte, as imagens parterna e materna, e a rela��o entre os dois sexos.

Outra tem�tica famosa com respeito a Jung � a sua teoria dos "tipos psicol�gicos". Foi com base na an�lise da controv�rsia entre as personalidades de Freud e um outro seu disc�pulo famoso, e tamb�m dissidente, Alfred Adler, que Jung consegue delinear a tipologia do "introvertido" e do "extrovertido". Freud seria o "extrovertido", Adler, o "introvertido". Para o extrovertido, os acontecimentos externos s�o da m�xima import�ncia, ao n�vel consciente; em compesa��o, ao n�vel insconsciente, a atividade ps�quica do extrovertido concentra-se no seu pr�prio eu. De modo inverso, para o introvertido o que conta � a resposta subjetiva aos acontecimentos externos, ao passo que, a n�vel insconsciente, o introvertido � compelido para o mundo externo.

Embora n�o exista um tipo puro, Jung reconhece a extrema utilidade descritiva da distin��o entre "introvertido" e "extrovertido". Ali�s, ele reconhecia que todos temos ambas as caracter�sticas, e somente a predomin�ncia relativa de um deles � que determina o tipo na pessoa. Seu mais famoso livro, Tipos Psicol�gicos � de 1921. J� nesse per�odo, Jung dedica maior aten��o ao estudo da magia, da alquimia,das diversas religi�es e das culturas ocidentais pr�-crist�s e orientais (Psicologia da Religi�o Oriental e Ocidental, 1940; Psicologia e Alquimia, 1944; O eu e o inconsciente, 1945).

Analisando o seu trabalho, Jung disse: "N�o sou levado por excessivo otimismo nem sou t�o amante dos ideais elevados, mas me interesso simplesmente pelo destino do ser humano como indiv�duo - aquela unidade infinitesiaml da qual depende o mundo e na qual, se estamos lendo corretamente o signficado da mensagem crist�, tamb�m Deus busca seu fim". Ficou c�lebre a controvertida resposta que Jung deu, em 1959, a um entrevistador da BBC que lhe perguntou: "O senhor acredita em Deus?" A resposta foi: "N�o tenho necessidade de crer em Deus. Eu o conhe�o".

Eis o que Freud afirmou do sistema de Jung: "Aquilo de que os su��os tinham tanto orgulho nada mais era do que uma modifica��o da teoria psicanal�tica, obtida rejeitando o fator da sexualidade. Confesso que, desde o in�cio, entendi esse 'progresso' como adequa��o excessiva �s exig�ncias da atualidade". Ou seja, para Freud, a teoria de Jung � uma corruptela de sua pr�pria teoria, simplificada diante das exig�ncias moralistas da �poca. N�o h� nada mais falso. Sabemos que foi Freud quem, algumas vezes, utilizou-se de alguns conceitos de Jung, embora de forma mascarada, como podemos ver em sua interpreta��o do caso do "Homem dos Lobos", notadamente no conceito de atavismo na lembran�a do coito. J� por seu turno, Jung nunca quis negar a import�ncia da sexualidade na vida ps�quica, "embora Freud sustente obstinadamente que eu a negue". Ele apenas "procurava estabelecer limites para a desenfreada terminologia sobre o sexo, que vicia todas as discuss�es sobre o psiquismo humano, e situar ent�o a sexualidade em seu lugar mais adequado. O senso comum voltar� sempre ao fato de que a sexualidade humana � apenas uma puls�o ligada aos instintos biofisiol�gicos e � apenas uma das fun��es psicofisiol�gicas, embora, sem d�vida, muit�ssimo importante e de grande alcance".

Carl Gustav Jung morreu a 6 de junho de 1961, aos 86 anos, em sua casa, � beira do lago de Zurique,em K�snacht ap�s uma longa vida produtiva, que marcou - e tudo leva a crer que ainda marcar� mais - a antropologia, a sociologia e a psicologia.

Leia tamb�m nosso trabalho

Links junguianos de interesse:

Grupo de Estudos Carl Gustav Jung
Pensamento Junguiano



Bibliografia Sugerida


  • Jung, Carl Gustav. Mem�rias, Sonhos e Reflex�es, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1991.
  • Jung, Carl Gustav. O Homem e Seus S�mbolos, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1991.
  • Jung, Carl Gustav. Psicologia e Alquimia, Editora Vozes, Petr�polis, 1990.
  • Fadiman, James & Frager, Robert. Teorias da Personalidade Editora Harbra, S�o Paulo, 1986.
  • Tardan-Masquelier, Ys�. C.G. Jung, a sacralidade da experi�ncia interior Editora Paulus, S�o Paulo, 1994.
  • Reale, Giovanni & Antiseri, Dario. Hist�ria da Filosofia, Vol. III, Ed. Paulus, S�o Paulo, 1991.
  • Withmont, Edward C. A Busca do S�mbolo, Ed. Cultrix, S�o Paulo, 1993.
  • Espiritualismo Ocidental Teorias Sist�micas da Personalidade A Psicologia Transpessoal O Holismo Plotino e o Neoplatonismo

    
    
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    Jo�o Pessoa, Para�ba, 08/01/1997.


    Revista em 22/08/1999.


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