Samuel Huntington
e a teoria do "choque de civilizações"
Argemiro Ferreira
NOVA YORK (EUA) - A mídia
continua persistente em recorrer (o que faz desde 11/9/2001) à teoria do
"choque de civilizações". A expressão tornou-se lugar-comum após ser
adotada pelo cientista político Samuel P. Huntington,
que em 1996 publicou o livro "The clash of civilizations
and the remaking
of world order" (O choque de civilizaçõs
e a reformulação da ordem mundial).
Esse livro é encarado às
vezes como tão influente na estratégia do governo Bush como tinha sido, na
década de 1940, o estudo de George Kennan sobre a
contenção do comunismo (containment), justificativa
intelectual da Doutrina Truman. Resultou, diz Huntington, da controvérsia gerada pela publicação na
revista "Foreign Affairs"
de um artigo em 1993 sobre o mesmo tema.
Editores da revista
compararam a repercussão à do ensaio de Kennan em
1947, sob o título "As fontes da conduta soviética" (assinado com o
pseudônimo "X"). Walter Lippman, então o
mais influente analista de política externa na mídia, fez depois uma dura
crítica do trabalho - ambos republicados 25 anos depois, junto com preciosa apresentação
de Ronald Steel, no livro "The
Cold War" (A Guerra
Fria).
Para Huntington,
"choques de civilizações" (em vez de conflitos entre nações) passarão
a dominar a política mundial, tornando-se a maior ameaça à paz no mundo. Como
melhor salvaguarda contra a guerra, sugeriu sua própria receita de nova ordem
internacional. Vivemos hoje, alegou, a transição do
antigo sistema mundial apoiado em três blocos de poder (EUA, URSS, Terceiro
Mundo) para outro.
O novo seria integrado
por oito grandes civilizações - ocidental, japonesa, confuciana
(chinesa), hindu, islâmica, eslava-ortodoxa,
latino-americana e possivelmente africana. Ele fez certas concessões
(diferenças não significam necessariamente conflito, conflito não é
necessariamente violência), mas observou: 1. O mundo está ficando menor,
aumenta a interação entre pessoas de diferentes civilizações;
Levando em conta
diferenças de séculos, que não desaparecerão logo, e a pouca ressonância das
idéias ocidentais de individualismo, liberalismo, direitos humanos,
constitucionalismo, igualdade, liberdade, democracia e separação igreja-estado
nas culturas islâmica, confuciana,
japonesa, hindu, budista ou ortodoxa, ele conclui ser provável que o eixo
central da política mundial no futuro venha a ser o conflito entre "o
Ocidente e o resto" (expressão de Kishore Mahbubani em 1992).
Huntington culpa as respostas das
civilizações não ocidentais aos valores e poderio ocidental. E arremata citando uma ameaça terrível da "conexão islâmica-confuciana"
contra o Ocidente (não explica porque não um choque entre a islâmica e a confuciana). A política ocidental teria necessariamente de
ser conduzida no sentido de manter a hegemonia mundial, desestabilizando as
civilizações hostis por meios militares e diplomáticos. Lançadas umas contra
outras, no estilo "equilíbrio do poder", elas aprenderiam a conviver
com a diversidade global.
Surgiram contestações
vigorosas, mas a expressão "choque de civilizações" entrou na moda.
Críticos apontam muitos furos, entre eles o fato de serem comuns os conflitos
dentro das próprias civilizações - e entre elas. É destacado ainda que a busca
de mais eqüidade em termos globais, atendendo às necessidades humanas,
contribuiria para evitar choques entre civilizações.
Mas Huntington
insiste: os choques virão, causados pela incompatibilidade de valores políticos
e morais. Não explica por que têm de gerar confrontação política e militar. No
governo Bush tal teoria foi abraçada com fervor pelos "neocons"
e pela direita religiosa (os "theocons").
Acabou consagrada no Pentágono dias depois do 11/9, quando o neocon Paul Wolfowitz advogou o
ataque ao Iraque, embora a inteligência só culpasse a al-Qaeda
de Osama bin Laden.
Pouco adiantou o perplexo
secretário de Estado Colin Powell
alertar que tal coisa afastaria os aliados. O próprio Bush diria ao neocon Richard Perle que tão logo
fosse resolvido o problema do Afeganistão seria a vez do Iraque. Na
terça-feira, 18/9, Perle reuniu os 30 membros do Defense Policy Board, então presidido por ele no Pentágono, na própria
sala de conferência do secretário da Defesa, Donald Rumsfeld.
Dois convidados especiais
falaram naquela reunião. O primeiro foi Bernard Lewis, da Universidade de
Princeton, ligado há anos a Wolfowitz e Dick Cheney. Decano dos
estudiosos das relações Ocidente-islamismo, Lewis fora o primeiro a usar a
expressão "choque de civilizações". O próprio Huntington
recorreu a ela, segundo disse, após ler ensaio dele, "As razões da fúria
islâmica", no qual escrevera:
"(...) Enfrentamos
um estado de espírito e um movimento que transcende o nível de temas e
políticas, como dos governos que as perseguem. É um choque de civilizações -
reação talvez irracional mas certamente histórica de
um antigo rival contra nossa herança judaico-cristã, nossa atual secularidade,
e a expansão em âmbito mundial de ambos."
No Pentágono, Lewis disse
que os EUA tinham de responder com demonstração de força ao 11/9, para dar uma
lição ao mundo islâmico. E ao defender um apoio aos "reformistas democratas"
do Oriente Médio, voltou-se para o lado onde estava o outro convidado de Perle para falar na reunião: "... como meu amigo aqui,
dr. Chalabi".
Referia-se, claro, a Ahmed Chalabi,
banqueiro falido, procurado por fraude na Jordânia, além de favorito do
Pentágono para o lugar de Saddam Hussein.
A presença no coração do Pentágono do criador da expressão "choque de
civilizações", junto com o banqueiro vigarista que fraudara pretextos para
o governo Bush invadir o Iraque, era indício eloqüente
das opções da Casa Branca. Três dias antes o presidente Bush, cristão
renascido, prometera responder com uma cruzada à jihad
de Bin Laden. Assim nasceu
a nova estratégia para substituir a Doutrina Truman
da Guerra Fria.