Jornal do Brasil /
Data: 17/4/2004
Que país é esse?
"Grilo-falante" dos
americanos, Michael Moore desponta como o maior
'best-seller' da Bienal Internacional com livro em que ataca belicismo de Bush
ALEXANDRE MARTINS
“Foi para isso que eles morreram? Para fazer com que George
W. Bush transforme o país no Texas?” Partindo dessa pergunta, o cineasta,
escritor e consciência crítica dos Estados Unidos Michael
Moore faz em seu novo livro, Cara,
cadê o meu país? mais um ataque demolidor ao presidente Bush,
criticando sua reação aos ataques de 11 de setembro e questionando seus
motivos. Escrito com a conhecida virulência do autor (uma das poucas vozes
dissonantes surgidas nos EUA nos últimos anos, que causou polêmica com seu
discurso ao receber o Oscar por Tiros em Columbine ) e apoiado em
muitas fontes documentais (46 páginas de bibliografia, incluindo endereços de
sites na internet), o livro aponta as ligações entre Osama
bin Laden, os sauditas, o Talibã e a família Bush, exibe as mentiras oficiais
contadas e protesta contra a política de assustar para dominar.
Moore começa apontando os investimentos feitos pelos Bin Laden na empresa de Bush
filho no Texas e no Carlyle Group,
da qual Bush pai foi consultor ao deixar a Presidência, para perguntar: ''Por
que o sr. permitiu que um jato particular saudita
voasse pelos EUA nos dias que se seguiram ao 11 de
setembro recolhendo membros da família Bin Laden e levando-os para fora do país sem uma investigação
apropriada do FBI? Não seria possível que pelo menos um dos 24 Bin Laden tivesse remoto
conhecimento de alguma coisa?''
O próximo alvo são as ligações entre os
Bush e a família real saudita, que tem um de seus membros, o príncipe Bandar, chamado carinhosamente de Bandar
Bush. Lembra que o governo americano censurou 28 páginas da investigação do
Congresso sobre o papel dos sauditas no ataque de 11 de setembro, mostra que 15
dos 19 seqüestradores dos aviões entraram legalmente nos EUA graças a um acordo
que livra os sauditas dos procedimentos normais de checagem e levanta a
possibilidade de que tenham recebido treinamento militar (''e se eles não
fossem terroristas pirados, mas pilotos militares que se alistaram em uma
missão suicida? E se eles o fizessem sob as ordens do governo saudita?''). O
grilo-falante Moore pergunta: ''Mr Bush, isso tem
algo a ver com as íntimas relações entre sua família e a família real
saudita?''
Não é o suficiente? Então Moore
ainda aponta as ligações entre Bush, empresas petrolíferas do Texas, a Halliburton, a Enron e os talibãs para a construção de um gasoduto que partiria do Turcomenistão, seguiria através do
Afeganistão e chegaria ao Paquistão. Negócio suspenso quando Osama bin Laden
praticou atentados contra duas embaixadas e Bill Clinton retaliou, bombardeando
o Sudão e um campo de treinamento no Afeganistão. ''Qual seria a solução?'',
pergunta Moore? ''Um novo presidente até que não
faria mal... Então a Enron tornou-se um dos maiores
contribuintes de sua campanha eleitoral para desestabilizar o eixo
Clinton/Gore.'' E as mentiras? O Iraque tem armas nucleares, químicas e
biológicas. (''Nunca houve armas químicas ou biológicas, além daquelas que nós
mesmos fornecemos a Saddam nos anos 80, as mesmas que
ele usou contra os curdos e contra os iranianos. Nós demos a Saddam: Bacilus anthracis, Clostridium botulinum, Histoplasma capsulatum, Brucella melitensis, Clostridium perfringens. '')
O Iraque tem laços com Osama bin
Laden e a Al Qaeda. (''O
problema com essa falácia é que Osama bin Laden considera Saddam um
infiel. O maior motivo para que Saddam e Osama não se
gostem é o mesmo motivo pelo qual os Bush e Saddam
pararam de se gostar: a invasão do Kuwait. Osama
estava irritado porque isso trouxe tropas americanas à Arábia Saudita e às
terras sagradas dos muçulmanos. Saddam e Osama eram
inimigos mortais e não podiam colocar as diferenças de lado, mesmo que o motivo
da união fosse derrotar os EUA.'')
Cara, cadê o meu país? chega ao fim
denunciando a tática da administração Bush de assustar para dominar, criando
pânico para justificar medidas arbitrárias, pelo ''desejo ardente de dominar o
mundo''. Como? ''Primeiro nos controlando e depois, em troca, fazendo com que
apoiemos seus esforços para dominar o resto do planeta. Parece maluquice, não
é? Essa é a versão de Bush da velha chantagem da proteção da máfia. Tem alguém
aí fora que vai ferrar você.'' Qual a razão disso? Para Moore,
a explicação é simples: os americanos estariam cada vez mais à esquerda, o que
poderia ser constatado no apoio ao controle de armas, ao aborto, ao ambientalismo, ao seguro-saúde universalizado, ao
não-encarceramento de infratores não-violentos, à igualdade de oportunidades
para os homossexuais. ''A verdade nua e crua - e o segredo político mais bem
guardado de nossa época - é que os americanos estão mais liberais que nunca. O
motivo pelo qual a direita é tão agressiva tentando esmagar toda e qualquer
dissidência é porque ela sabe do segredinho que a esquerda não percebe: que
mais americanos concordam com a esquerda que com a direita.
Michael Moore é faccioso? Claro.
Michael Moore faz proselitismo? Sem dúvida. Mas ele
não faz segredo disso. E a sua afirmação de parcialidade reforça seus
argumentos: ''Os safados que governam nosso país são
uma corja de bandidos coniventes de uma figa que precisam ser depostos,
removidos, substituídos por um sistema completamente novo que nós controlemos.
É assim que a democracia tem que ser - nós, o povo, na porra
do comando. Nunca vou esquecer da Enron. É um evento
que vai além da improbidade administrativa, é um plano orquestrado para abalar
nossa economia e eleger canalhas que protejam os golpistas em seu afã de tomar
o país.'' Ao criticar os cortes na taxação do Imposto de Renda promovidos por
Bush que beneficiaram os mais ricos, Moore avisa o
que pretende fazer com o dinheiro que deixou de gastar: ''George,
vou gastá-lo inteiro para me livrar de você! Isso mesmo. Até o último
centavo de minha dedução vai escorrer sobre a sua cabecinha pontuda na
esperança de que quando chegar a eleição você entre na
fila de desempregados e seja mandado de volta para o rancho. Será um dinheiro
bem gasto.''
A devolução do imposto foi fruto dos altos rendimentos que Moore obteve com Stupid white
man (mais de 5 milhões de exemplares
vendidos). Na semana em que foi lançado no Brasil, Cara, cadê o meu país?
entrou direto em primeiro lugar na lista de mais
vendidos. O que permite que a editora faça uma segunda edição, reduzindo os
muitos erros de tradução e revisão que contaminam a obra. Afinal, não são aceitáveis ''a deputado'', ''Nato'' no lugar de Otan,
''nenhuma são capazes'' e chamar a cidade sagrada de ''Mecca'',
entre outros absurdos.
Em tempo: um dos méritos da edição brasileira é trazer um
prólogo escrito especialmente por Moore para o
público nacional, em que ele louva o país, agradece pela oposição à guerra
(''Afortunadamente vocês não se intimidaram com a provocação'') e faz um
alerta: ''A turma no poder aqui é para lá de deus-me-livre. Eu só digo o
seguinte: nada vai detê-los na destruição do que estiver no seu caminho,
especialmente se no caminho de eles fazerem mais uma graninha. E vão castigar
vocês, sejam aliados ou não, se vocês não se ajoelharem e baixarem a cabeça à
passagem deles''.
E olhe que isso foi antes que os americanos começassem a acusar o Brasil de dificultar as inspeções em instalações atômicas.