O Terror de 64

Artigos Sobre o Horrendo Golpe Militar de 1964

Todos os artigos aqui expostos foram extraídos do Jornal Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, entre 31 de março a 02 de abril de 2004

 

O golpe, os atos institucionais, a guerrilha e os porões da Ditadura

O golpe de 1964 ficou dependendo, na última hora, da adesão do general Amaury Kruel, comandante do 2º Exército, baseado em São Paulo, e amigo pessoal de João Goulart. No dia 31 de março, pressionado pelos outros golpistas, Kruel ligou para Goulart e lhe pediu que recuasse, decretando o fechamento do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). Goulart disse não e Kruel escolheu um lado.

 

A intervenção armada era amparada por fundamentos que pareciam justos à maioria da tropa e lhe davam legitimidade - o restabelecimento da democracia e a lutta contra o comunismo. Os altos oficiais acreditavam que, no correr da história, o País ser-lhes-ia imensamente grato por terem quebrado a legalidade para salvar a democracia.

 

Conceber a legitimação era simples, explica o professor Leôncio Martins Rodrigues: "Como os dois lados tencionavam suprimir as liberdades democráticas, a direita, ao vencer, não carregava nenhuma culpa. Nascia um regime híbrido, diferente das outras ditaduras militares sul-americanas. Aqui, não ocorria um golpe clássico, em que militares enxotam os políticos dos palácios e fecham os parlamentos. Aqui os militares chegaram ao palácio levados pelos políticos e, ao assumir o governo, teriam a unção legitimadora do parlamento."  Mas não de parte signficativa do povo...

 

O médico Wilson Fadul, ministro da Saúde do governo Goulart, conta que, por sua interferência decisiva, Kruel era o favorito para a Presidência Provisória. Mas o general Humberto Castello Branco, chefe do Estado-Maior do Exército, que assinara nota aos subordinados no dia 20 de março, disputava a indicação. A idéia da legitimidade recomendava que o presidente provisório fosse eleito indiretamente pelo Congresso remanescente do golpe.

 

Segundo Fadul, Castello pediu ao embaixador Negrão de Lima, seu contraparente, para fazer uma reunião com JK, líder máximo do PSD. Um Castello efusivo recebeu JK de braços abertos: "Meu presidente, eu lhe devo a promoção para general de divisão!"

 

Fizeram um pacto: JK lhe dava os votos do PSD e Castello garantia o calendário eleitoral e as eleições presidenciais de 1965, à qual JK era candidato declarado. Três meses depois, em 8 de junho, Castello cassava JK.

No dia 9 de abril de 1964, o Comando Supremo da “Revolução” emitiu o Ato Institucional - que era para ser único e acabou sendo o primeiro de 17 atos de exceção - , que pretendia legitimar o movimento. O AI fixou para dois dias depois a eleição indireta que definiu Castello Branco como presidente provisório, com mandato até 31 de janeiro de 1966, e confirmou eleições presidenciais para outubro de 1965. O comando reservava-se o direito de cassar mandatos e suspender direitos políticos pelo prazo de 10 anos.

 

A primeira lista de punições, divulgada no mesmo dia, suspendia os direitos políticos de 100 pessoas, começando por um comunista, Luiz Carlos Prestes, um trabalhista, João Goulart, e um udenista, Jânio Quadros.

Cassações

As cassações de mandatos atingiam 40 deputados, a maioria do PTB. Mas, quando veio a cassação de JK, ficou claro que os militares já não distinguiam esquerda e direita: queriam mesmo era governar sozinhos, descartando os políticos.

 

Os militares deram o primeiro sinal de que não cogitavam abandonar o poder tão cedo quando embaralharam o calendário eleitoral, em julho de 1965. O código eleitoral divulgado proibia que os governadores concorressem às eleições presidenciais marcadas para 3 de outubro - a medida eliminava Lacerda da sucessão. Pouco depois Castello enviou ao Congresso um projeto que estabelecia a eleição indireta para presidente e Lacerda rompeu com o regime.

 

Os militares responderam com o AI-2, que extinguiu os partidos políticos. Foram autorizados apenas dois partidos - Arena e MDB. Ainda apegado à necessidade de legitimação, o governo militar perdeu os freios e começou a editar mais medidas que ampliavam o regime de exceção. Alguns meses depois a eleição indireta foi imposta também para os governos estaduais. O general Arthur da Costa e Silva foi eleito por via indireta em 3 de outubro de 1967.

 

Lacerda rompeu com o regime e, em setembro de 1966, em entrevista, defendeu a criação de uma Frente Ampla com JK e Goulart. Em novembro encontrou-se com JK em Lisboa; o encontro com Goulart, em Montevidéu, se daria em setembro de 1967.

 

Mas em abril de 1968 o governo proibiu a Frente Ampla; com a edição do AI-5, Lacerda foi preso e teve os direitos políticos suspensos por dez anos, viajando para o exterior como correspondente de "O Estado de S. Paulo" e do "Jornal da Tarde".

 

Até o seu final o regime militar seria marcado por sucessões presidenciais periódicas, pretextando manter, dentro da exceção, um regime com aparência "constitucional". O professor Leôncio Martins Rodrigues ironiza: "Aqui, ao contrário de outras ditaduras latino-americanas, os ditadores tinham prazo de validade." Por quê? Leôncio entende que em 1964 o poder não foi tomado por um general ou um grupo militar, mas pela instituição Forças Armadas, em nome da defesa da democracia.

Símbolo

Para continuar legitimando o exercício do poder por generais escolhidos pelos generais, o regime precisava ser ungido num simulacro legalista por um Congresso aferroado. O cacoete pseudo-legalista foi esquecido em 1968, quando os protestos de rua emparedaram o governo, que acabou dominado pela linha dura. Veio o AI-5, o momento mais sombrio do regime militar. Os anos seguintes foram de morna rearticulação das formas de oposição.

 

A partir de 1968, a cada avanço das oposições, o governo militar endurecia mais. Os estudantes foram para as ruas e as bem-sucedidas passeatas enfureciam o regime, que aumentava a repressão. Em 28 de março de 1968, na ocupação do restaurante do Calabouço, no Centro do Rio de Janeiro, um tiro dado por um capitão da PM matou o estudante Edson Luiz de Lima Souto.

 

A morte do estudante Edson Luiz tornou-se um símbolo do protesto da esquerda e motivou uma seqüência de passeatas. A principal delas, a Passeata dos Cem Mil, configurou o maior desafio até então lançado ao regime. Em agosto, a Universidade de Brasília foi ocupada. No começo de setembro, o deputado Márcio Moreira Alves, num discurso ingênuo, propôs que o povo não prestigiasse o desfile militar e que as moças não mais namorassem militares.

 

O governo buscava um motivo para endurecer e aproveitou para processar o deputado. No dia 13 de dezembro, uma sexta-feira, a Câmara negou licença para o processo e a fúria militar fez desabar sobre o parlamento e o País uma chuva de chumbo que atendia pelo nome de AI-5, suspendendo garantias individuais, cassando mandatos e suspendendo direitos políticos e propiciando a mais brutal censura da História do Brasil.

 

A eliminação dos canais pacíficos de manifestação empurrou os jovens idealistas para a luta armada. As organizações de luta armada começaram a pulular nas grandes cidades: eram organizações de siglas curiosas - Movimento de Libertação Popular (Molipo), Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Vanguarda Armada Revolucionária (Var-Palmares), Comando de Libertação Nacional (Colina), Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), entre outros. Em resposta, o governo militar fortaleceu o aparelho repressor.

Desmonte da guerrilha urbana

Em 1969, a pretexto de combater a "guerra revolucionária", o 2º Exército criou a Operação Bandeirantes (Oban). Nela, o Centro de Operações de Defesa Interna (Codi) era o setor de Inteligência e coordenava o Destacamento de Operações Internas (DOI), seu braço executivo. O conjunto ficou tristemente conhecido pela tenebrosa sigla DOI-Codi, um centro organizado de torturas oficial. O aparelho de repressão era um Estado dentro do Estado e fazia a sua própria lei.

 

Em novembro de 1969, Carlos Marighella, ícone da luta armada e líder da Ação Libertadora Nacional (ALN), foi morto em São Paulo, num presságio do progressivo desmonte da guerrilha urbana. Em 1972, o PC do B montou, no Sul do Pará, um foco de guerrilha rural que logo foi dizimado, causando a morte de 58 militantes.

        

A luta armada perdeu seu ímpeto, mas a repressão continuou ampliando sua ação sem qualquer controle. As denúncias de excessos tinham limitações enormes, com a oposição pressionada, a imprensa e as artes censuradas e os bispos perseguidos. Destacou-se o arcebispo Hélder Câmara, de Olinda e Recife, intensamente perseguido por denunciar a violência do regime mundo afora.

 

O Brasil atravessaria em trevas o ano de 1969. O presidente-general Costa e Silva sofreu, em agosto, um derrame que seria fatal e foi sucedido por uma Junta Militar composta pelos três ministros militares, um trio que a voz surda das ruas apelidou de "os três patetas". Ainda assim o regime sentiu necessidade de buscar fórmulas que dessem um verniz de legitimidade.

 

O Alto Comando do Exército indicou um novo general, Emílio Garrastazu Médici, e o Congresso foi instado a elegê-lo. Em 1970, em meio à euforia da conquista do tricampeonato mundial de futebol e uma brutal censura à imprensa, houve eleições para o parlamento, onde o MDB, a única via de oposição ao governo militar, colheu um resultado desalentador - elegeu 2 senadores e 87 deputados (28% da Câmara).

 

Em 1974, a primeira sucessão aprazada de generais - Ernesto Geisel sucedeu Médici, mas a oposição resolveu contaminar o processo, lançando seu principal líder, Ulysses Guimarães, como anticandidato. Ulysses percorreu o Brasil pregando pela democracia e o resultado veio nas eleições parlamentares - o MDB ganhou 16 das 21 cadeiras que disputou para o Senado e alcançou 45% da Câmara.

 

O regime tomou outro susto e, como fazia sempre que se assustava, sacou, em abril de 1977, mais um de seus casuísmos de algibeira, o "pacote de abril", que criou os senadores biônicos para garantir a sucessão de Geisel por mais um general. Geisel depois diria que seu governo preparou a abertura e o afastamento dos militares. Na época, a linha dura pensava na eternização dos militares.

Tortura nos porões

O primeiro baque veio em outubro de 1975: o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado nos porões do DOI-Codi paulista. Houve grande mobilização popular, na qual se destacou o cardeal Paulo Evaristo Arns. Geisel, que tempos depois justificaria a tortura, advertiu os generais linha-dura que não permitiria a repetição de uma morte nos porões.

 

Três meses depois o aparelho repressor matou o operário Manoel Fiel Filho. Geisel demitiu o comandante do 2º Exército e passou o resto de seu mandato enfrentando tentativas tópicas de desobediência.

 

Entre 1964 e 1985, quando o Brasil voltou a ter um governo civil democrático, muitos foram cassados - estima-se que em torno de 3.500 pessoas - exilados, presos, torturados e mortos. Três dessas mortes foram simbólicas: uma - a do estudante Edson Luís, em 1967 - levou o regime ao auge do endurecimento; e duas - as do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, e do operário Manoel Fiel Filho, em 1976 - delinearam o início do seu desmantelamento final.

 

A ONG Tortura Nunca Mais lista 154 mortes (17 mulheres) provocadas pela ditadura, a maior parte nos anos da luta armada. Os maiores números aconteceram em 1972, quando morreram 38 (cinco mulheres), e em 1973, quando morreram 28 (cinco mulheres).

 

A partir de 1974, quando a luta armada foi gradualmente substituída pela mobilização pacífica, as mortes se reduziram. A partir daí, a maioria dos casos aconteceu em sessões de torturas nos porões de um regime cada vez mais agonizante.

 

O último general, João Figueiredo, foi escalado para consolidar o ritual de volta à democracia. Começou sob o alentado signo da anistia e da criação de novos partidos, que os ideólogos do governo maquinavam como uma forma de pulverizar os esforços da oposição. Aconteceu ao revés: as múltiplas agremiações enraizaram a mobilização popular, fortalecida pelas seguidas e históricas greves do ABC paulista, de onde brotariam Luiz Inácio Lula da Silva e o PT.

 

Em 1981 um sargento e um capitão do Exército preparavam um atentado contra milhares de jovens que viam um show no Riocentro. A bomba explodiu antes da hora, matou o sargento e feriu de morte o regime militar. Acabava ali o ciclo militar, que apresentou êxitos ponderáveis no campo econômico - um crescimento de dois dígitos nos PIBs dos anos mais duros, uma inegável modernização do parque industrial, avanços nas telecomunicações, mecanismos eficazes de substituição de importações e outros pontos - mas já havia perdido a guerra ideológica.

 

Sem motivação e sem força política, Figueiredo exerceu um poder opaco por mais três anos. De seu gabinete, impotente, assistiu às sucessivas campanhas que a oposição - agora fortalecida em vários partidos - promovia, com crescente adesão popular. (C.M.)

 

Eu vi o golpe

Sebastião Nery

(Jornal Tribuna da Imprensa, 01 e 02 de abril de 2004)

Às 21h, saí do Hotel Serrador, na Cinelândia, e fui para o Automóvel Clube do Rio, ali ao lado da Mesbla, na Rua do Passeio, na noite de 30 de março de 64. Havia mais farda do que roupa. Quase impossível entrar. Mais de mil pessoas, ansiosas, agitadas, aos gritos, em um auditório pequeno.

Todo mundo esperando o presidente João Goulart, que já havia saído do Palácio Laranjeiras. Daí a pouco, ele chegou, com vários ministros, freneticamente saudado. Pálido, perplexos olhos de espanto, cercado pela segurança, avançou entre a multidão. Tive a exata impressão de que ele estava sendo empurrado para o matadouro.

Lá de cima, olhou aquele mundo de fardas e deu seu raro sorriso tímido, mas largo, quase vitorioso. E se reanimou. Na mesa, com ele, o ministro da Justiça, Abelardo Jurema, o sargento-deputado Garcia, o sargento Antonio Prestes, o cabo Anselmo dos Santos. Era um ato flagrantemente militar.

Cada discurso mais inflamado. Ele os ouvia impávido. Mas ninguém falou em golpe, em rasgar a Constituição. A palavra de ordem era forçar o Congresso a aprovar as reformas de base. Jurema, com seu poderoso vozeirão, insistiu em que a história sempre foi o povo conseguindo a esperança virar lei.

Jango

Quando Jango se levantou, a meu lado, espremido como eu contra a parede, o sereno mineiro Roberto Gusmão, assessor do chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro, que escrevia os discursos e mensagens do presidente, suava de ansiedade. Tinha feito também aquele discurso que Jango tirava do bolso.

Começou a ler paudamente. Daí a pouco, à medida que o salão sacudia de aplausos, Jango ia levantando a voz e a alma, falando cada vez com mais vigor, mais convicção, garantindo à Nação que as reformas seriam feitas. Já não era o mesmo homem inseguro que eu vira entrar.

De repente, num gesto brusco, Jango jogou sobre a mesa as laudas que faltava ler e começou a falar de improviso, cada vez mais forte, jurando, emocionado, que a política de conciliação chegara ao fim e que as reformas iriam ser conquistadas nas ruas. Gusmão gemeu, tenso:

- Ai, meus Deus! Puta que o pariu!

- Por que, Gusmão?

- Ele não pode fazer isso. Não pode errar. Os golpistas estão esperando um pretexto, uma palavra em falso e tudo estará perdido.

Àquela hora, já madrugada de 31 de março, tudo já estava perdido. O golpe vinha de Minas. Gusmão contou que, antes de Jango sair do Laranjeiras, Tancredo pediu:

- Presidente, não vá. Se o senhor for, o senhor cai.

Mourão e Brizola

Jango foi embora, a Cinelândia continuou incendiada. O Clube Militar, na praça reunido, as luzes acesas, oficiais entrando e saindo. No Clube Naval, esquina de Almirante Barroso com Rio Branco, os discursos gritavam pelas janelas.

O dia amanhecendo, entro no Hotel Serrador, carregado de jornais ainda quentes. A conspiração virava golpe em todas as manchetes, com a exceção única da "Ultima Hora". O "Correio da Manhã" urrava: "Fora"!

Acordei meio-dia com um telefonema de Minas. Apoiado pelo governador Magalhães Pinto, o general Mourão Filho, que a UDN achava um paspalhão, marchava de Juiz de Fora para o Rio à frente de suas tropas.

Corri para a casa de Max da Costa Santos, baiano, deputado do PSB da Guanabara, no Flamengo. Ligamos para Brizola em Porto Alegre, que reagia:

- Vamos resistir! Como em 61, vamos resistir de qualquer maneira! Isso é um golpe dos interesses norte-americanos com tropas brasileiras. O Jango está hesitando, mas a UDN vai querer fazer agora o que Vargas impediu em 54 com o suicídio. Temos que jogar tudo. Aqui no Rio Grande, vou marchar com o povo e ocupar o governo. É preciso segurar o Lacerda aí. Vão para a Rádio Mayrink Veiga. O Miguel Leuzi está sem querer fazer de novo a Cadeia da Legalidade, mas temos que pôr no ar, imediatamente, pela nossa Mayrink.

Mayrink Veiga

Fomos. Max assumiu a rádio e os oradores desfilavam no microfone. Denunciei o caráter norte-americano do golpe (como ficou comprovado em 77, nos documentos secretos dos Estados Unidos revelados por Marcos Sá Correia).

Anoiteceu e de repente o corre-corre. Caminhões da Polícia Militar do governador Lacerda cercavam a rádio. Telefonamos desesperados para os Fuzileiros Navais do almirante Aragão, que prometeram ir e não chegavam.

Enfiamos os bicos de meia dúzia de enferrujados fuzis e metralhadoras nas janelas do segundo e do terceiro andares, para dar a impressão de que estávamos fortemente armados. A PM não entrou, não subiu, e lembro bem o ridículo de me ver atrás de um cabo de metralhadora que mal sabia manejar, apontada para o botequim bem em frente, na ruazinha apertada, e o velho português, da porta, gritando apavorado, com os braços abertos:

- Aponta para lá, "doutoire"! Aponta pro outro lado, por "favoire"!

Os fuzileiros chegaram, a PM saiu, fomos para a Rádio Nacional.

 

Em busca de alternativas
Trechos da entrevista de Waldir Pires (Consultor Geral da República à época do Presidente João Goulart) à Deigma Turazi.

"Há um grande instante na história deste País, que sinalizou a absoluta interrupção do projeto anterior e que foi marcado pelo suicídio do presidente Getúlio Vargas. Quando ele faz a denúncia do problema da terra e quando ele faz a denúncia do problema da não industrialização brasileira e do controle externo sobre o Brasil e dá um tiro no peito. Naquele momento, é um dado histórico importantíssimo, uma fase do processo brasileiro, nós não poderíamos continuar mais. E o Brasil estava buscando uma solução, que era o desenvolvimento econômico, com liberdades do povo, com a democracia.

Naquele tempo e naquele momento, quando alguém cogitava disso, era tachado de comunista. Eu, por exemplo, nunca fui comunista, nunca me filiei ao Partido Comunista. Fiz minha vida inteira em aliança com os comunistas. Sempre. Mas nunca admiti ser comunista porque, para mim, nunca se chegaria a um regime, digamos assim, de igualdades sociais por via da interrupção das liberdades".

Jango nunca foi comunista

"Jango nunca foi comunista. Ele era um grande proprietário e gostava disso. Lá no exílio - nós só nos tornamos amigos no exílio - ele me dizia naquelas noites infindáveis em que tínhamos muito tempo para conversar: `Eu sei fazer duas coisas Waldir. Eu sei fazer política e sei criar boi, cuidar da terra'. Era disso que ele gostava e sabia. E fazia bem. Quando ele chegou à capital da República, como ministro do Trabalho do governo de Getúlio Vargas, ele já era um homem muito rico, provavelmente o maior invernista de terras do Rio Grande do Sul. Era, provavelmente, o principal fornecedor de carne para os frigoríficos e por isso era poderoso".

Crimes em nome da democracia

"Para mim, a contribuição dos Estados Unidos para o golpe foi importante. Hoje isso é uma coisa muito conhecida. Hoje se sabe, existem estudos sobre isso. Os Estados Unidos têm uma coisa muito boa: praticamente todos os documentos se tornaram públicos, estão nas universidades, nas bibliotecas. Desde 1980 os estudiosos de ciências sociais, de ciências políticas, têm acesso a todos os documentos.

Hoje se sabe, quanto se conspirou nos Estados Unidos para o golpe de Estado no Brasil. Passo a passo. Para o golpe de Estado no Brasil e para os golpes na América Latina toda. Essa foi uma fase da intolerância nos Estados Unidos. Eles pretendiam assegurar a democracia, matando a democracia, como se deu no Brasil, como se deu no Uruguai, como se deu no Chile, como se deu na Venezuela, como se deu no Peru, na América Latina inteira. Foram caindo todos os regimes democráticos e eles instalando ditaduras em nome da democracia".

Desafio

"O grande desafio ainda hoje é responder à pergunta: `Como é que nós organizamos democraticamente um regime que abranja todo o povo, que proteja a população, que proteja o trabalho, que proteja o emprego, que proteja o bem-estar, que assegure aos jovens e às famílias a oportunidade de viver em paz?'. Esse é o grande desafio que está posto no mundo de hoje. Ainda estamos por estabelecer este caminho".

Brasil interrompido

"Nada é mais terrível para o Brasil do que a interrupção em 1964 do desenvolvimento político do País, da incorporação gradual do seu povo na cultura global do Brasil, na capacidade de cada um ir se tornando gradativamente cidadão e cidadã. Aquilo tudo foi interrompido por uma visão canhestra, uma visão pequena, obtusa, que exclui o povo do processo civilizatório. Hoje, o Brasil é um dos países campeões da criminalidade no mundo. Por quê? Por que essa exclusão? Foi o povo brasileiro que mudou? A natureza do nosso povo mudou? A índole do nosso povo mudou? Ou não mudaram as estruturas sociais, as quais eram terrivelmente arcaicas e continuaram arcaicas?"

Retorno da esperança

"Eu, por exemplo, digo muito claramente: o governo do presidente Lula representa, para mim, para a minha geração, a retomada daqueles sonhos de 40 anos atrás, que foram interrompidos. A mudança que se pretende hoje, para garantir que a população toda viva com um mínimo de condições, tenha uma existência decente, era o que se chamava, há 40 anos, Reformas de Base. E ainda hoje há muitas dificuldades. Uma concepção de política que não utiliza os fatores decisivos da inteligência humana. Hoje temos, muito mais do que quarenta anos atrás, uma capacidade gigantesca de produzir alimentos, de produzir bens. No entanto, estamos aí com uma sociedade de escassez absoluta, escassez de tal natureza que nós temos 50 milhões de brasileiros que passam fome, que suportam condições abaixo do nível da existência humana".

Na lista do AI-1

"Na madrugada do dia 1ª de abril para o dia 2, até o dia 9, num governo que não tinha nenhuma qualificação, os chamados `comandos revolucionários' baixaram um ato institucional que não tinha número, porque eles esperavam que fosse o único. Não foi o único, depois vieram o dois, o três, o quatro, o cinco. Este foi o mais cruel de todos, o mais perverso, mas ele só chegou em 13 de dezembro de 1968. Eu não estava no Brasil havia muito tempo. Eu caí no AI-1, que cassou os direitos políticos de 100 pessoas no Brasil. Eu estou no sétimo lugar. Na primeira posição estava o João Goulart. O Darcy Ribeiro era o quarto".

Amargura do exílio

"Uma das coisas que muito nos marcou, quando chegamos a Montevidéu, eu e Darcy - nós ficamos no mesmo quarto de uma pensão - foi ver a quantidade de gente exilada. Os espanhóis exilados desde os anos 30, dos tempos da Guerra Civil e da vitória do General Franco. E eu via as famílias, o quadro de amargura, de tristeza, de senhoras e senhores e de jovens excluídos. Gente que tinha ido como exilado, que não tinha ido como emigrante. O emigrante é uma pessoa que vai disposta a conquistar o seu tempo e a sua vida na terra dos outros. O exilado não. O exilado é uma pessoa que vai e pensa o tempo inteiro em voltar, o tempo inteiro em seu país, vai contrariado, vai impelido pela ditadura, pela brutalidade".

A marca da intolerância

"O AI-5 (Ato Institucional nº 5, editado em 13 de dezembro de 1968) foi a marca terrível de uma posição política intolerante, que significava que a ditadura brasileira seria uma coisa demorada. Então, quando se deu o AI-5, eu intimamente, tomei a minha decisão: `Eu digo, vou me preparar para voltar. Haja o que houver'. Eu tinha uma posição razoável, era professor universitário, tinha um salário razoável que dava para viver minha vida simples, com meus cinco filhos e minha mulher.

Vivíamos em paz, conversávamos com todos os exilados do mundo e com os exilados do Brasil. Mas eu tinha decidido que iria voltar, até porque os processos que existiam contra mim eram do dia da resistência. (1º de abril de 1964). Era evidente, portanto, que eu praticara todos os atos dentro da ordem legal e constitucional vigente, da democracia brasileira que nós defendíamos. De forma que esses processos foram arquivados. Não tiveram possibilidade de ir avante, não podia haver subversão daquilo que era em defesa da legalidade e da constitucionalidade, da Constituição de 1946.

Então decidi voltar. Com o AI-5, em seguida, eu comecei a me arrumar. Porque, antes do AI-5, as passeatas do Rio de Janeiro foram nos mobilizando. Portanto, cada um de nós foi se arrumando. Como é que se pode voltar? Digo, bom, eu vou voltar. Nós dizíamos sempre, para cidades em que for viável a luta de massas, a luta política de construção de uma redemocratização brasileira.

Então, nós tínhamos isso muito definido estrategicamente. Voltar para o Brasil significava voltar para São Paulo ou para o Rio de Janeiro. Eu não podia voltar para a Bahia. Na Bahia, eu não tinha nem como ganhar a vida. Então, decidir ir para o Rio de Janeiro".

Volta adiada

"Chegamos a comprar um apartamentozinho no Rio de Janeiro, com Iolanda e cunhados. Quem ajudou inclusive a encontrar esse apartamento lá no Rio de Janeiro, na Rua Toneleiros, quem adquiriu o apartamento foi o Rubens Paiva, em 1968. Então o Darcy (Ribeiro) voltou, mas eu não podia voltar em 68.

Disse a eles: `Eu entro nessa história, nós estamos ajustados, mas eu não posso voltar agora'. Isso porque eu assumi o compromisso com a universidade. Tinha que concluir o curso. E o curso só se concluiria no mês de junho do ano seguinte, em 69. De modo que então eu tinha que cumprir a minha palavra".

Autonomia mínima

"Queríamos permitir que o governo tivesse uma política que respeitasse o interesse da sociedade brasileira e que garantisse a participação do Brasil nas decisões do mundo. O presidente João Goulart defendia essa tese. Propunha relações comerciais com a União Soviética, que nós não tínhamos. Propunha relações comerciais com a China Continental, que nós não tínhamos. A União Soviética tinha relações diplomáticas com todas as nações poderosas do mundo. Por que o Brasil não podia tê-las? Essas autonomias mínimas deveriam ser exercidas".

O latifúndio é um crime contra a paz social

"Toda vez em que se falava na questão social, em melhorar a renda e o salário, em garantir o acesso das pessoas à terra, era quase um crime. Coisas que os Estados Unidos fizeram na metade do Século XIX. Uma das reformas básicas - está encaminhada na mensagem do presidente João Goulart, de 15 de março de 1964 - era a reforma agrária. Era um princípio, por exemplo, que estava na raiz do direito europeu e do direito norte-americano desde a metade do século XIX. Para nós aqui, era caso de polícia. Então, o presidente introduziu a reforma agrária no Brasil.

Não é lícito. Não é lícito manter a terra improdutiva em nome e por força da propriedade. A terra não está ai para ser improdutiva. Deus não pôs a terra no mundo para ser improdutiva. Então, o latifúndio é um crime contra a vontade de Deus. É um crime contra a paz social. Mas toda vez que se pretendia estabelecer regras que fossem capazes de modificar aquele quadro, a reação era bruta, e assistíamos a um absurdo de intolerância".

Garantias ao povo camponês

"Jango se propunha a fazer reforma agrária em suas terras porque era o presidente da República e queria dar o exemplo. Certa vez ele disse: `Eu sou um grande proprietário. Eu entendo que o Brasil deveria ser um país de milhões e milhões de proprietários de terras. Eu quero dar este exemplo'. O que importava é que a reforma agrária estava sendo posta na ordem positiva do direito do brasileiro, e isso é que era importante. Se ele faria ou não (a reforma agrária), seria um problema futuro dele. Mas, na realidade, ele estava lutando politicamente para isto. E não se tratava da posição política de ninguém. Tratava-se de melhorar as condições do povo brasileiro.

Nós nos tornamos uma das nações mais atrasadas do mundo na relação da terra. Se se quer garantir qualquer tipo de conquista do povo camponês, é preciso dar-lhe o mínimo de possibilidade de vida. Por isso, realizamos no Brasil esse crime, esses trinta, quarenta anos de migrações no Brasil. Essa migração brutal. Há quarenta anos, tínhamos 20% da população nas cidades e 80% da população na área rural. Hoje temos 80% na cidade e 20% no campo. Nenhum país no mundo fez isso. E aí estão as favelas, o desemprego brutal e a insegurança terrível da sociedade urbana. Resultado da insensatez, da incapacidade das elites, que mantiveram essa estupidez"

 

Quarenta anos atrás (1)

Jornalista Carlos Chagas

BRASÍLIA - De vez em quando é bom mergulhar no passado, quando nada para não repetir erros, porque sempre nos dirá o que evitar. Há quarenta anos, vivia o Brasil uma situação de crise iminente. Depois da entusiástica reação nacional ao golpe, em 1961, liderada por Leonel Brizola, entramos em 1964 sob a égide da conflagração. O então presidente João Goulart tivera assegurada sua posse e governava, por força da resistência do cunhado, então governador do Rio Grande do Sul, e logo depois o deputado federal mais votado da história do País, eleito pela Guanabara.

 
Conspiradores e reformas derrubaram Jango

O problema estava na permanência ativa das forças que tentaram rasgar a Constituição e permaneciam no mesmo objetivo. Uns pela humilhação da derrota, outros por interesses, estes ingênuos, aqueles infensos a quaisquer reformas sociais - todos se fortaleciam sob a perigosa tolerância de Goulart. Conspirações germinavam sob a batuta do Ipes, singelo Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais, na verdade um milionário centro de desestabilização do governo trabalhista, erigido em cima de milhões de dólares.

Sua chefia era exercida pelo general Golbery do Couto e Silva, na reserva, arregimentando políticos, governadores, prefeitos, militares, fazendeiros, empresários aos montes, classe média e até operários e estudantes. O polvo tinha vários tentáculos, como o CCC (Comando de Caça aos Comunistas), MAC (Movimento Anticomunista), Camde (Campanha da Mulher pelas Democracia), Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e outros, bem subsidiados, que agiam nas ruas.

Claro que a maioria da imprensa dava ampla cobertura a essas atividades, sempre escondidas sob a fantasia da defesa da democracia "ameaçada pelas reformas de base pretendidas pelo governo comunista de João Goulart". Publicidade e dinheiro vivo não faltavam, além, é claro, das inclinações pessoais dos barões da mídia.

Do outro lado, organizavam-se as forças que imaginavam estar o Brasil marchando para o socialismo. O CGT (Comando Geral dos Trabalhadores), a Frente Nacionalista, o Grupo dos Onze, as Ligas Camponesas e outros.

Depois da ridícula experiência parlamentarista, o presidente retomara, através de um plebiscito, a plenitude de seus poderes. Diante da resistência do Congresso em votar as reformas, Jango decidiu promovê-las "na marra". Abria perigosamente o leque, em vez de realizá-las de per si, uma por uma.

Ao mesmo tempo, pregava a reforma agrária, pela desapropriação de terras por títulos da dívida pública; a reforma bancária, com a estatização do sistema financeiro; a reforma educacional, com o fim do ensino privado; a reforma urbana, através da proibição de os proprietários manterem casas e apartamentos fechados, sem alugar; a reforma na saúde, pela criação de um laboratório estatal capaz de produzir remédios a preços baratos; a reforma da remessa de lucros, limitando o fluxo de dólares que as multinacionais enviavam às suas matrizes; a reforma das empresas, impondo a participação dos empregados no lucro dos patrões e a co-gestão; a reforma eleitoral, concedendo o direito de voto aos analfabetos, aos soldados e cabos. Entre outras.

Entram em cena Gordon, Walters e cabo Anselmo

Contava-se, como piada, haver um túnel secreto ligando as instalações do Ipes à embaixada dos Estados Unidos, no Rio. Verdade ou mentira, os americanos estavam enfiados até o pescoço na conspiração, por meio do embaixador Lincoln Gordon e do adido militar, coronel Wernon Walters, antigo oficial de ligação do Exército americano com a Força Expedicionária Brasileira, na Itália. Lingüista exímio, sabendo falar até mesmo o português do Brasil e o de Portugal, tornara-se amigo dos majores e coronéis que lutaram na Itália, agora generais importantes. E em grande parte, conspiradores.

A estratégia inicial era impedir as reformas de base e deixar o governo Goulart exaurir-se, desmoralizado, até o final do mandato. Tudo mudou quando o presidente se deixou envolver por outra reforma, a militar. Partindo de um inexplicável artigo da Constituição que limitava a possibilidade de os sargentos se candidatarem a postos eletivos, bem como das dificuldades antepostas pela Marinha para a organização sindical dos subalternos, tudo transbordou.

Pregava-se a quebra da hierarquia entre os militares. Acusada de estar criando um soviete, a Associação dos Marinheiros e Fuzileiros rebelou-se, instalando-se na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro. Mais de mil marinheiros e fuzileiros recusaram-se a voltar aos seus navios e quartéis, tendo o governo preferido a conciliação em vez da punição. A ironia estava em que o chefe da revolta, o cabo Anselmo, o mais inflamado dos insurrectos, era um agente provocador a serviço do golpe. Quanto mais gasolina no fogo, melhor.

Juntava-se a isso a decisão de Goulart de realizar monumentais comícios populares, onde assinaria, por decreto, as reformas negadas pelos deputados e senadores. Só fez um, a 13 de março, sexta-feira, no Rio, quando desapropriou terras ao longo das rodovias e ferrovias federais, encampando também as refinarias particulares de petróleo.

Naquela noite, na Central do Brasil, e ironicamente diante do prédio do Ministério da Guerra, discursaram revolucionariamente os principais líderes de esquerda: José Serra, presidente da União Nacional dos Estudantes, Dante Pelacani, dirigente do CGT, Miguel Arraes, governador de Pernambuco, Leonel Brizola, deputado federal, e outros.

Cada orador sentia a necessidade de ir além do que pregara o antecessor. Quando chegou a vez do presidente Goulart, não lhe restou alternativa senão superar os companheiros. Fez um discurso que os historiadores precisam resgatar.

Uma espécie de grito de revolta diante das elites, a pregação da independência para os humildes e os explorados. O desfecho estava próximo, demonstrando que, do lado de cá do planeta, enquanto a esquerda faz barulho, a direita corrupta age.

 

Últimas

 

Jornalista Mauro Braga

Estes dias, todo mundo está escrevendo sobre a revolução de 64. O colunista lembra que, na madrugada do dia 31, subia a Rua das Laranjeiras com alguns amigos, depois de uma noitada de sinuca no Lamas, quando foram parados pela PM. Por ordem do governador Carlos Lacerda, caminhões da Comlurb estavam na contramão, atrapalhando o tráfego, como na música de Chico Buarque.

A movimentação era muita estranha, mas nenhum de nós maliciou nada, ninguém pressentiu o golpe. De manhã, o dia abriu como uma espécie de feriado. Os bares em Laranjeiras estavam em festa. Todo mundo de bermuda, tomando cerveja e esperando o avanço dos tanques do Exército sobre o Palácio Guanabara.

Assistíamos de camarote, nas janelas do apartamento do dr. Mário Navais Henriques, no Edifício Paulo Afonso, de onde podíamos avistar o Palácio Laranjeiras, moradia do presidente João Goulart, e o Palácio Guanabara, reduto do governador Carlos Lacerda.

Na rua, a grande maioria estava torcendo por Jango. Os adeptos da revolução eram uma minoria inexpressiva. Da turma das Laranjeiras, apenas Juca Cavour e Eduardo Valois aderiram às "tropas" de Lacerda. O resto ficou tomando cerveja, enquanto aguardávamos a reação do Exército. Quando os tanques enfim aderiram aos revolucionários, à tardinha, foi uma decepção. E os bares continuaram cheios.

 

Há quarenta anos (2)

BRASÍLIA - Hoje, dois terços da população falam por ouvir falar. Quando falam. Os que tinham idade suficiente para entender e até para viver aqueles idos de 1964 continuam divididos. Para uns, tratou-se de um golpe cruel vibrado nas instituições democráticas, ao qual seguiram-se 21 anos de ditadura, tortura, censura à imprensa, supressão dos direitos humanos e prevalência do poder econômico sobre os anseios das massas. Para outros, foi um basta à subversão e à corrupção, uma interrupção no processo de anarquia e de desagregação da sociedade ameaçada pelo perigo comunista expresso pelo próprio governo.

 

Contradiz-se também a farta literatura produzida de lá para cá a respeito do movimento dito militar. Tanto tempo depois, será preciso atentar para a importância de não dividir o Brasil de quarenta anos atrás entre mocinhos e bandidos, tanto faz a posição de onde se observam aqueles acontecimentos.

Governo caiu feito fruta madura

Nem as Forças Armadas foram as únicas responsáveis pela truculência verificada nas duas décadas seguintes, nem poderão apenas ser tidas como as mãos do gato, utilizadas pelas elites para retirar as castanhas do fogo. Tiveram sua responsabilidade explícita, exposta através dos governos de cinco generais-presidentes e de duas juntas militares, mas, no reverso da medalha, evitaram o quanto foi possível a transformação do Estado brasileiro em apêndice desimportante dos interesses políticos, econômico-financeiros e até culturais do conglomerado internacional que hoje nos domina e ao planeta também.

Indaga-se como foi possível cair feito fruta madura um governo democrático, forjado na luta e na resistência de três anos antes em favor do cumprimento da Constituição e da posse do vice-presidente, após o histriônico episódio da renúncia do presidente Jânio Quadros.

 

João Goulart terá sido derrubado mais pelas suas virtudes do que por seus defeitos, mas estes foram imensos. Ingenuidade, em primeiro lugar, se imaginou que reformas sociais profundas poderiam ser conquistadas no grito, de uma só vez, com as elites conformando-se em abrir mão de seus privilégios sem organizar-se nem resistir.

Depois, ilusão de que as massas dispunham-se a respaldá-lo acima e além dos comícios e da retórica fácil. Acrescente-se a frágil concepção de que, por estar exercendo legitimamente o poder, contaria com a anuência das estruturas que buscava modificar e reformar. A favor delas, deixando as coisas como estavam, obteria sucesso, o que seria uma incongruência para quem pretendia passar à História como um reformador igual ao seu mestre, Getúlio Vargas.      

 

Demonstrou-se, nos eventos de 31 de março e de 1º de abril, a precariedade do poder formal. O "esquema militar monolítico" que defenderia a legalidade só existia na cabeça dos áulicos palacianos. Quando precisou das Forças Armadas para garantir-lhe o direito de continuar governando, João Goulart percebeu havê-las perdido por inteiro.

 

Parte foi porque admitiu "reformá-las", prestigiando tentativas de quebra de hierarquia. Parte por conta da formidável movimentação das elites econômico-financeiras infensas a perder privilégios. Nesse aspecto, a mídia exerceu papel fundamental, inoculando na opinião civil e militar o germe da insegurança.

Golpistas estavam abarrotados de dólares

Organizada, com fartura de dólares e de pensadores, a direita dispunha de um objetivo claro: impedir quaisquer reformas capazes de arranhar-lhe os benefícios, mesmo que para isso se tornasse necessário desestabilizar, primeiro, e depor, em última instância, um governo constituído.

 

Já as esquerdas... As esquerdas dividiam-se entre a euforia inconseqüente da suposição de que já tinham conquistado o poder e alterado estruturas ainda imutáveis, de um lado, e, de outro, as eternas desavenças entre seus diversos grupos inconciliáveis.

 

No meio delas, mesmo percebendo que a reação se avolumava, achava-se um presidente cuja única saída acabou sendo a fuga para a frente. O diabo é que diante dele não se descortinava a avenida das reformas sociais, mas o precipício do retrocesso e do caos institucional. É claro que as teorias cedem sempre, quando surgem os fatos.

 

A dúvida dominava os dois lados. Os conspiradores ignoravam a facilidade com que o governo se dissolveria. Estavam preparados para a guerra civil, capaz de levar meses. Por isso, não se animavam ao primeiro gesto ostensivo. Precisou um general meio doido botar precipitadamente suas tropas na rua, em Juiz de Fora, mesmo sem saber se seria esmagado em poucas horas. Do Rio, os principais chefes da conspiração tentaram demovê-lo, exigindo que voltasse com os poucos tanques e canhões postos na estrada União e Indústria.

Mourão Filho reagiu, não faltando em sua negativa as quixotescas afirmações de que ali estava para "vencer ou morrer". Não morreu, senão anos depois, de doença e de desânimo, porque quem venceu foram os outros. Numa questão de horas, mudaram de lado as tropas ditas legalistas que subiram a Serra de Petrópolis para barrar a progressão dos revoltosos mineiros. Em São Paulo, no Nordeste, no resto do País, a mesma coisa.

 

João Goulart estava no Rio, negou-se a autorizar que uns poucos aviões da FAB ainda sob as ordens de seu ministro da Aeronáutica bombardeassem as tropas do general Mourão com napaln. "Vai matar muita gente, isso eu não permito!"
Para não ser preso, voou até Brasília, mas, na capital, sua segurança revelou-se ainda mais precária. Buscou resistir no Rio Grande do Sul, imaginando a repetição dos episódios de 1961. Esqueceu-se de que a História só se repete como farsa.

Lá, o governador não era mais Brizola, porém Ildo Meneghetti, golpista. O general que ainda lhe era fiel, Ladário Pereira Telles, garantiu-lhe apenas por uma hora condições para conduzi-lo ao aeroporto e tomar o rumo do Uruguai. Aceitou. Ladário indagou de Leonel Brizola, também presente, se viajaria junto. Resposta: "Eu não me chamo João Goulart! Vou resistir!"

 

Há quarenta anos (3)

BRASÍLIA - Quarenta anos depois, sobrou o que do movimento militar de 1964? Para começo de conversa, cobranças, mesmo com o tempo fazendo a poeira assentar. Cobranças de parte a parte. De um lado, existem os que continuam criticando, protestando e apresentando a conta. São os que, de uma forma ou de outra, viram-se atingidos pela truculência do regime.

 

Não apenas os torturados, exilados, censurados, demitidos. Ou seus familiares, se eles não estão mais entre nós.


Muitas instituições também têm o que cobrar. A imprensa, por exemplo, obrigada a omitir tudo o que prejudicava os donos do poder. Sem esquecer que a maior parte dos veículos de comunicação da época esmerava-se em divulgar aquilo que agradava os poderosos.

 

Temendo represálias ou programando benesses, acomodaram-se quase todos os barões da mídia e muitos de seus acólitos. Seria menos ridículo que, hoje, certos falsos heróis de uma resistência inexistente ficassem calados em vez de tentarem faturar aquilo que não praticaram.

Advogados foram massacrados

De um modo geral, porém, a imprensa sofreu e involuiu. Jamais as tiragens dos jornais ficaram tão reduzidas. "Comprar jornal para quê?" - insurgia-se o cidadão comum, se era para ler elogios ao falso milagre brasileiro ou, em contrapartida, versos de Camões ou receitas culinárias. Com a televisão e o rádio, perseguidos até no roteiro de suas novelas, pior ainda. Transmitiam a impressão de vivermos num outro mundo.

Massacrados da mesma forma foram os advogados. O regime confundia o sagrado dever de defender o semelhante com a integração obrigatória do defensor nas práticas do réu. Um monumento deveria ser erigido ao Advogado Desconhecido, mesmo a gente conhecendo o nome da maioria desses abnegados bacharéis que honraram a profissão. E sofreram por isso.

 

Sofreu o Judiciário, atingido em tradicionais predicamentos constitucionais de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos. Ministros dos tribunais superiores e simples juízes de primeira instância, intimidados, acomodados ou dispostos à resistência, viram desmanchar-se a estrutura fundamental da democracia, erodida por absurdos como o de que os atos revolucionários seriam insusceptíveis de apreciação judiciária.

 

É claro que também pontificaram os "jurilas" de todas as ditaduras, misto de juristas e de gorilas tão a gosto do regime. Reconheça-se o papel altivo do Superior Tribunal Militar, que, num sem-número de ocasiões, desfazia aquilo que nas instâncias inferiores a exceção buscava transformar em regra.

 

Os políticos, da mesma forma, perderam o que lhes restava de credibilidade junto à opinião pública. A sombra das cassações de mandatos políticos só não agredia tanto a prática parlamentar quanto os ucasses que transformaram o Congresso em apêndice desimportante do Executivo. Atos institucionais, atos complementares, decretos-lei, casuísmos, fechamentos e recessos parlamentares fizeram com que a atividade política e eleitoral se transformasse em chacota nacional.

 

Num determinado momento, para sepultar laivos de independência, os militares dissolveram os partidos, criando o bipartidarismo obrigatório. Para continuar na política seria pertencer ao partido do "sim", a Arena, ou ao partido do "sim senhor", o MDB, mais tarde inflado pela indignação, transformando-se num dos principais aríetes responsáveis pelo fim da ditadura. Para cada dr. Ulysses ou para cada "autêntico" que se insurgia, centenas de desfigurados marionetes candidatavam-se a ajoelhar no altar da exceção.

Aniquilaram movimentos sindical e estudantil

O movimento sindical implodiu nos primeiros dias do novo regime. Perseguidos como inimigos públicos, os líderes trabalhistas desapareceram nas masmorras, no exílio ou no esquecimento. Terá sido este um dos erros fundamentais da ditadura, porque, conforme a natureza das coisas, em política não existem espaços vazios. Foram-se os dirigentes em grande parte viciados pelo sabujismo ao Ministério do Trabalho, mas emergiram líderes operários autênticos. Vêm daí as origens de Lula.

 

O mesmo aconteceu no movimento estudantil. Perseguidos, eclipsaram-se os estudantes profissionais que dominavam as organizações de classe, boa parte atrelada ao Ministério da Educação. Ganharam o exílio aqueles que tentavam renovar as estruturas viciadas vindas do Estado Novo, como José Serra, o último presidente da União Nacional dos Estudantes, obrigado a refugiar-se no Chile. O fenômeno foi o mesmo dos sindicalistas: surgiram dirigentes de verdade, oriundos dos bancos escolares. José Dirceu, Wladimir Palmeira, Jean Marc, Alfredo Sirkis, Honestino Guimarães, Franklin Martins.

 

Identificados, após ações de toda espécie, até tresloucadas e radicais, acabaram detidos, alguns desaparecidos até hoje, mas plantaram a semente. Ainda agora o movimento estudantil pertence aos estudantes.

 

A cultura vergou mas não quebrou. Das músicas de protesto ao teatro de arena e de vanguarda, das entrelinhas do "Pasquim" à poesia de combate e ao cinema novo, os intelectuais resistiram. Tornaram-se figuras de expressão nas passeatas, nos manifestos e na arte de estrilar. Apanharam, foram presos e muitos se exilaram. Imagina-se o que teriam produzido em regime de liberdade plena. Talvez bem menos do que produziram sob pressão.

 

Esse tipo de cobrança estende-se até nossos dias, ainda que cada vez mais esmaecido pelo tempo, com as exceções de sempre. Intelectuais, estudantes, operários, políticos, magistrados, advogados e jornalistas, em maioria, não esqueceram. Talvez nem tenham perdoado, ainda que lentamente varridos pelos ventos da renovação.

 

Jango "reabilita" Kruel

Hélio Fernandes

O embaixador Gordon e o jornalista Roberto Marinho vetam Brizola-ministro

Nada pessoal, apenas fatos, já agora históricos. João Goulart foi imprudente, displicente, até mesmo insensato. Seu comportamento decididamente pelo continuísmo no Poder jogou todos contra ele, até amigos e correligionários, como o já ex-governador (em 1963) Leonel Brizola e o governador (a partir de 1963) Miguel Arraes.

Os dois eram candidatos, politicamente deveriam ser fortes, pois pertenciam ao esquema que estava no governo. Mas eram prejudicados pelo próprio João Goulart, sempre e cada vez mais candidato ou candidatíssimo, embora sabendo que era inconstitucional.

Eleitoralmente, Brizola e Arraes eram superados por Ademar, Magalhães e Lacerda, geograficamente mais importantes. Em toda a nossa história o fator geográfico foi quase insuperável, até mesmo identificado como "café com leite". O que nem era verdadeiro, pois os 3 primeiros presidentes foram de São Paulo, Prudente, Campos Salles, Rodrigues Alves.

A insensatez de João Goulart tem muitas identificações, mas a mais importante, mais elucidativa e até incompreensível foi a "reabilitação" do general Kruel. Este, no final de 1953, assinou um manifesto de 69 coronéis, exigindo de Vargas que demitisse o ministro do Trabalho. A primeira assinatura desse manifesto era do coronel Kruel, e o ministro do Trabalho era precisamente João Goulart.

Nem quero esgotar esse episódio, fica para o livro, foi mais um golpe militar. Vargas começou a cair ali e não em 1954. Nenhum presidente, seja quem for, pode aceitar exigência, demitir um ministro por causa de 69 coronéis. Devia ter mandado prender todos eles e mantido o ministro, mesmo que fosse derrubado na hora. (Fato que o presidente Lula pode estudar).

Pois João Goulart foi mais subserviente, vá lá, maquiavélico, como chamam os que não leram Maquiavel, e nomeou o próprio Kruel chefe da Casa Militar. É demais. Ninguém politicamente pode ser "generoso" a esse ponto. Depois nomeou Kruel ministro da Guerra, e finalmente comandante do II Exército, onde teve participação importante na derrubada de Jango. Em pouco mais de 10 anos, Kruel foi importantíssimo na vida de Jango.

A atividade golpista (e insensata) de João Goulart era tão grande que seus mais íntimos amigos e confidentes eram Roberto Marinho e o embaixador Lincoln Gordon. E o cidadão que escrevia os editoriais de Roberto Marinho escrevia discursos para João Goulart. (Nem quero falar no general Walters, golpista sempre, recebido naturalmente por Jango).

A situação se deteriorava de tal maneira, que um dia, na televisão, Leonel Brizola disse textualmente, com aquela sua oratória indiscutível: "Não vou mais ao Laranjeiras, não é verdade. Toda vez que vou lá encontro com esse senhor Roberto Marinho, até sentado na cama do presidente, não é verdade". O presidente da República ficava no Laranjeiras, quase não ia a Brasília.

Quando Brizola, c-a-n-d-i-d-a-t-í-s-s-i-m-o a presidente, insistiu em ser ministro da Fazenda (com Lott ministro da Guerra para "controlá-lo", sugestão mesmo do ex-governador), Jango consultou Roberto Marinho e Lincoln Gordon, os dois disseram: "Se você (chamavam o presidente de você, tal a intimidade) fizer isso, será derrubado". João Goulart tinha que expulsar os dois na hora, ainda nem existia a TV Globo.

João Goulart não nomeou Brizola ou Lott e foi derrubado. Se tivesse nomeado os dois (um como suporte e garantia do outro), teria sido derrubado? Aí não passa de hipótese, mas o presidente da República não podia aceitar afirmação como essa, vinda de um embaixador dos EUA.

O veto de Roberto Marinho até podia ser entendido. Jornalista de prestígio, não entrava no Laranjeiras por acaso, era chamado pelo presidente. Mas não nomear um ministro por causa da REJEIÇÃO do embaixador dos EUA?

31 de março ou 1º de abril são apenas datas. Na verdade, João Goulart estava "derrubado" desde que ganhou a presidência. Mas a ditadura não começava ali. Naquele momento o próprio Castelo Branco conversava com JK, e lhe dizia: "Meu único objetivo é garantir a eleição de 1965". Golbery, que era tenente-coronel da reserva, e os generais não deixariam. O golpe para valer começaria com a prorrogação do mandato de Castelo. Poucos perceberam.

Doeu para valer. O tempo de duração do golpe não deve ser contado a partir de 31 de março, e sim com a articulação e a conquista da prorrogação do mandato de Castelo.

PS - Impressionante. Jornais, rádios, revistas, televisões (até TV Senado e TV Câmara) recordam 1964. Mas contam o que todos já contaram. Eu mostro bastidores, cito pessoas quase escondidas, como o bilionário incorporador Santos Vhalis.

PS 2 - E o Frei Beto apresenta a Igreja Católica como a grande resistência à ditadura. Se não fosse a Igreja, multidões não teriam ido às ruas. O Poder congestionou a memória de Frei Beto.


 

Humberto Manes

Ainda tem muito prestígio no Tribunal de Justiça, condenou severamente a Globo. Aplaudido.

O Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio teve sessão animadíssima anteontem. Tudo por causa da Organização Globo. Severas críticas foram feitas à Organização, principalmente à televisão Globo. Quem levantou o assunto foi o desembargador Humberto Manes, que já presidiu o Tribunal.

Mas num episódio raríssimo, os desembargadores, na totalidade, apoiaram e aplaudiram Humberto Manes. Até mesmo o desembargador Miguel Pachá, presidente do Tribunal e do Órgão.

A TV Globo nunca foi tão hostilizada. O mínimo que se dizia: "Falida, e à beira de desaparecer ou ser encampada por grupos multinacionais, a Globo tenta se salvar, mistificando a opinião pública".

As denúncias desta Tribuna da Imprensa sobre a Globo (sobre e não contra) levam o Tribunal de Justiça a não deixar que a condenação da Organização não demore mais. É uma questão de JUSTIÇA.

 

Há quarenta anos (final)

Carlos Chagas

BRASÍLIA - Quarenta anos nos separam de 1964, não propriamente o ano em que o Brasil se dividiu, porque dividido já estava, mas o ano da ruptura explícita do País em duas metades. O diabo é que duas metades artificiais, falsas, levadas ao confronto desnecessário por força das circunstâncias e, mais do que delas, por maliciosa manobra das elites econômico-financeiras nacionais e internacionais.

 

Porque até hoje vende-se a impressão de que a partir de 1964 o Brasil rachou entre civis e militares, estes usurpando o poder e impondo a ditadura, aqueles vilipendiados, afastados de cena e condenados, primeiro, ao marasmo, depois à discordância, e, desta à resistência e à vitória, 21 anos depois, com o afastamento das Forças Armadas da cena política. Na verdade, não foi nada disso, ou isso expressou apenas a casca enganadora de um conteúdo muito diferente. Porque tanto a sociedade civil quanto a militar tinham e têm a mesma origem e o mesmo destino. Formam uma só unidade.

Elites ocultam a divisão que buscaram

Pensam igual e possuem objetivos idênticos. No caso, a preservação da nação, de nossa soberania e de nosso território. A presença do Estado como agente regulador das relações econômicas e sociais, fator maior da distribuição da igualdade entre a população. Mais ainda, a construção de uma realidade mais equânime e projetada para o futuro.

 

Era isso o que pretendiam os civis depostos pelos militares, como foi isso o que perseguiram os militares que depuseram os civis.

 

Fala-se do povo. Porque foram as elites as responsáveis pela ilusória e trágica divisão cultivada até hoje, inflada pela truculência com que os militares se comportaram, tanto quanto pela irresponsabilidade anterior ou a reação posterior, muitas vezes desmedida, com que certas parcelas do poder civil reagiram. O que menos importa, hoje, é saber quem nasceu primeiro, se o ovo ou a galinha.

Na verdade, era e é outra a verdadeira divisão que as referidas elites buscaram e buscam ocultar. Utilizaram os militares, quarenta anos atrás, como as mãos do gato, para tirar as castanhas do fogo.

 

Hoje, utilizam a sociedade civil, que rotulam de libertária, para obter os mesmos fins. Quais? A satisfação de seus interesses, a preservação de seus privilégios e a concentração de renda cada vez maior em suas mãos. A prevalência de uma casta de ricos cada vez mais ricos e de uma massa sempre maior de descartáveis premidos pela indigência. Civis e militares.

 

Por ironia, foram os militares que, no poder, ainda conseguiram preservar as linhas mestras de nossa existência como nação. Como foram os civis que, ultrapassando a ditadura, viram-se enganados e ludibriados, obrigados a aceitar o modelo cruel responsável pela nossa débacle como sociedade independente.

Modelo econômico leva País à desagregação

Tremerão as elites no dia em que o Brasil conseguir quebrar a casca desse confronto anterior, real e justificável pela argumentação dos dois lados. Estará desfeito o muro que nos separa, artificialmente mantido como forma de alimentar a ambição e os privilégios das minorias responsáveis pelo aumento da fome e da miséria.

 

Eleito pela indignação diante de tamanha farsa, o governo Lula encontra-se iludido por essas mesmas elites, responsáveis pela preservação do modelo que há anos nos assola, feito de falsas verdades absolutas como a de que não poderia ser diferente, já que a inflação alcançaria patamares insustentáveis, o dólar chegaria à estratosfera, o risco-Brasil nos sufocaria e os investimentos externos desapareceriam - levando-nos à desagregação.

 

É mentira. A desagregação está aí mesmo, expressa no objetivo oculto que nos vem sendo imposto. A quebra da soberania, a transformação do trabalhador em apêndice do processo econômico, a perda do poder aquisitivo dos salários, a supressão de direitos sociais, a prevalência do setor especulativo sobre o produtivo - tudo isso continua alimentado pelos esqueletos do passado.

 

Mudará tudo no dia em que civis e militares se conscientizarem de estar sendo enganados pela quadrilha neoliberal, ao preço da cicatrização de feridas anteriores. Haverá que encerrar estas desimportantes considerações sobre os quarenta anos do movimento militar. Provavelmente surgirão condenações dos dois lados.

 

Dos militares, julgando-se ofendidos pelo reconhecimento dos excessos que seus antecessores praticaram. Dos civis, que sofreram e sentem-se no direito de cobrar reparações até o fim dos tempos. Paciência, o passado não se deu ao trabalho de passar para ser esquecido. Não nos dirá o que fazer, mas mostra o que devemos evitar. Coisa que até agora não conseguimos, por força de quantos pretendem impedir o futuro.

 

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