O golpe de 1964 ficou dependendo,
na última hora, da adesão do general Amaury Kruel, comandante do 2º Exército,
baseado em São Paulo, e amigo pessoal de João Goulart. No dia 31 de março,
pressionado pelos outros golpistas, Kruel ligou para Goulart e lhe pediu que
recuasse, decretando o fechamento do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT).
Goulart disse não e Kruel escolheu um lado.
A intervenção armada era amparada
por fundamentos que pareciam justos à maioria da tropa e lhe davam legitimidade
- o restabelecimento da democracia e a lutta contra o comunismo. Os altos
oficiais acreditavam que, no correr da história, o País ser-lhes-ia imensamente
grato por terem quebrado a legalidade para salvar a democracia.
Conceber a legitimação era
simples, explica o professor Leôncio Martins Rodrigues: "Como os dois
lados tencionavam suprimir as liberdades democráticas, a direita, ao vencer,
não carregava nenhuma culpa. Nascia um regime híbrido, diferente das outras
ditaduras militares sul-americanas. Aqui, não ocorria um golpe clássico, em que
militares enxotam os políticos dos palácios e fecham os parlamentos. Aqui os
militares chegaram ao palácio levados pelos políticos e, ao
assumir o governo, teriam a unção legitimadora do parlamento." Mas não de parte signficativa do povo...
O médico Wilson Fadul, ministro da
Saúde do governo Goulart, conta que, por sua interferência decisiva, Kruel era
o favorito para a Presidência Provisória. Mas o general Humberto Castello
Branco, chefe do Estado-Maior do Exército, que assinara nota aos subordinados
no dia 20 de março, disputava a indicação. A idéia da legitimidade recomendava
que o presidente provisório fosse eleito indiretamente pelo Congresso
remanescente do golpe.
Segundo Fadul, Castello pediu ao
embaixador Negrão de Lima, seu contraparente, para fazer uma reunião com JK,
líder máximo do PSD. Um Castello efusivo recebeu JK de braços abertos:
"Meu presidente, eu lhe devo a promoção para general de divisão!"
Fizeram um pacto: JK lhe dava os
votos do PSD e Castello garantia o calendário eleitoral e as eleições
presidenciais de 1965, à qual JK era candidato declarado. Três meses depois, em
8 de junho, Castello cassava JK.
No dia 9 de abril de 1964, o
Comando Supremo da “Revolução” emitiu o Ato Institucional - que era para ser
único e acabou sendo o primeiro de 17 atos de exceção - , que pretendia
legitimar o movimento. O AI fixou para dois dias depois a eleição indireta que
definiu Castello Branco como presidente provisório, com mandato até 31 de
janeiro de 1966, e confirmou eleições presidenciais para outubro de 1965. O
comando reservava-se o direito de cassar mandatos e suspender direitos
políticos pelo prazo de 10 anos.
A primeira lista de punições,
divulgada no mesmo dia, suspendia os direitos políticos de 100 pessoas,
começando por um comunista, Luiz Carlos Prestes, um trabalhista, João Goulart,
e um udenista, Jânio Quadros.
As cassações de mandatos atingiam
40 deputados, a maioria do PTB. Mas, quando veio a cassação de JK, ficou claro
que os militares já não distinguiam esquerda e direita: queriam mesmo era
governar sozinhos, descartando os políticos.
Os militares deram o primeiro
sinal de que não cogitavam abandonar o poder tão cedo quando embaralharam o
calendário eleitoral, em julho de 1965. O código eleitoral divulgado proibia
que os governadores concorressem às eleições presidenciais marcadas para 3 de
outubro - a medida eliminava Lacerda da sucessão. Pouco depois Castello enviou
ao Congresso um projeto que estabelecia a eleição indireta para presidente e
Lacerda rompeu com o regime.
Os militares responderam com o
AI-2, que extinguiu os partidos políticos. Foram autorizados apenas dois
partidos - Arena e MDB. Ainda apegado à necessidade de legitimação, o governo
militar perdeu os freios e começou a editar mais medidas que ampliavam o regime
de exceção. Alguns meses depois a eleição indireta foi imposta também para os
governos estaduais. O general Arthur da Costa e Silva foi eleito por via
indireta em 3 de outubro de 1967.
Lacerda rompeu com o regime e, em
setembro de 1966, em entrevista, defendeu a criação de uma Frente Ampla com JK
e Goulart. Em novembro encontrou-se com JK em Lisboa; o encontro com Goulart,
em Montevidéu, se daria em setembro de 1967.
Mas em abril de 1968 o governo
proibiu a Frente Ampla; com a edição do AI-5, Lacerda foi preso e teve os
direitos políticos suspensos por dez anos, viajando para o exterior como
correspondente de "O Estado de S. Paulo" e do "Jornal da Tarde".
Até o seu final o regime militar
seria marcado por sucessões presidenciais periódicas, pretextando manter,
dentro da exceção, um regime com aparência "constitucional". O
professor Leôncio Martins Rodrigues ironiza: "Aqui, ao contrário de outras
ditaduras latino-americanas, os ditadores tinham prazo de validade." Por
quê? Leôncio entende que em 1964 o poder não foi tomado por um general ou um
grupo militar, mas pela instituição Forças Armadas, em nome da defesa da
democracia.
Para continuar legitimando o exercício
do poder por generais escolhidos pelos generais, o regime precisava ser ungido
num simulacro legalista por um Congresso aferroado. O cacoete pseudo-legalista
foi esquecido em 1968, quando os protestos de rua emparedaram o governo, que
acabou dominado pela linha dura. Veio o AI-5, o momento mais sombrio do regime
militar. Os anos seguintes foram de morna rearticulação das formas de oposição.
A partir de 1968, a cada avanço
das oposições, o governo militar endurecia mais. Os estudantes foram para as ruas
e as bem-sucedidas passeatas enfureciam o regime, que aumentava a repressão. Em
28 de março de 1968, na ocupação do restaurante do Calabouço, no Centro do Rio
de Janeiro, um tiro dado por um capitão da PM matou o estudante Edson Luiz de
Lima Souto.
A morte do estudante Edson Luiz
tornou-se um símbolo do protesto da esquerda e motivou uma seqüência de
passeatas. A principal delas, a Passeata dos Cem Mil, configurou o maior
desafio até então lançado ao regime. Em agosto, a Universidade de Brasília foi ocupada.
No começo de setembro, o deputado Márcio Moreira Alves, num discurso ingênuo,
propôs que o povo não prestigiasse o desfile militar e que as moças não mais
namorassem militares.
O governo buscava um motivo para
endurecer e aproveitou para processar o deputado. No dia 13 de dezembro, uma
sexta-feira, a Câmara negou licença para o processo e a fúria militar fez
desabar sobre o parlamento e o País uma chuva de chumbo que atendia pelo nome
de AI-5, suspendendo garantias individuais, cassando mandatos e suspendendo
direitos políticos e propiciando a mais brutal censura da História do Brasil.
A eliminação dos canais pacíficos
de manifestação empurrou os jovens idealistas para a luta armada. As
organizações de luta armada começaram a pulular nas grandes cidades: eram
organizações de siglas curiosas - Movimento de Libertação Popular (Molipo),
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Vanguarda Armada Revolucionária
(Var-Palmares), Comando de Libertação Nacional (Colina), Partido Comunista
Brasileiro Revolucionário (PCBR), entre outros. Em resposta, o governo militar
fortaleceu o aparelho repressor.
Em 1969, a pretexto de combater a
"guerra revolucionária", o 2º Exército criou a Operação Bandeirantes
(Oban). Nela, o Centro de Operações de Defesa Interna (Codi) era o setor de
Inteligência e coordenava o Destacamento de Operações Internas (DOI), seu braço
executivo. O conjunto ficou tristemente conhecido pela tenebrosa sigla
DOI-Codi, um centro organizado de torturas oficial. O aparelho de repressão era
um Estado dentro do Estado e fazia a sua própria lei.
Em novembro de 1969, Carlos
Marighella, ícone da luta armada e líder da Ação Libertadora Nacional (ALN),
foi morto em São Paulo, num presságio do progressivo desmonte da guerrilha urbana.
Em 1972, o PC do B montou, no Sul do Pará, um foco de guerrilha rural que logo
foi dizimado, causando a morte de 58 militantes.
A luta armada perdeu seu ímpeto,
mas a repressão continuou ampliando sua ação sem qualquer controle. As
denúncias de excessos tinham limitações enormes, com a oposição pressionada, a
imprensa e as artes censuradas e os bispos perseguidos. Destacou-se o arcebispo
Hélder Câmara, de Olinda e Recife, intensamente perseguido por denunciar a
violência do regime mundo afora.
O Brasil atravessaria em trevas o
ano de 1969. O presidente-general Costa e Silva sofreu, em agosto, um derrame
que seria fatal e foi sucedido por uma Junta Militar composta pelos três
ministros militares, um trio que a voz surda das ruas apelidou de "os três
patetas". Ainda assim o regime sentiu necessidade de buscar fórmulas que
dessem um verniz de legitimidade.
O Alto Comando do Exército indicou
um novo general, Emílio Garrastazu Médici, e o Congresso foi instado a
elegê-lo. Em 1970, em meio à euforia da conquista do tricampeonato mundial de
futebol e uma brutal censura à imprensa, houve eleições para o parlamento, onde
o MDB, a única via de oposição ao governo militar, colheu um resultado
desalentador - elegeu 2 senadores e 87 deputados (28% da Câmara).
Em 1974, a primeira sucessão
aprazada de generais - Ernesto Geisel sucedeu Médici, mas a oposição resolveu
contaminar o processo, lançando seu principal líder, Ulysses Guimarães, como
anticandidato. Ulysses percorreu o Brasil pregando pela democracia e o
resultado veio nas eleições parlamentares - o MDB ganhou 16 das 21 cadeiras que
disputou para o Senado e alcançou 45% da Câmara.
O regime tomou outro susto e, como
fazia sempre que se assustava, sacou, em abril de 1977, mais um de seus
casuísmos de algibeira, o "pacote de abril", que criou os senadores
biônicos para garantir a sucessão de Geisel por mais um general. Geisel depois
diria que seu governo preparou a abertura e o afastamento dos militares. Na
época, a linha dura pensava na eternização dos militares.
O primeiro baque veio em outubro
de 1975: o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado nos porões do DOI-Codi
paulista. Houve grande mobilização popular, na qual se destacou o cardeal Paulo
Evaristo Arns. Geisel, que tempos depois justificaria a tortura, advertiu os
generais linha-dura que não permitiria a repetição de uma morte nos porões.
Três meses depois o aparelho
repressor matou o operário Manoel Fiel Filho. Geisel demitiu o comandante do 2º
Exército e passou o resto de seu mandato enfrentando tentativas tópicas de
desobediência.
Entre 1964 e 1985, quando o Brasil
voltou a ter um governo civil democrático, muitos foram cassados - estima-se
que em torno de 3.500 pessoas - exilados, presos, torturados e mortos. Três
dessas mortes foram simbólicas: uma - a do estudante Edson Luís, em 1967 -
levou o regime ao auge do endurecimento; e duas - as do jornalista Vladimir
Herzog, em 1975, e do operário Manoel Fiel Filho, em 1976 - delinearam o início
do seu desmantelamento final.
A ONG Tortura Nunca Mais lista 154
mortes (17 mulheres) provocadas pela ditadura, a maior parte nos anos da luta
armada. Os maiores números aconteceram em 1972, quando morreram 38 (cinco
mulheres), e em 1973, quando morreram 28 (cinco mulheres).
A partir de 1974, quando a luta
armada foi gradualmente substituída pela mobilização pacífica, as mortes se
reduziram. A partir daí, a maioria dos casos aconteceu em sessões de torturas
nos porões de um regime cada vez mais agonizante.
O último general, João Figueiredo,
foi escalado para consolidar o ritual de volta à democracia. Começou sob o
alentado signo da anistia e da criação de novos partidos, que os ideólogos do
governo maquinavam como uma forma de pulverizar os esforços da oposição.
Aconteceu ao revés: as múltiplas agremiações enraizaram a mobilização popular,
fortalecida pelas seguidas e históricas greves do ABC paulista, de onde
brotariam Luiz Inácio Lula da Silva e o PT.
Em 1981 um sargento e um capitão
do Exército preparavam um atentado contra milhares de jovens que viam um show
no Riocentro. A bomba explodiu antes da hora, matou o sargento e feriu de morte
o regime militar. Acabava ali o ciclo militar, que apresentou êxitos
ponderáveis no campo econômico - um crescimento de dois dígitos nos PIBs dos
anos mais duros, uma inegável modernização do parque industrial, avanços nas
telecomunicações, mecanismos eficazes de substituição de importações e outros
pontos - mas já havia perdido a guerra ideológica.
Sem motivação e sem força
política, Figueiredo exerceu um poder opaco por mais três anos. De seu
gabinete, impotente, assistiu às sucessivas campanhas que a oposição - agora
fortalecida em vários partidos - promovia, com crescente adesão popular. (C.M.)
Às 21h, saí do Hotel Serrador, na Cinelândia, e fui para o
Automóvel Clube do Rio, ali ao lado da Mesbla, na Rua do Passeio, na noite de
30 de março de 64. Havia mais farda do que roupa. Quase impossível entrar. Mais
de mil pessoas, ansiosas, agitadas, aos gritos, em um auditório pequeno.
Todo mundo esperando o presidente João Goulart, que já
havia saído do Palácio Laranjeiras. Daí a pouco, ele chegou, com vários
ministros, freneticamente saudado. Pálido, perplexos olhos de espanto, cercado
pela segurança, avançou entre a multidão. Tive a exata impressão de que ele
estava sendo empurrado para o matadouro.
Lá de cima, olhou aquele mundo de fardas e deu seu raro
sorriso tímido, mas largo, quase vitorioso. E se reanimou. Na mesa, com ele, o
ministro da Justiça, Abelardo Jurema, o sargento-deputado Garcia, o sargento
Antonio Prestes, o cabo Anselmo dos Santos. Era um ato flagrantemente militar.
Cada discurso mais inflamado. Ele os ouvia impávido. Mas
ninguém falou em golpe, em rasgar a Constituição. A palavra de ordem era forçar
o Congresso a aprovar as reformas de base. Jurema, com seu poderoso vozeirão,
insistiu em que a história sempre foi o povo conseguindo a esperança virar lei.
Quando Jango se levantou, a meu lado, espremido como eu
contra a parede, o sereno mineiro Roberto Gusmão, assessor do chefe da Casa
Civil, Darcy Ribeiro, que escrevia os discursos e mensagens do presidente,
suava de ansiedade. Tinha feito também aquele discurso que Jango tirava do
bolso.
Começou a ler paudamente. Daí a pouco, à medida que o
salão sacudia de aplausos, Jango ia levantando a voz e a alma, falando cada vez
com mais vigor, mais convicção, garantindo à Nação que as reformas seriam
feitas. Já não era o mesmo homem inseguro que eu vira entrar.
De repente, num gesto brusco, Jango jogou sobre a mesa as
laudas que faltava ler e começou a falar de improviso, cada vez mais forte,
jurando, emocionado, que a política de conciliação chegara ao fim e que as reformas
iriam ser conquistadas nas ruas. Gusmão gemeu, tenso:
- Ai, meus Deus! Puta que o pariu!
- Por que, Gusmão?
- Ele não pode fazer isso. Não pode errar. Os golpistas
estão esperando um pretexto, uma palavra em falso e tudo estará perdido.
Àquela hora, já madrugada de 31 de março, tudo já estava
perdido. O golpe vinha de Minas. Gusmão contou que, antes de Jango sair do
Laranjeiras, Tancredo pediu:
- Presidente, não vá. Se o senhor for, o senhor cai.
Jango foi embora, a Cinelândia continuou incendiada. O
Clube Militar, na praça reunido, as luzes acesas, oficiais entrando e saindo.
No Clube Naval, esquina de Almirante Barroso com Rio Branco, os discursos
gritavam pelas janelas.
O dia amanhecendo, entro no Hotel Serrador, carregado de
jornais ainda quentes. A conspiração virava golpe em todas as manchetes, com a
exceção única da "Ultima Hora". O "Correio da Manhã"
urrava: "Fora"!
Acordei meio-dia com um telefonema de Minas. Apoiado pelo
governador Magalhães Pinto, o general Mourão Filho, que a UDN achava um
paspalhão, marchava de Juiz de Fora para o Rio à frente de suas tropas.
Corri para a casa de Max da Costa Santos, baiano, deputado
do PSB da Guanabara, no Flamengo. Ligamos para Brizola em Porto Alegre, que
reagia:
- Vamos resistir! Como em 61, vamos resistir de qualquer
maneira! Isso é um golpe dos interesses norte-americanos com tropas
brasileiras. O Jango está hesitando, mas a UDN vai querer fazer agora o que
Vargas impediu em 54 com o suicídio. Temos que jogar tudo. Aqui no Rio Grande,
vou marchar com o povo e ocupar o governo. É preciso segurar o Lacerda aí. Vão
para a Rádio Mayrink Veiga. O Miguel Leuzi está sem querer fazer de novo a
Cadeia da Legalidade, mas temos que pôr no ar, imediatamente, pela nossa
Mayrink.
Fomos. Max assumiu a rádio e os oradores desfilavam no
microfone. Denunciei o caráter norte-americano do golpe (como ficou comprovado
em 77, nos documentos secretos dos Estados Unidos revelados por Marcos Sá
Correia).
Anoiteceu e de repente o corre-corre. Caminhões da Polícia
Militar do governador Lacerda cercavam a rádio. Telefonamos desesperados para
os Fuzileiros Navais do almirante Aragão, que prometeram ir e não chegavam.
Enfiamos os bicos de meia dúzia de enferrujados fuzis e
metralhadoras nas janelas do segundo e do terceiro andares, para dar a
impressão de que estávamos fortemente armados. A PM não entrou, não subiu, e
lembro bem o ridículo de me ver atrás de um cabo de metralhadora que mal sabia
manejar, apontada para o botequim bem em frente, na ruazinha apertada, e o
velho português, da porta, gritando apavorado, com os braços abertos:
- Aponta para lá, "doutoire"! Aponta pro outro
lado, por "favoire"!
Os fuzileiros chegaram, a PM saiu, fomos para a Rádio
Nacional.
"Há um grande instante na história deste País, que sinalizou a absoluta interrupção do projeto anterior e que foi marcado pelo suicídio do presidente Getúlio Vargas. Quando ele faz a denúncia do problema da terra e quando ele faz a denúncia do problema da não industrialização brasileira e do controle externo sobre o Brasil e dá um tiro no peito. Naquele momento, é um dado histórico importantíssimo, uma fase do processo brasileiro, nós não poderíamos continuar mais. E o Brasil estava buscando uma solução, que era o desenvolvimento econômico, com liberdades do povo, com a democracia.
Naquele tempo e naquele momento, quando alguém cogitava disso, era tachado de comunista. Eu, por exemplo, nunca fui comunista, nunca me filiei ao Partido Comunista. Fiz minha vida inteira em aliança com os comunistas. Sempre. Mas nunca admiti ser comunista porque, para mim, nunca se chegaria a um regime, digamos assim, de igualdades sociais por via da interrupção das liberdades".
"Jango nunca foi comunista. Ele era um grande proprietário e gostava disso. Lá no exílio - nós só nos tornamos amigos no exílio - ele me dizia naquelas noites infindáveis em que tínhamos muito tempo para conversar: `Eu sei fazer duas coisas Waldir. Eu sei fazer política e sei criar boi, cuidar da terra'. Era disso que ele gostava e sabia. E fazia bem. Quando ele chegou à capital da República, como ministro do Trabalho do governo de Getúlio Vargas, ele já era um homem muito rico, provavelmente o maior invernista de terras do Rio Grande do Sul. Era, provavelmente, o principal fornecedor de carne para os frigoríficos e por isso era poderoso".
"Para mim, a contribuição dos Estados Unidos para o golpe foi importante. Hoje isso é uma coisa muito conhecida. Hoje se sabe, existem estudos sobre isso. Os Estados Unidos têm uma coisa muito boa: praticamente todos os documentos se tornaram públicos, estão nas universidades, nas bibliotecas. Desde 1980 os estudiosos de ciências sociais, de ciências políticas, têm acesso a todos os documentos.
Hoje se sabe, quanto se conspirou nos Estados Unidos para o golpe de Estado no Brasil. Passo a passo. Para o golpe de Estado no Brasil e para os golpes na América Latina toda. Essa foi uma fase da intolerância nos Estados Unidos. Eles pretendiam assegurar a democracia, matando a democracia, como se deu no Brasil, como se deu no Uruguai, como se deu no Chile, como se deu na Venezuela, como se deu no Peru, na América Latina inteira. Foram caindo todos os regimes democráticos e eles instalando ditaduras em nome da democracia".
"O grande desafio ainda hoje é responder à pergunta: `Como é que nós organizamos democraticamente um regime que abranja todo o povo, que proteja a população, que proteja o trabalho, que proteja o emprego, que proteja o bem-estar, que assegure aos jovens e às famílias a oportunidade de viver em paz?'. Esse é o grande desafio que está posto no mundo de hoje. Ainda estamos por estabelecer este caminho".
"Nada é mais terrível para o Brasil do que a interrupção em 1964 do desenvolvimento político do País, da incorporação gradual do seu povo na cultura global do Brasil, na capacidade de cada um ir se tornando gradativamente cidadão e cidadã. Aquilo tudo foi interrompido por uma visão canhestra, uma visão pequena, obtusa, que exclui o povo do processo civilizatório. Hoje, o Brasil é um dos países campeões da criminalidade no mundo. Por quê? Por que essa exclusão? Foi o povo brasileiro que mudou? A natureza do nosso povo mudou? A índole do nosso povo mudou? Ou não mudaram as estruturas sociais, as quais eram terrivelmente arcaicas e continuaram arcaicas?"
"Eu, por exemplo, digo muito claramente: o governo do presidente Lula representa, para mim, para a minha geração, a retomada daqueles sonhos de 40 anos atrás, que foram interrompidos. A mudança que se pretende hoje, para garantir que a população toda viva com um mínimo de condições, tenha uma existência decente, era o que se chamava, há 40 anos, Reformas de Base. E ainda hoje há muitas dificuldades. Uma concepção de política que não utiliza os fatores decisivos da inteligência humana. Hoje temos, muito mais do que quarenta anos atrás, uma capacidade gigantesca de produzir alimentos, de produzir bens. No entanto, estamos aí com uma sociedade de escassez absoluta, escassez de tal natureza que nós temos 50 milhões de brasileiros que passam fome, que suportam condições abaixo do nível da existência humana".
"Na madrugada do dia 1ª de abril para o dia 2, até o dia 9, num governo que não tinha nenhuma qualificação, os chamados `comandos revolucionários' baixaram um ato institucional que não tinha número, porque eles esperavam que fosse o único. Não foi o único, depois vieram o dois, o três, o quatro, o cinco. Este foi o mais cruel de todos, o mais perverso, mas ele só chegou em 13 de dezembro de 1968. Eu não estava no Brasil havia muito tempo. Eu caí no AI-1, que cassou os direitos políticos de 100 pessoas no Brasil. Eu estou no sétimo lugar. Na primeira posição estava o João Goulart. O Darcy Ribeiro era o quarto".
"Uma das coisas que muito nos marcou, quando chegamos a Montevidéu, eu e Darcy - nós ficamos no mesmo quarto de uma pensão - foi ver a quantidade de gente exilada. Os espanhóis exilados desde os anos 30, dos tempos da Guerra Civil e da vitória do General Franco. E eu via as famílias, o quadro de amargura, de tristeza, de senhoras e senhores e de jovens excluídos. Gente que tinha ido como exilado, que não tinha ido como emigrante. O emigrante é uma pessoa que vai disposta a conquistar o seu tempo e a sua vida na terra dos outros. O exilado não. O exilado é uma pessoa que vai e pensa o tempo inteiro em voltar, o tempo inteiro em seu país, vai contrariado, vai impelido pela ditadura, pela brutalidade".
"O AI-5 (Ato Institucional nº 5, editado em 13 de dezembro de 1968) foi a marca terrível de uma posição política intolerante, que significava que a ditadura brasileira seria uma coisa demorada. Então, quando se deu o AI-5, eu intimamente, tomei a minha decisão: `Eu digo, vou me preparar para voltar. Haja o que houver'. Eu tinha uma posição razoável, era professor universitário, tinha um salário razoável que dava para viver minha vida simples, com meus cinco filhos e minha mulher.
Vivíamos em paz, conversávamos com todos os exilados do mundo e com os exilados do Brasil. Mas eu tinha decidido que iria voltar, até porque os processos que existiam contra mim eram do dia da resistência. (1º de abril de 1964). Era evidente, portanto, que eu praticara todos os atos dentro da ordem legal e constitucional vigente, da democracia brasileira que nós defendíamos. De forma que esses processos foram arquivados. Não tiveram possibilidade de ir avante, não podia haver subversão daquilo que era em defesa da legalidade e da constitucionalidade, da Constituição de 1946.
Então decidi voltar. Com o AI-5, em seguida, eu comecei a me arrumar. Porque, antes do AI-5, as passeatas do Rio de Janeiro foram nos mobilizando. Portanto, cada um de nós foi se arrumando. Como é que se pode voltar? Digo, bom, eu vou voltar. Nós dizíamos sempre, para cidades em que for viável a luta de massas, a luta política de construção de uma redemocratização brasileira.
Então, nós tínhamos isso muito definido estrategicamente. Voltar para o Brasil significava voltar para São Paulo ou para o Rio de Janeiro. Eu não podia voltar para a Bahia. Na Bahia, eu não tinha nem como ganhar a vida. Então, decidir ir para o Rio de Janeiro".
"Chegamos a comprar um apartamentozinho no Rio de Janeiro, com Iolanda e cunhados. Quem ajudou inclusive a encontrar esse apartamento lá no Rio de Janeiro, na Rua Toneleiros, quem adquiriu o apartamento foi o Rubens Paiva, em 1968. Então o Darcy (Ribeiro) voltou, mas eu não podia voltar em 68.
Disse a eles: `Eu entro nessa história, nós estamos ajustados, mas eu não posso voltar agora'. Isso porque eu assumi o compromisso com a universidade. Tinha que concluir o curso. E o curso só se concluiria no mês de junho do ano seguinte, em 69. De modo que então eu tinha que cumprir a minha palavra".
"Queríamos permitir que o governo tivesse uma política que respeitasse o interesse da sociedade brasileira e que garantisse a participação do Brasil nas decisões do mundo. O presidente João Goulart defendia essa tese. Propunha relações comerciais com a União Soviética, que nós não tínhamos. Propunha relações comerciais com a China Continental, que nós não tínhamos. A União Soviética tinha relações diplomáticas com todas as nações poderosas do mundo. Por que o Brasil não podia tê-las? Essas autonomias mínimas deveriam ser exercidas".
"Toda vez em que se falava na questão social, em melhorar a renda e o salário, em garantir o acesso das pessoas à terra, era quase um crime. Coisas que os Estados Unidos fizeram na metade do Século XIX. Uma das reformas básicas - está encaminhada na mensagem do presidente João Goulart, de 15 de março de 1964 - era a reforma agrária. Era um princípio, por exemplo, que estava na raiz do direito europeu e do direito norte-americano desde a metade do século XIX. Para nós aqui, era caso de polícia. Então, o presidente introduziu a reforma agrária no Brasil.
Não é lícito. Não é lícito manter a terra improdutiva em nome e por força da propriedade. A terra não está ai para ser improdutiva. Deus não pôs a terra no mundo para ser improdutiva. Então, o latifúndio é um crime contra a vontade de Deus. É um crime contra a paz social. Mas toda vez que se pretendia estabelecer regras que fossem capazes de modificar aquele quadro, a reação era bruta, e assistíamos a um absurdo de intolerância".
"Jango se propunha a fazer reforma agrária em suas terras porque era o presidente da República e queria dar o exemplo. Certa vez ele disse: `Eu sou um grande proprietário. Eu entendo que o Brasil deveria ser um país de milhões e milhões de proprietários de terras. Eu quero dar este exemplo'. O que importava é que a reforma agrária estava sendo posta na ordem positiva do direito do brasileiro, e isso é que era importante. Se ele faria ou não (a reforma agrária), seria um problema futuro dele. Mas, na realidade, ele estava lutando politicamente para isto. E não se tratava da posição política de ninguém. Tratava-se de melhorar as condições do povo brasileiro.
Nós nos tornamos uma das nações mais atrasadas do mundo na relação da terra. Se se quer garantir qualquer tipo de conquista do povo camponês, é preciso dar-lhe o mínimo de possibilidade de vida. Por isso, realizamos no Brasil esse crime, esses trinta, quarenta anos de migrações no Brasil. Essa migração brutal. Há quarenta anos, tínhamos 20% da população nas cidades e 80% da população na área rural. Hoje temos 80% na cidade e 20% no campo. Nenhum país no mundo fez isso. E aí estão as favelas, o desemprego brutal e a insegurança terrível da sociedade urbana. Resultado da insensatez, da incapacidade das elites, que mantiveram essa estupidez"
BRASÍLIA - De vez em quando é bom mergulhar no passado,
quando nada para não repetir erros, porque sempre nos dirá o que evitar. Há
quarenta anos, vivia o Brasil uma situação de crise iminente. Depois da entusiástica
reação nacional ao golpe, em 1961, liderada por Leonel Brizola, entramos em
1964 sob a égide da conflagração. O então presidente João Goulart tivera
assegurada sua posse e governava, por força da resistência do cunhado, então
governador do Rio Grande do Sul, e logo depois o deputado federal mais votado
da história do País, eleito pela Guanabara.
O problema estava na permanência ativa das forças que
tentaram rasgar a Constituição e permaneciam no mesmo objetivo. Uns pela
humilhação da derrota, outros por interesses, estes ingênuos, aqueles infensos
a quaisquer reformas sociais - todos se fortaleciam sob a perigosa tolerância
de Goulart. Conspirações germinavam sob a batuta do Ipes, singelo Instituto de
Pesquisas Econômicas e Sociais, na verdade um milionário centro de
desestabilização do governo trabalhista, erigido em cima de milhões de dólares.
Sua chefia era exercida pelo general Golbery do Couto e
Silva, na reserva, arregimentando políticos, governadores, prefeitos,
militares, fazendeiros, empresários aos montes, classe média e até operários e
estudantes. O polvo tinha vários tentáculos, como o CCC (Comando de Caça aos
Comunistas), MAC (Movimento Anticomunista), Camde (Campanha da Mulher pelas
Democracia), Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e outros, bem
subsidiados, que agiam nas ruas.
Claro que a maioria da imprensa dava ampla cobertura a
essas atividades, sempre escondidas sob a fantasia da defesa da democracia
"ameaçada pelas reformas de base pretendidas pelo governo comunista de
João Goulart". Publicidade e dinheiro vivo não faltavam, além, é claro,
das inclinações pessoais dos barões da mídia.
Do outro lado, organizavam-se as forças que imaginavam
estar o Brasil marchando para o socialismo. O CGT (Comando Geral dos
Trabalhadores), a Frente Nacionalista, o Grupo dos Onze, as Ligas Camponesas e
outros.
Depois da ridícula experiência parlamentarista, o
presidente retomara, através de um plebiscito, a plenitude de seus poderes.
Diante da resistência do Congresso em votar as reformas, Jango decidiu
promovê-las "na marra". Abria perigosamente o leque, em vez de
realizá-las de per si, uma por uma.
Ao mesmo tempo, pregava a reforma agrária, pela
desapropriação de terras por títulos da dívida pública; a reforma bancária, com
a estatização do sistema financeiro; a reforma educacional, com o fim do ensino
privado; a reforma urbana, através da proibição de os proprietários manterem
casas e apartamentos fechados, sem alugar; a reforma na saúde, pela criação de
um laboratório estatal capaz de produzir remédios a preços baratos; a reforma
da remessa de lucros, limitando o fluxo de dólares que as multinacionais
enviavam às suas matrizes; a reforma das empresas, impondo a participação dos
empregados no lucro dos patrões e a co-gestão; a reforma eleitoral, concedendo
o direito de voto aos analfabetos, aos soldados e cabos. Entre outras.
Contava-se, como piada, haver um túnel secreto ligando as
instalações do Ipes à embaixada dos Estados Unidos, no Rio. Verdade ou mentira,
os americanos estavam enfiados até o pescoço na conspiração, por meio do
embaixador Lincoln Gordon e do adido militar, coronel Wernon Walters, antigo
oficial de ligação do Exército americano com a Força Expedicionária Brasileira,
na Itália. Lingüista exímio, sabendo falar até mesmo o português do Brasil e o
de Portugal, tornara-se amigo dos majores e coronéis que lutaram na Itália,
agora generais importantes. E em grande parte, conspiradores.
A estratégia inicial era impedir as reformas de base e
deixar o governo Goulart exaurir-se, desmoralizado, até o final do mandato.
Tudo mudou quando o presidente se deixou envolver por outra reforma, a militar.
Partindo de um inexplicável artigo da Constituição que limitava a possibilidade
de os sargentos se candidatarem a postos eletivos, bem como das dificuldades
antepostas pela Marinha para a organização sindical dos subalternos, tudo
transbordou.
Pregava-se a quebra da hierarquia entre os militares. Acusada
de estar criando um soviete, a Associação dos Marinheiros e Fuzileiros
rebelou-se, instalando-se na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de
Janeiro. Mais de mil marinheiros e fuzileiros recusaram-se a voltar aos seus
navios e quartéis, tendo o governo preferido a conciliação em vez da punição. A
ironia estava em que o chefe da revolta, o cabo Anselmo, o mais inflamado dos
insurrectos, era um agente provocador a serviço do golpe. Quanto mais gasolina
no fogo, melhor.
Juntava-se a isso a decisão de Goulart de realizar
monumentais comícios populares, onde assinaria, por decreto, as reformas
negadas pelos deputados e senadores. Só fez um, a 13 de março, sexta-feira, no
Rio, quando desapropriou terras ao longo das rodovias e ferrovias federais,
encampando também as refinarias particulares de petróleo.
Naquela noite, na Central do Brasil, e ironicamente diante
do prédio do Ministério da Guerra, discursaram revolucionariamente os
principais líderes de esquerda: José Serra, presidente da União Nacional dos
Estudantes, Dante Pelacani, dirigente do CGT, Miguel Arraes, governador de
Pernambuco, Leonel Brizola, deputado federal, e outros.
Cada orador sentia a necessidade de ir além do que pregara
o antecessor. Quando chegou a vez do presidente Goulart, não lhe restou
alternativa senão superar os companheiros. Fez um discurso que os historiadores
precisam resgatar.
Uma espécie de grito de revolta diante das elites, a
pregação da independência para os humildes e os explorados. O desfecho estava
próximo, demonstrando que, do lado de cá do planeta, enquanto a esquerda faz
barulho, a direita corrupta age.
Estes dias, todo mundo
está escrevendo sobre a “revolução” de 64. O colunista lembra
que, na madrugada do dia 31, subia a Rua das Laranjeiras com alguns amigos,
depois de uma noitada de sinuca no Lamas, quando foram parados pela PM. Por
ordem do governador Carlos Lacerda, caminhões da Comlurb estavam na contramão,
atrapalhando o tráfego, como na música de Chico Buarque.
A movimentação era muita
estranha, mas nenhum de nós maliciou nada, ninguém pressentiu o golpe. De
manhã, o dia abriu como uma espécie de feriado. Os bares em Laranjeiras estavam
em festa. Todo mundo de bermuda, tomando cerveja e esperando o avanço dos
tanques do Exército sobre o Palácio Guanabara.
Assistíamos de camarote,
nas janelas do apartamento do dr. Mário Navais Henriques, no Edifício Paulo
Afonso, de onde podíamos avistar o Palácio Laranjeiras, moradia do presidente
João Goulart, e o Palácio Guanabara, reduto do governador Carlos Lacerda.
Na rua, a grande maioria
estava torcendo por Jango. Os adeptos da revolução eram uma minoria
inexpressiva. Da turma das Laranjeiras, apenas Juca Cavour e Eduardo Valois
aderiram às "tropas" de Lacerda. O resto ficou tomando cerveja,
enquanto aguardávamos a reação do Exército. Quando os tanques enfim aderiram
aos revolucionários, à tardinha, foi uma decepção. E os bares continuaram
cheios.
BRASÍLIA - Hoje, dois terços da população
falam por ouvir falar. Quando falam. Os que tinham idade suficiente para
entender e até para viver aqueles idos de 1964 continuam divididos. Para uns,
tratou-se de um golpe cruel vibrado nas instituições democráticas, ao qual
seguiram-se 21 anos de ditadura, tortura, censura à imprensa, supressão dos
direitos humanos e prevalência do poder econômico sobre os anseios das massas.
Para outros, foi um basta à subversão e à corrupção, uma interrupção no
processo de anarquia e de desagregação da sociedade ameaçada pelo perigo
comunista expresso pelo próprio governo.
Contradiz-se também a farta
literatura produzida de lá para cá a respeito do movimento dito militar. Tanto
tempo depois, será preciso atentar para a importância de não dividir o Brasil
de quarenta anos atrás entre mocinhos e bandidos, tanto faz a posição de onde
se observam aqueles acontecimentos.
Nem as Forças Armadas foram as
únicas responsáveis pela truculência verificada nas duas décadas seguintes, nem
poderão apenas ser tidas como as mãos do gato, utilizadas pelas elites para
retirar as castanhas do fogo. Tiveram sua responsabilidade explícita, exposta
através dos governos de cinco generais-presidentes e de duas juntas militares,
mas, no reverso da medalha, evitaram o quanto foi possível a transformação do
Estado brasileiro em apêndice desimportante dos interesses políticos,
econômico-financeiros e até culturais do conglomerado internacional que hoje
nos domina e ao planeta também.
Indaga-se como foi possível cair
feito fruta madura um governo democrático, forjado na luta e na resistência de
três anos antes em favor do cumprimento da Constituição e da posse do
vice-presidente, após o histriônico episódio da renúncia do presidente Jânio
Quadros.
João Goulart terá sido derrubado
mais pelas suas virtudes do que por seus defeitos, mas estes foram imensos.
Ingenuidade, em primeiro lugar, se imaginou que reformas sociais profundas
poderiam ser conquistadas no grito, de uma só vez, com as elites conformando-se
em abrir mão de seus privilégios sem organizar-se nem resistir.
Depois, ilusão de que as massas dispunham-se a respaldá-lo
acima e além dos comícios e da retórica fácil. Acrescente-se a frágil concepção
de que, por estar exercendo legitimamente o poder, contaria com a anuência das
estruturas que buscava modificar e reformar. A favor delas, deixando as coisas
como estavam, obteria sucesso, o que seria uma incongruência para quem
pretendia passar à História como um reformador igual ao seu mestre, Getúlio Vargas.
Demonstrou-se, nos eventos de 31
de março e de 1º de abril, a precariedade do poder formal. O "esquema
militar monolítico" que defenderia a legalidade só existia na cabeça dos
áulicos palacianos. Quando precisou das Forças Armadas para garantir-lhe o
direito de continuar governando, João Goulart percebeu havê-las perdido por
inteiro.
Parte foi porque admitiu
"reformá-las", prestigiando tentativas de quebra de hierarquia. Parte
por conta da formidável movimentação das elites econômico-financeiras infensas
a perder privilégios. Nesse aspecto, a mídia exerceu papel fundamental,
inoculando na opinião civil e militar o germe da insegurança.
Organizada, com fartura de dólares
e de pensadores, a direita dispunha de um objetivo claro: impedir quaisquer
reformas capazes de arranhar-lhe os benefícios, mesmo que para isso se tornasse
necessário desestabilizar, primeiro, e depor, em última instância, um governo
constituído.
Já as esquerdas... As esquerdas
dividiam-se entre a euforia inconseqüente da suposição de que já tinham
conquistado o poder e alterado estruturas ainda imutáveis, de um lado, e, de
outro, as eternas desavenças entre seus diversos grupos inconciliáveis.
No meio delas, mesmo percebendo
que a reação se avolumava, achava-se um presidente cuja única saída acabou
sendo a fuga para a frente. O diabo é que diante dele não se descortinava a
avenida das reformas sociais, mas o precipício do retrocesso e do caos
institucional. É claro que as teorias cedem sempre, quando surgem os fatos.
A dúvida dominava os dois lados.
Os conspiradores ignoravam a facilidade com que o governo se dissolveria.
Estavam preparados para a guerra civil, capaz de levar meses. Por isso, não se
animavam ao primeiro gesto ostensivo. Precisou um general meio doido botar
precipitadamente suas tropas na rua, em Juiz de Fora, mesmo sem saber se seria
esmagado em poucas horas. Do Rio, os principais chefes da conspiração tentaram
demovê-lo, exigindo que voltasse com os poucos tanques e canhões postos na
estrada União e Indústria.
Mourão Filho reagiu, não faltando
em sua negativa as quixotescas afirmações de que ali estava para "vencer
ou morrer". Não morreu, senão anos depois, de doença e de desânimo, porque
quem venceu foram os outros. Numa questão de horas, mudaram de lado as tropas
ditas legalistas que subiram a Serra de Petrópolis para barrar a progressão dos
revoltosos mineiros. Em São Paulo, no Nordeste, no resto do País, a mesma
coisa.
João Goulart estava no Rio, negou-se
a autorizar que uns poucos aviões da FAB ainda sob as ordens de seu ministro da
Aeronáutica bombardeassem as tropas do general Mourão com napaln. "Vai
matar muita gente, isso eu não permito!"
Para não ser preso, voou até Brasília, mas, na capital, sua segurança
revelou-se ainda mais precária. Buscou resistir no Rio Grande do Sul,
imaginando a repetição dos episódios de 1961. Esqueceu-se de que a História só
se repete como farsa.
Lá, o governador não era mais
Brizola, porém Ildo Meneghetti, golpista. O general que ainda lhe era fiel,
Ladário Pereira Telles, garantiu-lhe apenas por uma hora condições para
conduzi-lo ao aeroporto e tomar o rumo do Uruguai. Aceitou. Ladário indagou de
Leonel Brizola, também presente, se viajaria junto. Resposta: "Eu não me
chamo João Goulart! Vou resistir!"
BRASÍLIA - Quarenta anos depois,
sobrou o que do movimento militar de 1964? Para começo de conversa, cobranças,
mesmo com o tempo fazendo a poeira assentar. Cobranças de parte a parte. De um
lado, existem os que continuam criticando, protestando e apresentando a conta.
São os que, de uma forma ou de outra, viram-se atingidos pela truculência do
regime.
Não apenas os torturados,
exilados, censurados, demitidos. Ou seus familiares, se eles não estão mais
entre nós.
Muitas instituições também têm o que cobrar. A imprensa, por exemplo, obrigada
a omitir tudo o que prejudicava os donos do poder. Sem esquecer que a maior
parte dos veículos de comunicação da época esmerava-se em divulgar aquilo que agradava
os poderosos.
Temendo represálias ou programando
benesses, acomodaram-se quase todos os barões da mídia e muitos de seus
acólitos. Seria menos ridículo que, hoje, certos falsos heróis de uma
resistência inexistente ficassem calados em vez de tentarem faturar aquilo que
não praticaram.
De um modo geral, porém, a
imprensa sofreu e involuiu. Jamais as tiragens dos jornais ficaram tão
reduzidas. "Comprar jornal para quê?" - insurgia-se o cidadão comum,
se era para ler elogios ao falso milagre brasileiro ou, em contrapartida,
versos de Camões ou receitas culinárias. Com a televisão e o rádio, perseguidos
até no roteiro de suas novelas, pior ainda. Transmitiam a impressão de vivermos
num outro mundo.
Massacrados da mesma forma foram os advogados. O regime
confundia o sagrado dever de defender o semelhante com a integração obrigatória
do defensor nas práticas do réu. Um monumento deveria ser erigido ao Advogado
Desconhecido, mesmo a gente conhecendo o nome da maioria desses abnegados
bacharéis que honraram a profissão. E sofreram por isso.
Sofreu o Judiciário, atingido em
tradicionais predicamentos constitucionais de vitaliciedade, inamovibilidade e
irredutibilidade de vencimentos. Ministros dos tribunais superiores e simples
juízes de primeira instância, intimidados, acomodados ou dispostos à
resistência, viram desmanchar-se a estrutura fundamental da democracia, erodida
por absurdos como o de que os atos revolucionários seriam insusceptíveis de
apreciação judiciária.
É claro que também pontificaram os
"jurilas" de todas as ditaduras, misto de juristas e de gorilas tão a
gosto do regime. Reconheça-se o papel altivo do Superior Tribunal Militar, que,
num sem-número de ocasiões, desfazia aquilo que nas instâncias inferiores a
exceção buscava transformar em regra.
Os políticos, da mesma forma,
perderam o que lhes restava de credibilidade junto à opinião pública. A sombra
das cassações de mandatos políticos só não agredia tanto a prática parlamentar
quanto os ucasses que transformaram o Congresso em apêndice desimportante do
Executivo. Atos institucionais, atos complementares, decretos-lei, casuísmos,
fechamentos e recessos parlamentares fizeram com que a atividade política e
eleitoral se transformasse em chacota nacional.
Num determinado momento, para
sepultar laivos de independência, os militares dissolveram os partidos, criando
o bipartidarismo obrigatório. Para continuar na política seria pertencer ao
partido do "sim", a Arena, ou ao partido do "sim senhor", o
MDB, mais tarde inflado pela indignação, transformando-se num dos principais
aríetes responsáveis pelo fim da ditadura. Para cada dr. Ulysses ou para cada
"autêntico" que se insurgia, centenas de desfigurados marionetes
candidatavam-se a ajoelhar no altar da exceção.
O movimento sindical implodiu nos
primeiros dias do novo regime. Perseguidos como inimigos públicos, os líderes
trabalhistas desapareceram nas masmorras, no exílio ou no esquecimento. Terá
sido este um dos erros fundamentais da ditadura, porque, conforme a natureza
das coisas, em política não existem espaços vazios. Foram-se os dirigentes em
grande parte viciados pelo sabujismo ao Ministério do Trabalho, mas emergiram
líderes operários autênticos. Vêm daí as origens de Lula.
O mesmo aconteceu no movimento
estudantil. Perseguidos, eclipsaram-se os estudantes profissionais que
dominavam as organizações de classe, boa parte atrelada ao Ministério da
Educação. Ganharam o exílio aqueles que tentavam renovar as estruturas viciadas
vindas do Estado Novo, como José Serra, o último presidente da União Nacional
dos Estudantes, obrigado a refugiar-se no Chile. O fenômeno foi o mesmo dos
sindicalistas: surgiram dirigentes de verdade, oriundos dos bancos escolares.
José Dirceu, Wladimir Palmeira, Jean Marc, Alfredo Sirkis, Honestino Guimarães,
Franklin Martins.
Identificados, após ações de toda
espécie, até tresloucadas e radicais, acabaram detidos, alguns desaparecidos até
hoje, mas plantaram a semente. Ainda agora o movimento estudantil pertence aos
estudantes.
A cultura vergou mas não quebrou.
Das músicas de protesto ao teatro de arena e de vanguarda, das entrelinhas do
"Pasquim" à poesia de combate e ao cinema novo, os intelectuais
resistiram. Tornaram-se figuras de expressão nas passeatas, nos manifestos e na
arte de estrilar. Apanharam, foram presos e muitos se exilaram. Imagina-se o
que teriam produzido em regime de liberdade plena. Talvez bem menos do que
produziram sob pressão.
Esse tipo de cobrança estende-se
até nossos dias, ainda que cada vez mais esmaecido pelo tempo, com as exceções
de sempre. Intelectuais, estudantes, operários, políticos, magistrados,
advogados e jornalistas, em maioria, não esqueceram. Talvez nem tenham
perdoado, ainda que lentamente varridos pelos ventos da renovação.
Nada pessoal, apenas fatos, já agora históricos. João Goulart
foi imprudente, displicente, até mesmo insensato. Seu comportamento
decididamente pelo continuísmo no Poder jogou todos contra ele, até amigos e
correligionários, como o já ex-governador (em 1963) Leonel Brizola e o
governador (a partir de 1963) Miguel Arraes.
Os dois eram candidatos, politicamente deveriam ser
fortes, pois pertenciam ao esquema que estava no governo. Mas eram prejudicados
pelo próprio João Goulart, sempre e cada vez mais candidato ou candidatíssimo,
embora sabendo que era inconstitucional.
Eleitoralmente, Brizola e Arraes eram superados por
Ademar, Magalhães e Lacerda, geograficamente mais importantes. Em toda a nossa
história o fator geográfico foi quase insuperável, até mesmo identificado como
"café com leite". O que nem era verdadeiro, pois os 3 primeiros
presidentes foram de São Paulo, Prudente, Campos Salles, Rodrigues Alves.
A insensatez de João Goulart tem muitas identificações,
mas a mais importante, mais elucidativa e até incompreensível foi a
"reabilitação" do general Kruel. Este, no final de 1953, assinou um
manifesto de 69 coronéis, exigindo de Vargas que demitisse o ministro do
Trabalho. A primeira assinatura desse manifesto era do coronel Kruel, e o
ministro do Trabalho era precisamente João Goulart.
Nem quero esgotar esse episódio, fica para o livro, foi
mais um golpe militar. Vargas começou a cair ali e não em 1954. Nenhum
presidente, seja quem for, pode aceitar exigência, demitir um ministro por
causa de 69 coronéis. Devia ter mandado prender todos eles e mantido o ministro,
mesmo que fosse derrubado na hora. (Fato que o presidente Lula pode estudar).
Pois João Goulart foi mais subserviente, vá lá,
maquiavélico, como chamam os que não leram Maquiavel, e nomeou o próprio Kruel
chefe da Casa Militar. É demais. Ninguém politicamente pode ser
"generoso" a esse ponto. Depois nomeou Kruel ministro da Guerra, e
finalmente comandante do II Exército, onde teve participação importante na
derrubada de Jango. Em pouco mais de 10 anos, Kruel foi importantíssimo na vida
de Jango.
A atividade golpista (e insensata) de João Goulart era tão
grande que seus mais íntimos amigos e confidentes eram Roberto Marinho e o
embaixador Lincoln Gordon. E o cidadão que escrevia os editoriais de Roberto
Marinho escrevia discursos para João Goulart. (Nem quero falar no general
Walters, golpista sempre, recebido naturalmente por Jango).
A situação se deteriorava de tal maneira, que um dia, na
televisão, Leonel Brizola disse textualmente, com aquela sua oratória
indiscutível: "Não vou mais ao Laranjeiras, não é verdade. Toda vez que
vou lá encontro com esse senhor Roberto Marinho, até sentado na cama do
presidente, não é verdade". O presidente da República ficava no
Laranjeiras, quase não ia a Brasília.
Quando Brizola, c-a-n-d-i-d-a-t-í-s-s-i-m-o a presidente,
insistiu em ser ministro da Fazenda (com Lott ministro da Guerra para
"controlá-lo", sugestão mesmo do ex-governador), Jango consultou
Roberto Marinho e Lincoln Gordon, os dois disseram: "Se você (chamavam o
presidente de você, tal a intimidade) fizer isso, será derrubado". João
Goulart tinha que expulsar os dois na hora, ainda nem existia a TV Globo.
João Goulart não nomeou Brizola ou Lott e foi derrubado.
Se tivesse nomeado os dois (um como suporte e garantia do outro), teria sido
derrubado? Aí não passa de hipótese, mas o presidente da República não podia
aceitar afirmação como essa, vinda de um embaixador dos EUA.
O veto de Roberto Marinho até podia ser entendido.
Jornalista de prestígio, não entrava no Laranjeiras por acaso, era chamado pelo
presidente. Mas não nomear um ministro por causa da REJEIÇÃO do embaixador dos
EUA?
31 de março ou 1º de abril são apenas datas. Na verdade,
João Goulart estava "derrubado" desde que ganhou a presidência. Mas a
ditadura não começava ali. Naquele momento o próprio Castelo Branco conversava
com JK, e lhe dizia: "Meu único objetivo é garantir a eleição de
1965". Golbery, que era tenente-coronel da reserva, e os generais não
deixariam. O golpe para valer começaria com a prorrogação do mandato de
Castelo. Poucos perceberam.
Doeu para valer. O tempo de duração do golpe não deve ser
contado a partir de 31 de março, e sim com a articulação e a conquista da
prorrogação do mandato de Castelo.
PS - Impressionante. Jornais, rádios, revistas, televisões (até TV
Senado e TV Câmara) recordam 1964. Mas contam o que todos já contaram. Eu
mostro bastidores, cito pessoas quase escondidas, como o bilionário
incorporador Santos Vhalis.
PS 2 - E o Frei Beto apresenta a Igreja Católica como a grande resistência
à ditadura. Se não fosse a Igreja, multidões não teriam ido às ruas. O Poder
congestionou a memória de Frei Beto.
Humberto ManesAinda
tem muito prestígio no Tribunal de Justiça, condenou severamente a Globo.
Aplaudido. |
O Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio
teve sessão animadíssima anteontem. Tudo por causa da Organização Globo.
Severas críticas foram feitas à Organização, principalmente à televisão Globo.
Quem levantou o assunto foi o desembargador Humberto Manes, que já presidiu o
Tribunal.
Mas num episódio raríssimo, os desembargadores, na
totalidade, apoiaram e aplaudiram Humberto Manes. Até mesmo o desembargador
Miguel Pachá, presidente do Tribunal e do Órgão.
A TV Globo nunca foi tão hostilizada. O mínimo que se
dizia: "Falida, e à beira de desaparecer ou ser encampada por grupos
multinacionais, a Globo tenta se salvar, mistificando a opinião pública".
As denúncias desta Tribuna da Imprensa sobre a Globo (sobre e não contra) levam o Tribunal de Justiça a não deixar que a condenação da Organização não demore mais. É uma questão de JUSTIÇA.
BRASÍLIA - Quarenta anos nos
separam de 1964, não propriamente o ano em que o Brasil se dividiu, porque
dividido já estava, mas o ano da ruptura explícita do País em duas metades. O
diabo é que duas metades artificiais, falsas, levadas ao confronto
desnecessário por força das circunstâncias e, mais do que delas, por maliciosa
manobra das elites econômico-financeiras nacionais e internacionais.
Porque até hoje vende-se a
impressão de que a partir de 1964 o Brasil rachou entre civis e militares,
estes usurpando o poder e impondo a ditadura, aqueles vilipendiados, afastados
de cena e condenados, primeiro, ao marasmo, depois à discordância, e, desta à
resistência e à vitória, 21 anos depois, com o afastamento das Forças Armadas
da cena política. Na verdade, não foi nada disso, ou isso expressou apenas a
casca enganadora de um conteúdo muito diferente. Porque tanto a sociedade civil
quanto a militar tinham e têm a mesma origem e o mesmo destino. Formam uma só
unidade.
Pensam igual e possuem objetivos idênticos. No caso, a
preservação da nação, de nossa soberania e de nosso território. A presença do
Estado como agente regulador das relações econômicas e sociais, fator maior da
distribuição da igualdade entre a população. Mais ainda, a construção de uma
realidade mais equânime e projetada para o futuro.
Era isso o que pretendiam os civis depostos pelos
militares, como foi isso o que perseguiram os militares que depuseram os civis.
Fala-se do povo. Porque foram as elites as responsáveis
pela ilusória e trágica divisão cultivada até hoje, inflada pela truculência
com que os militares se comportaram, tanto quanto pela irresponsabilidade
anterior ou a reação posterior, muitas vezes desmedida, com que certas parcelas
do poder civil reagiram. O que menos importa, hoje, é saber quem nasceu
primeiro, se o ovo ou a galinha.
Na verdade, era e é outra a verdadeira divisão que as
referidas elites buscaram e buscam ocultar. Utilizaram os militares, quarenta
anos atrás, como as mãos do gato, para tirar as castanhas do fogo.
Hoje, utilizam a sociedade civil, que rotulam de
libertária, para obter os mesmos fins. Quais? A satisfação de seus interesses,
a preservação de seus privilégios e a concentração de renda cada vez maior em
suas mãos. A prevalência de uma casta de ricos cada vez mais ricos e de uma
massa sempre maior de descartáveis premidos pela indigência. Civis e militares.
Por ironia, foram os militares que, no poder, ainda
conseguiram preservar as linhas mestras de nossa existência como nação. Como
foram os civis que, ultrapassando a ditadura, viram-se enganados e ludibriados,
obrigados a aceitar o modelo cruel responsável pela nossa débacle como
sociedade independente.
Tremerão as elites no dia em que o Brasil conseguir
quebrar a casca desse confronto anterior, real e justificável pela argumentação
dos dois lados. Estará desfeito o muro que nos separa, artificialmente mantido
como forma de alimentar a ambição e os privilégios das minorias responsáveis
pelo aumento da fome e da miséria.
Eleito pela indignação diante de tamanha farsa, o governo
Lula encontra-se iludido por essas mesmas elites, responsáveis pela preservação
do modelo que há anos nos assola, feito de falsas verdades absolutas como a de
que não poderia ser diferente, já que a inflação alcançaria patamares insustentáveis,
o dólar chegaria à estratosfera, o risco-Brasil nos sufocaria e os
investimentos externos desapareceriam - levando-nos à desagregação.
É mentira. A desagregação está aí mesmo, expressa no
objetivo oculto que nos vem sendo imposto. A quebra da soberania, a
transformação do trabalhador em apêndice do processo econômico, a perda do
poder aquisitivo dos salários, a supressão de direitos sociais, a prevalência
do setor especulativo sobre o produtivo - tudo isso continua alimentado pelos
esqueletos do passado.
Mudará tudo no dia em que civis e militares se
conscientizarem de estar sendo enganados pela quadrilha neoliberal, ao preço da
cicatrização de feridas anteriores. Haverá que encerrar estas desimportantes considerações
sobre os quarenta anos do movimento militar. Provavelmente surgirão condenações
dos dois lados.
Dos militares, julgando-se ofendidos pelo reconhecimento
dos excessos que seus antecessores praticaram. Dos civis, que sofreram e
sentem-se no direito de cobrar reparações até o fim dos tempos. Paciência, o
passado não se deu ao trabalho de passar para ser esquecido. Não nos dirá o que
fazer, mas mostra o que devemos evitar. Coisa que até agora não conseguimos,
por força de quantos pretendem impedir o futuro.