Ninguém é tão caluniado, nenhum outro
cientista foi tão criticado, atacado, vilipendiado como este alemão
de ascendência judia. Carlos Marx, o homem que renovou a ciência
e a filosofia, através do Materialismo Dialético é, na
verdade, um ilustre desconhecido.
Outro dia, conversava com uma amiga, que se surpreendeu ao saber que eu era
marxista. Ela disse: “poxa, mas Marx era um utópico, o que ele
escrevia era bonito, mas impraticável.”. Outro amigo discutiu
dizendo que “o comunismo na teoria é muito bom, mas, na prática,
é completamente o contrário daquilo que prega”. Uma coisa
havia de comum aos dois. Nenhum havia lido sequer uma única linha daquele
de quem pretendiam criticar!!!!!
Vivemos num país cristão e quase que todos os brasileiros já
leram a Bíblia, se não toda as Sagradas Escrituras, pelo menos
algo dos Salmos ou do Evangelho. E aí, muitos discutem com propriedade
trechos e dizeres do Livro Sagrado. O que uma pessoa versada no cristianismo
acharia de alguém que, sem nunca ter lido a Bíblia, de uma hora
para outra começasse a criticar seu conteúdo???? Seria no mínimo
uma atitude imprópria, já que a ignorância sobre o tema
não pode ser argumento de discussão.
Sobre Marx, parece que a ignorância não intimida as pessoas.
Ainda que não tenham lido uma única linha do genial alemão
sentem-se bastante cômodas para discutir e opinar sobre idéias
que não conhecem.
Há um provérbio espanhol que diz: “O ignorante não
dúvida porque desconhece que ignora”. É verdade que no
Brasil há um grande déficit de leitura. Mesmo entre a classe
média “culta” brasileira a leitura não é
um hábito. Estudantes de mestrado trocam a leitura de Graciliano Ramos
ou Vinícius de Moraes pelo “Big Brother Brasil” e acham
isto muito normal. A leitura é “utilitária”, só
lêem o que necessitam para se graduar e, ou conseguir uma colocação
profissional melhor.
E assim Marx vira um grande mito, um espectro que muito assusta sem que ninguém
saiba ao certo bem quem ele é. Até mesmo na esquerda isto acontece.
Conheço vários companheiros, militantes de partidos de esquerda,
com cargo de direção em partidos que se pretendem marxistas
e que são completamente ignorantes do que seja o Materialismo Histórico
ou o Materialismo Dialético. Outro dia discuti com um companheiro que
se pretendia marxista e que tentava me convencer por A mais B que a redução
da jornada de trabalho não melhora a condição de vida
do trabalhador e não aumenta o valor proporcional do salário.
Defendeu sua posição à quase exaustão, e pouco
tempo depois, acabou me confessando que estava começando a ler um livro
que falava sobre o Capital.
Ou seja, alguém que defendeu posições pretensamente “marxistas”
simplesmente DESCONHECIA A TEORIA DO VALOR, base, espinha dorsal dos trabalhos
econômicos de Marx! E isto não é uma prática isolada.
Várias pessoas que se pretendem “marxistas” simplesmente
não lêem Marx... E como se alguém quisesse se tornar teólogo
sem ler a Bíblia (guardadas as proporções entre o laico
e o sacro).
Estudo Marx há 18 anos, comecei com “A Origem da Propriedade
Privada, da Família e do Estado” (e li depois todos os livros
importantes dele e de Engels e, depois de todo este tempo lendo Marx, considero-me
apenas um estudante, um curioso, que pretende ainda ler bastante para poder
entender o materialismo dialético), livro onde, baseando-se na teoria
da Evolução das Espécies, em cima de descobertas de Morgan,
Marx fez uma série de anotações que serviriam a Engels
para terminar o livro. Nele, se traça um caminho desde a época
onde os homens conviviam nas hordas (recém saídos das árvores
e da condição de animal), passa por milênios de evolução
entre o Estado Selvagem e a Barbárie, até chegar à civilização.
De forma materialista e dialética (um dos melhores livros de materialismo
histórico) ele demonstra a interligação entre a evolução
da família e da propriedade. Mostra, sem remeter-se a discussões
teológicas, como o homem saiu das comunidades primitivas onde havia
o intercâmbio sexual livre, passa ao casamento por grupos, casamento
sindiásmico (dissolúvel por ambas as partes) na sociedade matriarcal
e, com o advento do pastoreio, da cerâmica e da agricultura, na fase
final da barbárie (começo da civilização e do
Estado), com a possibilidade de herdar se chega à família patriarcal,
ao Direito, ao Estado, à Civilização, às Classes
Sociais. Mostra como a virgindade e a castidade feminina estavam intimamente
ligadas ao direito de herança e a necessidade do homem ter certeza
de sua descendência. E que portanto a evolução da família
não foi “natural” ou “vontade de Deus”, mas
efetivamente um processo histórico em andamento e que é afetado
continuamente pela evolução econômica (a mudança
dos costumes está sempre ligada a grandes mudanças, a revoluções
econômicas). Este livro também mostra que as classes sociais
não nasceram com o homem são um processo histórico de
curta duração, se comparado com o tempo de existência
da humanidade.
O que há de Utópico nisto??? O que há de quimérico
em Marx? Nada, ou quase nada. Neste livro crucial para o entendimento do materialismo
histórico Engels gasta talvez três linhas sobre a sociedade socialista
do futuro: “será uma sociedade com a fraternidade da gens primitiva,
todavia, com a ciência da civilização moderna”,
não fala mais do que isto, pois Marx e Engels não eram futurólogos,
eram cientistas que criticavam em cima da realidade concreta existente, presente
e passada.
Descobrir Marx (cuja amplidão de estudos e anotações
vai da economia à psicologia, passando por antropologia, filosofia,
política, física, matemática...) é entender a
importância de seu pensamento para o mundo de hoje. Ainda que não
declaradamente, toda a ciência é materialista e têm bastante
de dialética, e as ciências sociais de hoje não existem
sem Marx. O estudo da estrutura e da superestrutura, das contradições
existentes entre a base material e a estrutura de pensamento de uma sociedade,
como as transformações econômicas, as modificações
na base material de vida invariavelmente acabam por transformar a vida dos
homens: é descobrir um método de pensar e analisar que afasta
toda a fantasmagoria, superstição e dá o liame para entender
as concatenações econômicas que levam a sociedade de hoje
a uma crise tão profunda (o materialismo dialético).
Até mesmo os mais aferrados adversários de Marx lêem o
grande filósofo materialista alemão, até para poder refutá-lo.
Toda a análise de valor feita hoje em dia, por todos os grandes economistas,
saíram das linhas escritas em “O Capital”, “Contribuição
à Crítica da Economia Política”, ou dos “Grundrisse”.
A teoria do valor de Marx é universalmente aceita e estudada. Somente
suas conclusões sobre o fim do Capital, sobre a Crise Final do Capitalismo
é que são sempre afastadas. Previsões feitas há
150 anos atrás.
Para quem leu Marx, não há espanto ao ver o desemprego em 20%
da população e crescendo sem NENHUMA PERSPECTIVA DE SOLUÇÃO
DENTRO DO SISTEMA CAPITALISTA. Marx já o previa em suas obras econômicas.
A contradição insolúvel entre a produção
social e a acumulação individual. Entre a necessidade de participação
cada vez maior de capital morto (tecnologia) no trabalho no lugar da mão
de obra viva. A expulsão crescente da mão de obra da produção
cria o contraditório e terrível espetáculo do Mercado
sem mercados. A decrescente participação do ser humano no processo
de produção diminui em escala geométrica o número
de consumidores. Marx aí atua quase como um profeta projetando na economia
da época uma crise que se materializou um século e meio depois.
Istvan Meszaros (marxista húngaro) escreveu o excelente “Para
Além do Capital”, onde, em cima das descobertas econômicas
de Marx, ele situa e esclarece a crise atual. O grosso livro de 1200 páginas
mostra a atualidade e a força do marxismo. Para quem não o leu,
a crise é apenas passageira e tem como causa “alguma flutuação”
no mercado mundial. E porque sem a leitura de Marx, não há subsídios
para saber como se forma o mercado, de que maneira se gera valor, se acresce
valor à mercadoria, não se sabe mesmo de onde vem e para onde
vai a crise. Talvez na total ignorância seja mais alentador pensar que
efetivamente a crise é como uma doença que passará assim
que surgir um remédio milagroso... Nisto, há muito de utópico
nos nossos economistas e absolutamente nada em Marx, que previa a miséria
absoluta crescente, a acumulação desmedida e o fim de um sistema
que não consegue reproduzir seu material de trabalho mais importante:
A MÃO DE OBRA HUMANA VIVA.
Para Jean Paul Sartre o marxismo era a única grande filosofia viva
moderna, e que só será superada quando esta atual civilização
de classes houver sido superada (vejam em “Crítica da Razão
Dialética”). Até mesmo a igreja se renovou em cima de
Marx com a Teologia da Libertação. De todos os seus livros há
chaves para interpretar o conhecimento e a realidade e nenhum futurismo, previsões
doidas ou utopias insanas (Marx fez mesmo em “O Manifesto do Partido
Comunista” uma crítica implacável, um acerto de contas
com o “socialismo utópico”. Seu livro “Miséria
da Filosofia”, que criticava Proudhon, foi de tal maneira desconcertante
que fez deste um inimigo ferrenho de Marx. Neste Marx lançou a base
teórica de descobertas importantes que iria aprofundar em trabalhos
econômicos posteriores sobre a crise, a acumulação, o
valor...).
Ler Marx é um exercício de conhecimento da realidade, uma descoberta
científica, um exercício de ilustração, e é
o único caminho para realmente ter uma idéia de para onde vai
o mundo moderno.
Marx, pensador materialista, cientista infatigável, pesquisador enciclopédico,
um ilustre desconhecido para a maioria, para quem não passa de um utópico.