Os desordeiros: do mundo do crime ao mundo da cultura - Rodrigo Janiques Vieira Rio de Janeiro 1900 Rodrigo Janiques Vieira Monografia apresentada para conclusão do curso de licenciatura em História. Orientador: Professor Dr. Valeriano Altoé UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA Rio de Janeiro 2006 Capoeiras, capoeiras! gente que com a testa faz n´um instante mais espalhafato que meia dúzia de Godans ébrios a jogarem o soco; gente que com a faquinha n´uma mão e o copo na outra afronta o mais intrépido valentão, mete às vezes uma patrulha no chinelo, fazendo-a amolar as gâmbias com a maior frescura do mundo; gente gárrula, provocadora, que só guarda as esquinas ou as praças do mercado, rebuçada às vezes em uma velha capa, trazendo o seu cacetinho por disfarce. Eis os capoeiras! O CORREIO DA TARDE, Rio de Janeiro, 3/11/1849 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 1 UMA COR E VÁRIAS NAÇÕES 1.1 Identidades Africanas 1.2 O comércio de cativos 1.3 Os que vêm e os que vão: taxas de natalidade e de mortalidade dos escravos no Rio de Janeiro 1.4 De carregadores a músicos, do trabalho a cultura: um pequeno relato das funções dos escravos no Rio de Janeiro 2 AS RAÍZES DA CAPOEIRA. 2.1 Um debate sobre a origem do capoeira 2.2 Etimologia do termo capoeira 2.3 No plano da historiografia 3 UMA ARTE NEGRA 3.1 A malta 3.2 A casa de angu 3.3 Capoeiras e vadiagem: uma ameaça à ordem senhorial CONCLUSÃO REFERÊNCIAS --------------------------------------------------------------------------------- Introdução O trabalho surgiu para mim de forma bastante inesperada, meu orientador professor Valeriano, me atentou para a importância de um movimento cultural que ocorrera primordialmente nos oitocentos. Esse movimento era a Capoeira. Neste trabalho tive o privilégio de viajar pelo mundo cultural da primeira metade do século XIX, e de tentar entender as pequenas facetas do mundo da capoeiragem carioca e das formas de atuação e de comportamento das Maltas, assim como, de sua própria geografia na “pequena África carioca.” A proposta da minha pesquisa foi tentar desvendar um pouco das condições dos escravos urbanos no Rio de Janeiro e da sua relação com a capoeira. Foi neste trabalho que pude estudar as diversas formas de interpretação da capoeira e, de sua relação com o tempo e o espaço em uma sociedade amplamente racista e preconceituosa com aqueles que foram de grande importância na formação de uma cultura que permanece até os dias de hoje. Apesar de não haver muitas fontes bibliográficas sobre este assunto, os trabalho de historiadores como Karasch e Soares, foram de grande importância no que tange, a análise de toda uma “sociedade africana” carioca no século XIX. Citei estes pesquisadores porque, em minha opinião, foram os mais completos em suas análises sobre a vida dos escravos urbanos e de sua relação com a capoeira carioca. No primeiro capítulo tratei das identidades dos africanos que chegavam ao Brasil, do comércio de cativos, das taxas de natalidade e mortalidade e ainda das formas de trabalho dos escravos urbanos do Rio de Janeiro do século XIX. No segundo capítulo fiz um estudo aprofundado das raízes da capoeira e do próprio capoeira, também da etimologia e da historiografia do século XVIII e XIX. No último capítulo, trabalhei especificamente com a malta de capoeira, com as casas de zungu e com os capoeiras desordeiros da armada. 1 UMA COR E VÁRIAS NAÇÕES A sociedade escrava carioca era desumana, pois forçava a maioria dos escravos a deixar sua terra natal e tudo que fizesse algum sentido para trás. No Rio de Janeiro havia uma grande variedade de nações diferentes e a maioria dos escravos era proveniente do Centro-Oeste africano. O desafio para um escravo no Rio era cunhar uma vida com sentido em meio a indivíduos diferentes que compartilhavam poucos valores e ainda sim criar um só grupo a partir da desordem de muitos. Sem um entendimento dessas origens, fica complicado compreender a formação e a cultura dos escravos na cidade. No século XIX, as principais divisões entre os escravos estavam baseadas no lugar de nascimento de cada um, ou seja, África ou Brasil. Os senhores de escravos classificavam os cativos brasileiros por cor, e os africanos eram denominados pelo seu local de origem, uma vez que, para eles, todos os escravos africanos eram “negros”. A historiadora Mary Karasch nos presenteia com um grande exemplo da distinção que havia entre os escravos brasileiros e os africanos, “Um escravo brasileiro poderia se chamar José crioulo ou Maria Parda, enquanto os africanos seriam Antônio Angola e Maria Moçambique”. (Karasch, 2000, p. 49). No Rio de Janeiro do século XIX, as principais “nações brasileiras“ eram a crioula, a parda e a cabra (Karasch, 2000, p. 36). Os escravos crioulos e pardos mantinham certas identidades e comunidades tão afastadas umas das outras quantos, das nações africanas. Esses termos eram utilizados para designar a cor dos escravos brasileiros e, o mais comum era o “crioulo”, aplicado ao negro nascido no Brasil. Os termos “negros” e “pretos” eram utilizados em relação a africanos. Porém os próprios negros brasileiros preferiam ser intitulados de “crioulos”, já que este termo significava que tinham nascido no Brasil, do qual se orgulhavam. “Negro” não era aceitável por eles: era como se “negro” fosse sinônimo de escravo. “Preto”, todavia, parece ter sido um termo mais neutro e aceitável entre os escravos, especialmente no caso da nacionalidade. Os crioulos africanos geralmente eram oriundos de algumas colônias portuguesas na África, tais como, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola ou Moçambique. Portanto um escravo nascido em Angola era chamado de “crioulo da Angola”. Essa expressão também era utilizada com os escravos no Brasil. Por exemplo: um escravo que tivesse nascido na Bahia seria “natural da Bahia” o nome de uma vila, cidade ou província também poderia ser utilizado. Porém, nos dois casos o escravo deveria falar a língua portuguesa e pelo menos compartilhar um pouco da cultura de seu senhor ou senhora. Segundo Florentino Manolo “as origens mais comuns dos escravos de nacionalidade brasileira que viviam no Rio de Janeiro eram das províncias de Minas Gerias, São Paulo, Bahia, Pernambuco, Maranhão e Rio Grande do Sul.” (MANOLO, 2000, p. 78). O segundo grupo de escravos brasileiros eram os “pardos”. Os senhores usavam o termo “pardo” para definir um mulato, que seria uma pessoa de pais africanos e europeus, e os próprios pardos usavam desta diferença para se distinguir dos crioulos e dos outros grupos racialmente mistos da cidade. (Graham, 2000, p. 49). Só como exemplo, suas irmandades religiosas e seus regi mentos militares eram particulares, assim como suas ocupações. Um viajante alemão chamado Meyen resumiu que “a maneira mais apropriada de se chamá-los era de pardo, pois mulato era uma palavra depreciativa e os senhores a usavam como forma de insulto”. Ele afirmou também que “os orgulhosos pardos da cidade desprezavam os negros e sentem-se iguais aos brancos”. (Karasch, 2000, p. 50). Já a terceira categoria de cor pertencia ao “cabra”, que é um termo mais complicado de interpretar. Alguns historiadores dizem que “cabra” foi um termo pejorativo para o escravo de raça mista e , ao contrário de crioulo ou pardo, palavras que conotam orgulho em sua identidade. (Karasch, 2000, p. 50). Na verdade, a maior parte das fontes usava o termo de cor “cabra”, de forma a ofender os escravos de raça mista de ambos os sexos, o que deveria ser muito insultante para os escravos homens. Já em um contexto mais oficial o termo “cabra” foi utilizado para se definir os escravos brasileiros menos considerados da cidade que seriam os de ancestralidade e mistura racial determinada ou inferior. E devido a esse uso, a categoria “cabra” incluía provavelmente os outros escravos de raça mista como os “cafuzos” ou “caribocos”, bem como os índios de origem não mista do Brasil. Estes de qualquer forma, aparentemente, eram de vasta minoria. 1.1 Identidades africanas Devido à imensa diversidade étnica, fica difícil estabelecer identidades específicas de escravos no Rio de Janeiro. Sabe-se que a maioria dos escravos vinha de regiões da África Ocidental e Oriental Um dos motivos para se haver tanta informação sobre a origem de escravos no Rio de Janeiro, é a forma que os senhores encontraram para identificar seus cativos. Segundo a historiadora Mary Karasch, “os senhores ao invés de anexar seu sobrenome de família ao prenome do escravo, preferiam à fórmula de um nome cristão mais a proveniente nação africana”. Com ressalva há alguns casos em que um apelido, uma ocupação ou uma característica física proeminente substituía sua nacionalidade. Esse foi um método para chamar a atenção para a origem africana do escravo. Ainda havia outros métodos que definiam o escravo: o “negro novo” era aquele que recentemente chegou ao Brasil e o “boçal (bucal)” se aplicava tanto ao escravo africano novo como ao que não aprendera os costumes de seus senhores. Já por outro lado, se o escravo falasse a língua portuguesa e se portasse como um assimilado, então seu nome era “ladino”. Havia também a designação de “africano liberto.” Quem tivesse nascido na África seria conhecido como “forro” ou “liberto”. Esse indivíduo fora escravizado e depois legalmente alforriado. Os “africanos livres” compunham um outro grupo. Esses haviam sido capturados num navio negreiro e foram libertados pelo Tribunal de Comissão Mista e confiados a trabalhar para um senhor por um determinado tempo no Brasil. Somente em alguns casos, o termo “africano livre” não se referia a esses indivíduos, mas a um africano livre que imigrara voluntariamente para o Rio. 1.2 O Comércio de cativos Após uma exaustiva viajem pelo atlântico, os novos escravos chegavam finalmente ao seu destino, a cidade do Rio de Janeiro. Os cativos após desembarcarem dos navios negreiros, eram depositados em armazéns aonde esperam até serem “negociados” no maior mercado de escravos do Brasil, o mercado do Valongo. Naquele local ficava a encruzilhada de suas vidas, era lá que se determinava o senhor a quem serviria que trabalho fariam e até se viveriam ou se morreriam cedo. (Karasck, 2000, p. 62). Aproximadamente um milhão de africanos passaram pelo mercado de escravos do Rio de Janeiro. Pouco sabemos de suas experiências pessoais, quando eram comprados ou vendidos. Existem poucas narrativas de escravos que traduzam este sentimento no momento de suas vidas. Haviam duas divisões principais de escravos: os que eram de importação recente. Estes não tinham habilidade nem treinamento, e os que eram escravos africanos assimilados (ladinos) e capacitados para o trabalho. Havia três tipos de licença para se comercializar escravos no Rio de Janeiro: uma para escravos novos, outra para escravos capacitados e ladinos, e mais uma para ambos os casos. Os comerciantes classificavam sua “mercadoria” como “nova” ou “usada” e estabeleciam suas operações comerciais de acordo com essa classificação. Muitos escravos eram adquiridos fora das corporações comerciais licenciadas. Portanto fica muito difícil estabelecer um quadro completo dos métodos pelos quais os escravos passavam para o controle de seus novos donos. Sendo assim, ficamos limitados ao período anterior a 1830 e aos comerciantes licenciados, pois poucos foram os documentos que chegaram aos dias de hoje sobre compras informais ou ilegais. Os africanos comercializados no Valongo constituíram um grupo mais homogêneo do que os vendidos em outros lugares: eram geralmente homens entre dez e vinte e quatro anos de idade Os viajantes que visitaram o mercado do Valongo antes de 1830 confirmaram a pouca idade dos novos escravos. Um viajante descreveu que “em sua maioria os escravos eram crianças e adolescentes” Um observador preciso, o alemão Freireyss, chegou a afirmar que três quartos dos negros eram crianças. (1814-1815). (Karash, 2000, p. 66). Havia também outro grupo etário que tinha idade entre oito e dez anos e, era essa idade que geralmente tinham os escravos brasileiros. Embora, alguns viajantes apontam para uma idade um pouco superior a esta, entre doze e quatorze anos de idade. Em geral as crianças escravas tinham entre cinco a dez anos, e os adolescentes tinham entre onze a quinze anos. O historiador Florentino Manolo diz que “quinze anos é a melhor idade para se comprar um escravo”. Alertando assim que um escravo deveria ser comprado ainda jovem. (Karasch, 2000, p. 81). A identidade de um escravo disfarçava claramente a maneira pela qual era vendido no mercado, que proporcionava diferentes mecanismos para a venda de escravos novos ou “usados”. Embora os meninos africanos tivessem de encarar exibições e leilões públicos, mulheres brasileiras mais velhas podiam ser vendidas na privacidade para um amigo ou parente de seu senhor. Em reconhecimento das diferenças entre os escravos, os proprietários e mercadores conseguiam várias estruturas comerciais informais, ilegais ou autorizadas para comprar e vender escravos novos e ladinos na cidade do Rio de Janeiro. A comercialização de novos escravos no Rio de Janeiro pode ser compreendida de duas formas: anteriormente a 1824, os navios negreiros entravam livremente nos portos da Corte para descarregar suas “mercadorias”. Depois de ancorar, os escravos eram transferidos para a casa de leilão, aonde eram vendidos para seus determinados compradores. No caso de não haver compradores suficientes, os escravos eram então conduzidos para casas a fim de restaurarem a saúde e serem preparados para futuras vendas. Já em 1830 quando o tráfico de escravos é proibido, tanto a alfândega quanto o mercado do Valongo, são proibidos de comercializar escravos, no entanto o comércio perdurou até por volta de 1850. Com certeza o transporte de escravos era bárbaro. Assim, descreveu um viajante no ano de 1816, “(...) eram todos de aparência grotesca, esqueléticos, cuja pele adquiria um tom cinza escamoso com o escorbuto, semivestidos com tecido de algodão colorido e gorros vermelhos.” (Manolo, 2000, p. 80). O viajante Ewbank ainda nos descreve que, Devido aos rigores da jornada da África, chegavam invariavelmente magros e descarnados, com pele escrofulosa cheia de feridas, brotoejas e sarna, para não mencionar as bexigas horríveis de varíola. As crianças pequenas tinham a barriga inchada pela desnutrição e vermes, Se uma epidemia de oftalmia tivesse atacado muitos escravos durante a viagem, os vendedores puxavam filas de escravos cegos tropeçando uns atrás dos outros até o armazém. (Graham, 2000, p. 55). Os escravos no período posterior a 1830 devem ter sofrido mais que seus anteriores. Durante a década de 1830, não havia tempo nem lugar para que os novos africanos descansassem e se recuperassem da longa jornada pelo oceano, exceto se o lugar de desembarque tivesse um barracão cuidadosamente escondido no qual pudessem ser alimentados e vestidos até serem vendidos. A descrição mais completa da comercialização de novos escravos vem do período anterior a 1830, quando o Valongo era aberto aos estrangeiros. Mesmo quando os africanos recebiam alimentos e descanso, a maioria dos viajantes achava as condições realmente absurdas. 1.3 Os que vêm e os que vão: taxas de natalidade e de mortalidade dos escravos no Rio de Janeiro. Os escravos se traumatizavam com a chegada ao Rio. Moléstias, mortes prematuras, medo de canibalismo, bruxaria e feitiçaria: passaram por terrores físicos e espirituais enquanto se adaptavam a vida em solo estrangeiro. “Eles tinham motivo para ter medo”. Diz a autora Mary Karasch, que também menciona: “Dentro de cinco anos, um em cada cinco estaria na cova.” Esse número citado pela autora é estarrecedor e mostra a altíssima taxa de mortalidade entre os escravos. Examinar os escravos que morriam no Rio de Janeiro é também analisar a vida dos mesmos, tentando sempre fazer revelações sobre suas vidas. Taxas de mortalidade Em média, na cidade do Rio de Janeiro enterrou-se quase 2800 escravos por ano entre 1841 e 1849. A maioria dos escravos era mandada para a Santa Casa de Misericórdia, em vez de para cemitérios das paróquias ou mesmo para as igrejas. Não se pode esquecer também que havia uma grande quantidade de escravos que simplesmente eram enterrados em quintais, em florestas ou ainda eram jogados nas praças, nas ruas ou no oceano. Sendo assim todos os números documentados servem apenas para registrar um pequeno número na morte de escravos na cidade do Rio de Janeiro. As taxas também revelam que 60% dos escravos enterrados eram do sexo masculino. Por outro lado a autora Mary Karasch diz que, “esses registros de morte refletem a proporção de escravos desse sexo existente na cidade, mas as porcentagens dos que morriam anualmente era levemente superior: 64,2% em 1838 e 72% em 1849.” (Karasch, 2000, p. 145). É interessante saber que quando os registros de enterro são divididos por paróquias surge uma aparente contradição. No conjunto, quase dois terços dos sepultados eram homens; contudo, em paróquias especificas o número de mortes de escravas muitas vezes supera a de escravos. Em 1841, por exemplo, em cinco paróquias diferentes morreram mais mulheres do que homens. A historiadora Mary Karasch diz que: “Talvez fosse maior a probabilidade de as mulheres serem enterradas nas igrejas ou cemitérios de seus donos, enquanto os homens tendiam a ser sepultados na Santa Casa.”. E continua dizendo que: “Pode se suspeitar que nas paróquias em que a morte de mulheres superava a de homens, essas mortes representassem as de escravas velhas que eram criadas domésticas, bem como um padrão mais normal, em que as mulheres velhas viviam mais do que os homens velhos.” Um registro de paróquias não fornece sozinho um retrato geral e correto da mortalidade de escravos na cidade, devem-se utilizar também os registros de morte da Santa Casa. Tendo em vista, que a instituição recebia grande quantidade de escravos de todos os cantos da corte. O registro da Santa Casa indica, com mais exatidão, a proporção entre a morte de homens e mulheres. Na cidade apenas um terço dos sepultados por ano no final da década de 1840 era do sexo feminino. Um viajante sugere que, Além dos registros paróquias, outros sugerem uma diferença na experiência de mortalidade entre escravos e escravas. Embora não se possam calcular taxas de mortalidade com especificidade etária, devido à ausência de dados censitários por idade, a amostra da Santa Casa de Misericórdia, na morte de escravos por idade sugere que mais mulheres do que homens morriam mais jovens. (Karasch, 2000, p. 144). Dos escravos brasileiros enterrados na Santa Casa em 1849, há uma porcentagem um pouco mais alta de mulheres (92,1%) do que os homens (85,1%). Todavia para toda a amostra da Santa Casa (1833-1849), a diferença fica ainda mais notável. Quase quatro quintos de todas as escravas de idade conhecida morreram antes dos trinta anos de idade, em oposição a aproximadamente dois terços dos homens. A proporção maior de homens mortos não deve levar à conclusão automática de que os escravos sempre tiveram taxas de mortalidade mais altas que as escravas. Na verdade, diferentes amostras do Rio sugerem o contrário. Em 1847, por exemplo, a taxa de mortalidade de escravas nas paróquias do Rio foi de vinte mil, enquanto a taxa para homens foi de quatorze e meio. Uma vez que as estatísticas das paróquias era com maior probabilidade as mais corretas, tanto para brasileiros natos como para africanos assimilados. Taxas de natalidade Era grande a taxa de mortalidade entre bebês escravos no Rio de Janeiro. Isso ajuda a explicar porque as taxas de batismos (nascimentos) na cidade eram pequenas. Não podemos esquecer que os batismos eram registrados nas paróquias. Todavia, as taxas de natalidade não devem ser igualadas com as de nascimento. Estudos de Mary Karasch mostram que, [...] muitas crianças não eram batizadas. Muitos não católicos jamais batizavam seus filhos, e há claramente africanos adultos incluídos nos batismos nos batismos pois a proporção homem-mulher está desequilibrada, especialmente em comparação com batismos de escravos depois que terminou o tráfico. (karasch, 2000, p. 158). Sendo assim os registros de batismo podem ser apenas uma estimativa dos nascimentos de escravos, embora possam ser mais exatos para a população livre. Apesar desses problemas, os registros de batismo são as fontes mais seguras para se estabelecer padrões. Um aspecto intrigante é que as taxas de natalidade são diferentes entre os homens e as mulheres. O Historiador Florentino Manolo assegura que: “uma possibilidade é que mais filhas de escravas sobrevivessem para serem batizadas dentro de um período de dois anos, enquanto os meninos, que tem normalmente uma taxa de mortalidade maior, morriam antes do batismo”. (Karasch, 2000, p. 111). A taxa feminina de escrava pode ser explicada pela assimilações más rápida das criadas domésticas à religião de seus senhores. Uma vez que ficavam com tanta freqüência enclausuradas com suas senhoras católicas praticantes, as escravas tinham mais exposição diária à religião de seus donos do que os homens. Mais escravas eram batizadas porque se convertiam com maior probabilidade do que os escravos. (karasch, 2000, p. 162). Depois da abolição do tráfico, os registros de batismo deixam bem claro o declínio da população escrava no Rio de Janeiro No ano de 1840, as altas taxas de escravos, devido a grande leva de africanos, não se repetiam na década de 1860, e a conseqüência foi que o numero de batizados constantemente diminuiu ao longo da década. Mais uma vez a religião africana impediu em parte que, alguns africanos não batizassem seus filhos porque não eram católicos. Novamente temos que relacionar com a questão do fracasso da população com a produção natural entre os escravos no final da década de 1840. Embora as provas da baixa fertilidade e das verdadeiras taxas de natalidade serem imperfeitas, os fragmentos de registros de batismo e os baixos padrões socioeconômicos apontam para a dificuldade dessa classe em se reproduzir e criar seus filhos até certa idade um pouco avançada e produtiva. O número de mortes também era superior ao de batismo, o crescimento natural da população escrava estava limitado, em especial no período após a década de 1850. Foi somente durante a época do tráfico em que a população escrava se manteve nivelada. Na corte, morria-se muito mais do que se nascia. O excesso de mortes em relação a batismos, altas taxas de mortalidade e a grande porcentagem de mortes de crianças em comparação com adultos começam a identificar a dimensão numérica do problema da sobrevivência dos escravizados na cidade. (Karasch, 2000, p. 153). 1.4 De carregadores a músicos, do trabalho a cultura: Um pequeno relato das funções dos escravos no Rio de Janeiro. Os escravos eram as máquinas da capital comercial-burocrática e, além disso, eram a fonte de riqueza e do capital de seus senhores. Da perspectiva de seus donos os escravos cariocas tinham apenas um papel: realizar todas as tarefas manuais e servir de “bestas de carga” da cidade. Assim todos os senhores de escravos tentavam investir em pelo menos um escravo, que municiava apoio financeiro e mão-de-obra. Os senhores ricos acumulavam tantos escravos quanto possível e os colocavam para trabalhar em diversas profissões. Em geral, os escravos cariocas eram forçados a labutar na agricultura e em atividades de subsistência, transporte, manufatura, pedreiras, obras públicas, vendas e serviços de administração. (Karasch, 2000, p. 260). A maioria deles era empregada em trabalhos braçais. Em cada setor havia escravos, sendo esses especializados ou semi-especializados. Todavia a variedade de ocupações braçais especializadas abertas então aos escravos era peculiar ao período, e uma pequena minoria desses escravos ocupava funções como: artes e ofício. O interessante é saber que até escravos possuíam outros escravos. Os escravos também eram úteis aos senhores porque exerciam muitas funções alem de trabalhar. Um escravo poderia servir de garantia se o seu dono tivesse que contrair um empréstimo em dinheiro e também poderia servir de presente para amigos, filhos recém-casados e instituições de caridade. Com freqüência, os senhores faziam seus escravos trabalharem como “negros de ganho”, recebendo parte do que eles ganhavam durante o dia de trabalho. Na corte, um senhor que não tivesse escravos não tinha nada, e os que tivessem eram considerados ricos, possuir muitos escravos eram privilégio de poucos. E está claro que, eram os próprios escravos que pagavam o preço pelos seus próprios irmãos de cor, com trabalho definhado e morte prematura. Caseiros e pequenos plantadores Anteriormente ao ano de 1830, os escravos cariocas trabalhavam em atividades agrícolas e pastoris de subsistência como: hortas, plantações para vender seus produtos na cidade, criação de animais e caça. Muitos escravos urbanos eram hortelões e caseiros de pequenas chácaras ou pequenos sítios em residências suburbanas, ou ainda simplesmente trabalhadores agrícolas. Se as chácaras fossem suficientemente grandes estas cultivariam produtos comerciais como bananas e laranjas. Geralmente essas chácaras se localizavam nas freguesias de São Cristóvão e Mataporcos, nos subúrbios do Engenho Velho, Glória, Catete e Botafogo. Para muitos escravos a plantação e a criação eram apenas duas de suas profissões. Se por azar, pertencessem a famílias de média ou baixa renda, seu trabalho seria ainda de limpar o quintal da casa, com horta, pomar e animais, tais como galinhas e porcos. Homens de força: os carregadores Os escravos carregavam de tudo: alimentos, pessoas e coisas. Uma das funções mais importantes dos escravos no Rio era o transporte, às vezes, por terra. Nem mesmo as mulheres escapavam deste trabalho, embora não fossem tão utilizadas neste tipo de trabalho. Mary Karasch afirma que: “Uma vez que uma lei escrita decretava que os senhores jamais carregassem alguma coisa,... os escravos tinham o monopólio de carregar bens e alimentos”. Os senhores aproveitavam a tradição do ofício de carregador na África e os extraordinários poderes de resistência que alguns africanos desenvolviam. Em 1822 a viajante Maria Graham estima que, a metade dos carregadores eram africanos recém-importados e que eles carregavam tudo, de sacas de café e sal a pianos, em suas cabeças.Quando transportavam móveis e outras cargas pesadas, trabalhavam em grupos, com eles servindo de líder. (Karasch, 2000, p. 261). Já o viajante Ebel nos mostra que, ...os escravos carregavam facilmente as pesadas cargas sobre suas cabeças e ficavam mais dispostos ao trabalho quando cantavam sua própria música e seus feitores permitiam que tocassem os tambores para distrair os outros. (Karasch, 2000, p. 262). Esses viajantes nos mostraram que os escravos usavam da música para diminuir o sofrimento do trabalho doloroso e ainda se sentiam mais dispostos. Parecia que os escravos ficavam mais fortes e mais felizes com a oportunidade de trabalhar e de tocar sua própria música. Escravos das águas: barqueiros e marinheiros Esses escravos trabalhavam com o transporte de bens e pessoas por água. Usavam canoas, balsas, veleiros pequenos e grandes barcos a vapor viajavam pela costa atravessando a baía de Guanabara e ainda iam a portos longínquos como em alguns lugares do continente africano. Geralmente eram dois escravos os que traziam produtos para vender na cidade ou ainda, alugavam seus serviços para transportar pessoas ao longo da costa. Apesar de esses escravos trabalharem dentro de um forte controle e supervisão imposta pelos feitores, parecia que alguns escravos gozavam de certa “liberdade” Mary Karasch nos diz que: “(...) parece que uma pequena maioria navegava pela baía sem seus donos e gozava de uma existência menos controlada, sem dúvida porque confiavam neles”. Os remadores trabalhavam em pequenos barcos ou até em navios sofisticados que transportavam a família real. Os barcos mais comuns eram as faluas, que tinham entre quatro e oito escravos que trabalhavam em pleno sol. A maior empregadora de escravos neste serviço era a família real, que usava galeotas de dez a vinte remos. Conforme alguns viajantes, os escravos que desempenhavam este papel eram os mais “infelizes” do Rio. Em 1823 o viajante Burford nos descreve que: “(...) o sol inclemente deixava-os espumando feito cavalos com a transpiração”. É de se notar que a vida dos “escravos da águas” era bem dolorosa e cansativa como todas as outras atividades. Os cativos operários Havia algumas fábricas anteriormente ao ano de 1850, todavia eram poucas e, em grande medida limitadas somente a um estaleiro naval, as Fundições de Ipanema, que empregavam um pouco mais de cem cativos e a fábrica Imperial de pólvora na Lagoa. Entretanto, o restante das fábricas raramente tinham mais de vinte cativos, que trabalhavam com o processamento de produtos tropicais, como café, açúcar, cachaça, farinha de mandioca e entre outros. Já outras fábricas usavam os escravos para trabalhar na produção de roupas e adornos pessoais, como chapéus, sapatos e tecidos grosseiros de algodão. Em 1843 é revelada uma lista que mostrava a amplitude das fábricas de processamento de alimento no Rio de Janeiro, indicando assim que, outros estabelecimentos eram exceções. Pode-se então supor que, somente umas poucas fábricas se aproximavam do tamanho das fábricas americana ou européia Todavia cerca de 230 oficinas pequenas empregavam escravos e alguns trabalhadores livres. Parece que as fábricas que mais usavam mão-de-obra escrava eram as que produziam charutos. E eram os escravos que trabalhavam nessas fábricas que sofriam as piores condições de trabalho da cidade. Por volta de 1819 um jovem Doutor nos mostra que, “[...] não havia doença típica da profissão de charuteiro; seus operários sofriam de doenças provocadas pelo trabalho forçado em ambientes superlotados e mal-vestidos.” (Karash, 2000, p. 270). A indústria têxtil pouco se estabeleceu no Rio de Janeiro antes de 1850, apesar do esforço do governo em estimular o crescimento da indústria têxtil nacional, a cidade importava tecidos norte americanos e ingleses. O estado das fábricas cariocas era lastimável. Ao visitar uma fábrica do ramo em 1822 uma pequena comissão de investigação do governo encontrou-a em estado “deplorável”, chegando a duvidar que a fábrica “chegasse a produzir tecidos de verdade”. O que realmente se produzia na cidade do Rio de Janeiro antes de 1850 vinha quase sempre de pequenos teares domésticos. Somente depois da metade do século XIX é que surgiram grandes indústrias têxteis utilizando assim abundante mão-de-obra escrava. Evidentemente, o trabalho em fábrica era uma das ocupações de baixo status, pois crioulos e pardos não eram comumente empregados nela durante o período. Escravos especializados: Os aprendizes Os escravos mais bem pagos eram, com freqüência, profissionais especializados e artesões. Esses faziam parte da elite dos escravos no Rio de Janeiro e estavam na maioria, se não em todas as profissões especializadas. Muitos cativos trabalhavam para seus donos, que lhes ensinaram a profissão por serem artífices peritos, e outros, trabalhavam como negro de ganho. No início do século XIX houve protesto formal, feito pelos brancos pobres, contra o treinamento de escravos em atividades especializadas. Ewbank explica em parte por que os senhores utilizavam escravos especializados no Rio. Ele relata que, “[...] os monges carmelitas da igreja da Lapa preferiam treinar seus meninos escravos da cidade a pô-los para trabalhar em sua propriedade rural perto do Rio, pois conseguiam o dobro do lucro que teriam com a agricultura.” Os anúncios de jornais revelam que os escravos realmente eram peritos. Em geral, os senhores descreviam seus escravos como aprendiz, meio-oficial, oficial e mestre. A indicação de aprendiz mostrava que o escravo ainda estava aprendendo sua profissão, era fato que esses escravos eram os mais comuns. Nos anúncios dos jornais ficava evidente que os donos treinavam seus escravos em uma ou mais especialidades, “como o menino africano que estava aprendendo a cozinhar ao mesmo tempo que recebia treinamento de aprendiz de pedreiro. A autora Mary Karasch diz que esses escravos eram particularmente importantes para os “pequenos senhores de escravos, pois podiam usá-los no serviço doméstico em suas casas e viver com os salários que ganhavam num emprego externo.” O escravo que conseguisse evoluir na profissão ficaria conhecido como “muito bom oficial” e, por fim, como mestre artesão. Conseguir emprego para um escravo especializado no Rio não era tarefa difícil. Segundo Maria Graham havia tal demanda por libertos e escravos peritos que eles encontravam pleno emprego e bom pagamento. Apesar de serem escravos, a especialização abria algumas portas no Rio de Janeiro. Uma ocupação bem comum de um escravo era a carpintaria, a maioria dos construtores era negra, livre ou escravizada. Na verdade os escravos faziam de tudo: cortavam troncos e serravam madeiras, colocavam tijolos e telhas, faziam coches. No entanto esta profissão não era tão rentável quanto à de artesão-especializado. Talentosos artistas A grande variedade de especialidades dos escravos era surpreendente já no século XIX. Os escravos africanos eram músicos, pintores e escultores habilidosos, e que os artistas de renome não eram brancos e sim negros. Os cativos trabalhavam durante todo o dia assim como seus donos exigiam, e ainda trabalhavam com seus talentos para ganhar um dinheiro extra. Debret representava cativos tocando instrumentos africanos para grupos de escravos reunidos em torno de fontes públicas. Embora a maioria deles pudesse desenvolver tarefas apenas durante uma parte do dia, uma pequena minoria conseguia exclusivamente pintar, esculpir ou tocar música, em benefício de seus donos. Alguns escravos tocavam instrumentos europeus como parte de sua profissão. A maior empregadora desses escravos era a família real: em 1816 havia uma “orquestra” de aproximadamente 57 escravos, que se apresentavam em ocasiões especiais. Contribuíram também com seus talentos para celebrações em estilo africano da Nossa Senhora do Rosário, na igreja de mesmo nome, “onde escravos e libertos dançavam ao som de música” Não há dúvidas de que essa orquestra tocou algumas das composições do principal compositor mulato da época, José Mauricio Nunes Garcia (1767-1839). Outros escravos trabalhavam como pintores e escultores, esses eram geralmente empregados na decoração de prédios públicos, igrejas e residências. De acordo com Ewbank: “escravos negros livres faziam esculturas em pedra e imagens de santos em madeira”. Outras obras duradouras de artistas escravos estavam à vista em toda a cidade, em especial nas igrejas; mas no século XIX, “o emprego mais comum de escravos escultores e pintores era na execução de imagens de santos, ornamentos, decorações, cenários de teatro, plataformas e tudo que era necessário nas procissões com que os cariocas celebravam os dias santos. (Karasch, 2000, p. 282). 2 AS RAÍZES DA CAPOEIRA Antes de ser descoberta pelos historiadores, há poucas décadas, a capoeira já tinha vivido grandes aventuras nas páginas da literatura, dos cronistas, dos memorialistas do passado imperial do Rio de Janeiro. E ainda, antes desses, e de modo muito mais freqüente, em um passado remoto, a capoeira só era testemunha pela pena dos escrivães de polícia. Durante várias décadas, eram os literatos que desenhavam em suas páginas os malabarismos da capoeira, a força descomunal do negro africano, o terror do punhal e da navalha assassina na noite escura. (Soares, 2001, p.35) Por mais que orientados pelo olhar da autoridade repressiva, pelo enorme ódio racial, pelo preconceito de classe, eles também deixavam passar, em alguns momentos raros e subliminares, o elogio da coragem, da amizade, da liderança e do amor a malta pertencente. Demorou algum tempo para que a capoeira escrava do Rio imperial fosse vista pelos olhos de um cronista ou literato. Elísio de Araújo, em seu memorial da polícia carioca, faz uma narrativa brilhante: A existência da capoeiragem é um fato incontestado na administração policial de Paulo Fernandes Viana. Reunidos nas tabernas, nas mais baixas ruas, ou nos terrenos devolutos, os pretos africanos e os mestiços do país (...) exercitavam-se em jogos de agilidade e destreza corporal, com imenso gáudio dos embarcadiços e marujos, que entre baforadas de fumo, impregnados de álcool, gostosamente apreciavam tais divertimentos. Elísio de Araújo ainda descreve, no caso do século XIX, a capoeiragem jogada nos princípios do século, quase cem anos antes. Sua vivaz narrativa detalha como surgiram, posteriormente, as maltas, os temíveis grupos de escravos que assustavam o Rio joanino. Procurando de preferência os lugares menos freqüentados, dentro em pouco estes indivíduos, livres de ação rápida e imediata da polícia, constituíram-se em temerosas maltas de capoeiras, quem em continuas correrias levavam o terror e o pânico à pacífica e burguesa população desta antiga e atrasada metrópole. (Soares, 2001, p. 37). As festas populares eram locais comuns da religiosidade barroca do Rio Joanino, e era, para o cronista, também o local de predileção das maltas, não para assistir às inocentes cerimônias católicas, mas para resolver diferenças, atingir desafetos, realizar vinganças. Os meados de 1810 assistem o crescimento tenaz da atuação das maltas de capoeiras na cidade, o que resultou em uma grande atividade repressiva por parte da polícia imperial. Os ocorridos ficaram cada vez mais intensos que no decorrer do ano de 1814, aumentam progressivamente e espantosamente as devassas mandadas contra os indivíduos encontrados na posse de navalhas ou acusados de serem os autores dos ferimentos feitos com esta arma. 2.1 Um debate sobre a origem do capoeira A versão para o berço da capoeiragem partiu do imigrante português Plácido Domingo.Vale ressaltar que esta versão fez escola. É um trabalho difícil estudar a capoeiragem primitiva, porque não é bem conhecida sua origem. “Uns atribuem-na aos pretos africanos, o que julgo um erro, pelo simples fato que na África não é conhecida a nossa capoeiragem, e sim algumas sortes de cabeça.” (Soares, 2001, p. 40). E o mesmo autor ainda sugere que, Aos nossos índios também não se pode atribuir porque apesar de possuírem a ligeireza que caracteriza os capoeiras, contudo não conhecessem os meios que estes empregavam para o ataque e a defesa. O mais racional é que a capoeiragem criou-se, desenvolveu-se se aperfeiçoou entre nós. Foi desta forma que nasceu a versão original e da origem nacional da capoeira, que até os dias de hoje continua sendo um tema polêmico entre os pesquisadores da área. Algum tempo depois o pesquisador Pires de Almeida, já na onda do resgate da capoeiragem como “ginástica nacional”, no apogeu da belle époque, traduzia o embate das idéias sobre a origem africana. As origens desse jogo prense-se inquestionavelmente às danças guerreiras de tribos ou nações africanas, quando menos nos lances primitivos como muito bem demonstra a tradição conservada pelas estampas de insuspeitos de viajantes que aqui tivemos. (Soares, 2001, p. 42). Existe também o mito da capoeira, com gênese no quilombo, incluído o maior de todos, Palmares, no período colonial. Um articulista anônimo escreveu para uma revista especializada em assuntos criminalísticos, uma tese que iria servir como base para respeitados pesquisadores. Essa hipótese faria época. A capoeira, instituição genuinamente carioca, nasceu de uma forma original. Os escravos, impiedosamente tratados por seus senhores, fugiam para as montanhas (...) aonde formavam quilombos. Dizem os cronistas contemporâneos que a esses pobres espoliados atribuía sempre a polícia os misteriosos crimes de homicídio e roubo, tão freqüente no Rio de então. (Soares, 2001, p.44) E ainda o anônimo autor do artigo vai mais longe, completando seu raciocínio, ao ligar a forma de luta dos quilombolas com os gestos característicos da capoeira. “Na impossibilidade de desvendar tais crimes (...) era mais prático atribuir todas as culpas aos pobres escravos cativos, como que para argumentar sua desdita.” Sendo assim era freqüente as incursões nas colinas que circundavam a cidade, “(...) no intuito de surpreendê-los nos seus quilombos reduzi-los à escravidão.” (Soares, 2001, p. 48). Obviamente os escravos eram desprovidos de armas para uma resistência eficaz, e servia-se de sua destreza física para escapar das tentativas de aprisionamento de seus perseguidores. Foi neste momento, na visão deste anônimo autor que, “Surgiram os famigerados exercícios de capoeiragem, aprimorados no decorrer dos tempos, até envolverem altas camadas da sociedade, passando á história com seu cortejo de excentricidade.” O anônimo autor do artigo assumiu a defesa dos escravos, em face da brutalidade dos senhores, abrindo caminho para a leitura do passado diferente da versão comumente transmitida pelas classes conservadoras. Nasce assim, a capoeiragem como necessidade imperiosa de defesa humana contra o ataque desumano. A descrição mais célebre pertence ao cronista Luís Edmundo, que promove um resgate da capoeira à época colonial, quando a capoeira era um jogo de vida ou morte com a truculência do colonizador luso, mesmo quando esse “herói” fosse encarnado pelo mestiço, o mulato, que, havia muito pouco tempo era relegado como “degenerado racial”, que no dizer de Luís Edmundo era, “[...] um subproduto de uma mistura de raças descontrolada e que representaria a inferioridade básica do país diante das nações mais ‘civilizadas’”. Para Luís Edmundo o capoeira era um herói que lutava para sobreviver em uma sociedade escravista. Este cronista deixa bem claro a idéia de um capoeira como um homem “habilidoso nas artes”, forte nos embates, frutuoso com a navalha,versátil na “dança da guerra” e que tanto seduzia e atemorizava. (Soares, 2001, p. 50). Edmundo ainda diz que, “a capoeira era um produto do gênio mestiço brasileiro, violento, visceral, mais capaz de lidar com as adversidades”. Ele ainda nos mostra que o vocabulário capoeira retratava o idioma crioulo, uma língua diferente daquela do colonizador português e do africano cativo, e que seria “a semente do linguajar popular brasileiro.” 2.2 Etimologia do termo capoeira O jornal Rio Sportivo, do então Distrito Federal iniciou a publicação de uma série de artigos com o título pitoresco de Capoeiras e capoeiragens. O primeiro artigo pertenceu ao arquiteto e historiador Adolfo Morales de Los Rios Filho. Este usava um refrão que era comum entre os cronistas e homens de letras que discutiam o tema, ele defendeu “a capoeira como arma de defesa pessoal, tão poderosa como o boxe britânico e norte-americano, a savate francesa e parisiense, o jiu-jítsu japonês e a clássica luta romana.” Este resgate era bastante oportuno no momento em que o esporte alcançava cada vez maior público, isso ocorreu primordialmente na capital. Aqui começaremos a debater o nosso problema, a etimologia do termo “capoeira”. Adolfo Morales explica que a “capoeira” é, “um tipo popular , criador de uma forma especial de defesa pessoal e de exercício corporal, e que a palavra havia sido deturpada ao longo do tempo”. O mesmo historiador ainda acrescenta que “era necessário debater amplamente este tema que tinha chegado com a febre esportiva que abatera a cidade do Rio.” Para Adolfo Morales o termo capoeira tem duas raízes: uma indígena, tupi-guarani (capo); outra portuguesa, do vernáculo luso (eira) , que se aplicava costumeiramente a um grupo social determinado, de baixa extração. O historiador analisa alguns trabalhos anteriores e tradicionais, que em seu ver, tinham falhas. A primeira interpretação define a capoeira como termo “neobrasileiro” que designa certo tipo de vegetação, rala, mas às vezes também frondosa com vários tipos de densidade. No dizer de Soares os, “tradicionalistas viam as capoeiras como refúgio dos escravos fugidos e, assim, por meio da derivação, este tipo social recebera o nome de capoeira”. Essa explicação é, para Morales, fraca em inúmeros sentidos. Assim, o historiador estranha que etimologistas “facilmente contentados” possam ligar instituições do mato, de outra forma ignoradas, com a capoeira, o que nunca foi cogitado pelas crônicas ao referirem-se aos feitos da escravatura. Morales ainda rejeitava os etimologistas que pensavam que os quilombolas fossem abandonar seus seguros refúgios nos altos das serras para enfrentar seus inimigos que, “(...) muito armados com arma de fogo, nas tímidas capoeiras, de vegetação rasteira, onde a luta seria muito mais desigual.” (Soares, 2001, p. 50). Às pelejas assim travadas, segundo os mesmos etimologistas, veio dar-se o nome de “rinhas de capoeiras”. Recapturados e trazidos de novo para as senzalas, esses escravos nelas divulgaram as táticas atléticas e ginásticas que adotaram nas “rinhas capoeiras” e capoeiras forma alcunhados. (Soares, 2001, p. 51). O pesquisador Morales prossegue pesquisando e chega a um novo artigo intitulado de “Estrelando lucubrações etimológicas minhas”, nesse artigo ele passa a exibir sua versão para a linha etimológica do termo em questão. Antes, o autor afasta todas as possibilidades de que a capoeira luta seja derivada da capoeira mato, já que esta possuía outra origem: roça extinta seria derivado de “cô-coera” ou “cô-poera”, e os dois termos deram origem a “capueira” com u, e não com o , objeto de preocupação do etimologista Adolfo Morales de Los Rios Filhos e bem representado pelo historiador Carlos Eugênio Líbano Soares. “Já em seu terceiro artigo, denominado ‘Mais esteios’, Morales ressalta seus argumentos e conclui a respeito da origem do termo:” Capoeira era derivado de caapo , do tupi-guarani, que significava buraco de palha, buraco de mato. Era o termo indígena para designar o cesto de palha entrelaçada, semelhante a um grande círculo- buraco- feito de palha ou mato. Assim, o cesto era caapo , e seu carregador- já na linguagem do invasor europeu “eiro”. (Soares, 2001, p. 51). Desta forma, na linha de raciocínio de Morales, “capoeiro” era o cesto utilizado pelos escravos urbanos, e “capoeira”, o carregador do cesto. Ao longo da pesquisa realizada pelo historiador Carlos Eugênio Líbano Soares, se constata em que a única vez em que o uso do termo “capoeira” não compreendia a modalidade marcial, ele se referia a cesto, que era muito comum nos usos da escravidão urbana, o cesto capoeira era utilizado para “embarcar gêneros a bordo dos navios de guerra”. (Soares,2001, p.52) No dicionário de Antônio da Silva Moraes, da virada do século XVIII para o XIX, o termo também se refere a um tipo de casamata usada pelo exército em fortalezas. E de acordo com Morales, a acepção de grande cesto de palha, que era o sentido original do radical tupi-guarani, manteve-se. Espécie de cesto fechado onde estão as galinhas e aves. Na fortificação é uma cava de 4 até 5 pés de alto cercada de parapeito de dois pés, que se cobre por cima com pranchas carregadas de terra; nos lados dos parapeitos se abrem canhoneiras; de ordinário se recolhem até 20 mosqueteiros, se faz sobre a extremidade da contra escarpa. Fortaleza moderna. (Soares, 2001, p. 52). Pode se observar que as duas definições se completam. Tanto o cesto com a casamata são frutos da experiência colonial portuguesa, pois derivam de dialetos indígenas do Brasil, com algumas pequenas alterações, fruto das trocas lingüísticas dos nativos com os colonizadores. Também muito interessante, é a definição de “capoeiro” como ladrão de galinhas. Anos depois de sues artigos publicados no Rio Sportivo, Adolfo Morales arrematou sua tese na obra, sobre o Rio de Janeiro no período imperial, de que “o cesto capoeira fora a origem do tipo social de mesmo nome e que era fartamente utilizado pelos escravos de ganho da cidade” Aqui ele descreve de forma brilhante o capoeira da primeira metade do século XIX: “Mata-Mouros, freqüentador de tascas, empreiteiro de crimes e surras, auxiliar de políticos, guarda-costas dos homens de prol e guardião das senhoras requestadas pelos “Dom Juan’ cariocas”. Luís Edmundo reconstrói e projeta uma imagem romântica que tinha feito furor entre os memorialistas do Rio de Janeiro: Alguns usavam capas de saragoça envolvendo todo o corpo. A maioria de pés no chão, outros calçavam tamancos de alpergatas de palha. Mas todos traziam no pescoço um escapulário com o santo ou santa de devoção ou da sua freguesia. Diante do olhar embasbacado dos circunstantes- soldados, rameiras, pés-rapados, ciganos, lavadeiras, aguadeiros, quitandeiras; o capoeira entra em cena. (Soares, 2001, p. 51). 2.3 No plano da historiografia O primeiro historiador a se preocupar com a capoeira como fenômeno social foi Gilberto Freyre. Este notório historiador fez em seu clássico Sobrados e mocambos uma pequena análise sobre o capoeira, no momento de transição de uma sociedade patriarcal para a civilização urbana dos sobrados: Às vezes havia negro navalhado; muleque com os intestinos de fora que uma rede branca vinha buscar (as redes vermelhas eram para os feridos; as brancas para os mortos). Porque as procissões com banda de música tornaram-se o ponto de encontro de capoeiras, curioso tipo de negro ou mulato da cidade, correspondendo ao dos capangas e cabras dos engenhos. O forte do capoeira era a navalha ou a faca de ponta; sua gabolice, a do pixaim penteado e trunfa, a da sandália quase na ponta do pé quase de dançarino e a do modo desengonçado de andar. A capoeiragem incluía, além disso, uma série de passos difíceis e de agilidades quase incríveis de corpo, nas quais o malandro de rua se iniciava quase maçonicamente. (Soares, 2001, p.54) O historiador Gilberto Freyre aponta o capoeira como: [...] reflexo da decadência da rígida sociedade patriarcal rural da era clássica do Brasil colonial, na passagem para a sociedade “moderna arejada”- para os moldes de uma sociedade escravista – do período imperial. (Soares, 2001, p. 56). Na década de 60 ocorre uma ampla revisão da historiografia da escravidão no continente americano, é nesse contexto que surge uma das maiores autoridades neste campo, a historiadora Mary Karasch. O trabalho de Karasch foi o mais extenso sobre a questão da escravidão urbana na cidade do Rio de Janeiro do século XIX. O historiado Carlos Eugênio Líbano Soares nos fala um pouco sobre a importância do trabalho de Karasch: “Ainda hoje, mais de um quarto de século após a defesa de sua tese, seu trabalho ainda é um modelo para os interessados na escravidão urbana no Brasil”. (Karasch, 2000, p. 193). A historiadora Mary Karasch se preocupa com duas facetas da capoeira: o lado lúdico, de congraçamento, de festa, de reunião, e mesmo de brincadeira, e sua face de resistência, agressiva, de reação ao agressor escravista. No dizer de Karasch, a origem da capoeira é “incerta:”. Uma teoria afirma que ela surgiu entre os escravos do Rio que carregavam coisas em grandes cestas, conhecidas como capoeiras, sobre a cabeça. Trabalhando nas ruas, nas praias e nos mercados, aprenderam a se proteger suas mercadorias e a si mesmos dando golpes potentes com os pés e a cabeça, acabando por estilizá-los em uma forma de dança. (Soares, 2001, p. 55). Fica muito claro que Karasch pesquisou nas informações da obra de Adolfo Morales, que já citei anteriormente. Neste momento ela está mais sensibilizada com o papel da capoeira como arma de luta, principalmente pelos escravos de ganho que ficavam mais perto das ruas. No dizer de Karasch, a capoeira também podia ter um caráter lúdico, como é indicado na gravura de Rugendas, que mostra dois escravos executando o “jogo da capoeira”. Karasch se utilizou de relatos de viajantes como Rugendas para definir os contornos básicos da capoeira como prática cultural. Karasck afirma que: “uma leitura cuidadosa da gravura de Rugendas também revela sutis diferenças entre a capoeira antiga e a atual, com suas qualidades atléticas e estéticas”. Karasch também demonstrou profundo interesse sobre a origem africana da luta, que a partir de estudos sobre a musicalidade africana e do uso do berimbau como símbolo da capoeira no século XX, encontra várias semelhanças entre a estética musical e harmônica da capoeira moderna e as tradições melódicas dos povos africanos anteriores chegada à dos europeus. Karasch afirma que, “os estudiosos podem encontrar sinais nas raízes remotas da capoeira, principalmente em Angola, como afirma a tradição dos velhos capoeiras”. Possivelmente a raiz da capoeira passa por Angola, de onde parte dos escravos africanos do Rio tinham vindo. E ainda, o Berimbau símbolo da capoeira moderna, também evoca longínquas lembranças, ainda vivas em terras africanas. Outra característica marcante da capoeira como “instituição” construída por escravos – além da ludicidade da “brincadeira” e da força como arma de resistência – teria sido a agregação, do grupo, da malta, utilizando a linguagem da época. Karasch entende os capoeiras como grupos de mútuo, “tal como confrarias de negros, que estavam voltados para os conflitos de rua, não para a vida devocional e de assistência”. Carlos Eugênio Líbano Soares afirma que, “A polícia desconhecia este caráter agregativo e via os capoeiras como pouco mais do que desordeiros de rua. A “malta” seria o termo de época que se referia a estes grupos de escravos e negros livres”. A presença de brancos, na capoeira jogada no pré-1850, era quase invisível. Neste tempo a capoeira é primordialmente uma arte negra, e principalmente escrava. A capoeira não era só um estilo de dança e de música, era também um espaço de sociabilidade escrava, de reconstrução de laços de companheirismo, e até familiares, rompidos com a escravização e o envio ao Brasil. A capoeira é mais um capítulo da historia, da tentativa de recriação de uma sociabilidade escrava, partindo do comum exílio e das condições igualmente degradantes da grande maioria mantida no cativeiro. Karasck afirma que as maltas eram muito mais do que simples grupos de rua: “eram na realidade, a ponta do iceberg, a parte visível de uma organicidade muito mais complexa, onde libertos, escravos e livres pobres encontravam proteção e solidariedade”. Esta sociedade foi capaz de resistir a longos anos de perseguição. A malta era uma sociedade clandestina de ajuda mútua, sendo sempre acusada de planejar levantes escravos, o grande fantasma da classe senhorial carioca. É sempre necessário mencionar que o entendimento do papel da capoeira na cidade é fortemente dependente da compreensão da experiência escrava urbana, que sofreu um imenso avanço com a obra da historiadora Mary C. Karasch. A historiadora Leila Mezan Algranti toma um período mais restrito, como os 13 anos da era joanina, quando a corte lusa viveu entre nós, e descobre novas facetas da cultura capoeira na cidade escrava. A capoeira escrava era um símbolo da cultura africana ostentada orgulhosamente pelos escravos, nas ruas do Rio de Janeiro. Os negros eram presos em pelo dia por assobiarem como capoeira, usarem um casquete com fitas amarelas e encarnadas – símbolos dos capoeiras – e por carregarem instrumentos musicais utilizados nos seus encontros. (Soares, 2001, p. 60) Algaranti identifica a divisão de cores dentro da capoeira, o uso de símbolos como o assobio e outras características que definem um lugar específico ocupado pelo capoeira no centro da comunidade escrava e negra-africana do Rio de Janeiro. E assim como Karasch, repete a idéia de que, as maltas eram fruto de uma necessidade de autodefesa diante da truculência senhorial e ainda policial. Algaranti se aproxima um pouco mais dos significados possíveis da capoeira, entre escravos praticantes, entre policiais repressores e moradores brancos temerosos. Esta historiadora mostra que a capoeira era utilizada como uma forma de luta e também de dança e era tida pelos negros como meio de defesa. Contudo sabe-se com certeza “que por volta do século XIX, os capoeiras já estavam organizados na corte, em maltas e irmandades, cuja finalidade era defender seus companheiros de raça. Durante o primeiro império, cada bairro possuía sua malta rival das dos outros bairros”. (Soares, 2001, p. 61). Algaranti mostra as maltas de capoeiras como vetores do inconformismo dos grupos mais explorados da sociedade, o que era o caso dos escravos. Este caráter permanente, que marcou o espectro da capoeira na desigual ordem social do Rio escravista, perene na documentação policial. Esses grupos armados ameaçavam a população com sua agilidade e “abatiam-se em diversas maltas, levando diante de si multidões e policiais que dificilmente os empolgavam não sendo raros os que morriam”. A crescente presença dos capoeiras na Corte de dom João VI levou a polícia a procurar soluções drásticas para dominá-los. Tornaram-se um dos principais problemas da polícia carioca, que não poupava esforços para exterminá-los. (Soares, 2001, p. 63). Algaranti foi assim, a primeira a perceber o aumento da incidência de ocorrências envolvendo capoeiras na Corte imperial. Carlos Eugênio Líbano Soares nos fala da importância desta descoberta quando diz: “(...) é muito importante para perceber a existência de uma ‘estratégia escrava’ por trás dos enfrentamentos da ordem policial, mesmo que não seja resultado de uma liderança única e determinada, mas sim de uma experiência comum da escravaria urbana”. A questão dos capoeiras nunca foi resolvida no período joanino, nem em toda a primeira metade do século XIX. Os capoeiras continuavam ameaçando a população e a vida da charmosa cidade burguesa do Rio de Janeiro. 3 UMA ARTE NEGRA Até meados do século XIX a capoeira é quase que exclusiva de negros e africanos, é somente nos anos posteriores que o movimento capoeira começa a se expandir junto aos homens livres e aos estrangeiros. 3.1 A Malta As Maltas eram grupos de escravos capoeiras, que no Rio de Janeiro, tiveram seu auge na segunda metade do século XIX. Compostas principalmente de negros e mulatos (os brancos também se faziam presentes), as maltas aterroziravam a sociedade carioca. (Soares, 2001, p. 159). Houve várias maltas: Carpinteiros de São José, Conceição da Marinha, Glória, Lapa, Moura entre outras. Como se pode perceber o nome das maltas se dava de acordo com a freguesia que ela se encontrava. (Soares, 2001, p. 161). No período da proclamação da república as grandes maltas eram os Nagoas e os Guaimums. Os capoeiras das maltas introduziram o uso de armas, notadamente a navalha, esta trazida pelos portugueses, conhecidos como lisboetas, portugueses que em sua terra natal tinham as mais variadas funções como açougueiros, barbeiros, artesões. (karasch, 2000, p. 209) Quando os portugueses chegaram ao Brasil, entraram em contato com a malandragem em geral e assim trocaram o conhecimento da navalha pelo da capoeira. Outro instrumento utilizado pelos valentões era a bengala, que diziam: “uma bengalada desmaia duas matava.” (Soares, 2001, p. 165). Devido à violência e a criminalidade, as maltas e os capoeiras foram duramente reprimidos pelo estado e quase foram extintos da cidade do Rio de Janeiro. A historiadora Mary Karasch classifica as maltas como sociedades secretas, com as mesmas características como rituais, orações, sinais e saudações secretas, que mesclavam práticas da maçonaria com misteriosos estilos africanos. (Soares, 2001, p. 58). Estas sociedades podiam ser lideradas por libertos, mas mesmo assim assombravam os senhores de escravos do Rio com a possibilidade de um grande levante. Para Karasch, as maltas de capoeira eram muito mais que simples grupos de rua: “eram na realidade a ponta do iceberg, a parte visível de uma organicidade muito mais complexa, onde libertos, escravos e livres pobres encontravam proteção e solidariedade.” (Soares, 2001, p. 68). E esta sociedade capoeira foi capaz de sobreviver a longos anos de feroz perseguição. Karasch foi capaz de ir muito além das tradicionais concepções do papel exercido pela capoeira no Rio de Janeiro da escravidão. A formação das maltas era possivelmente derivada do “domínio” dos chafarizes por alguns grupos em detrimento de outros. Carlos Eugênio Líbano Soares nos mostra que: É lógico se esperar que cativos que realizavam seu trajeto todos os dias na mesma direção e passavam pelas mesmas tabernas e ruas, nos mesmos horários, criassem laços de solidariedade, importantes para manter o animo num cotidiano tão pesado. E não podemos esquecer que o ato de buscar água nos chafarizes não era tão prosaico e simples como se poderia esperar. Pelo contrário, conflitos freqüentes ocorriam à beira das fontes de água, ou pela falta desta, ou pelo excesso de usuários. (Soares, 2001, p. 181). Quer dizer, só o fato de trazer água num barril significava rusgas freqüentes como outros cativos, exigindo disposição, coragem e, principalmente, habilidade marcial. A prática da capoeira devia ajudar nestas horas. Nas palavras do intendente, os negros que carregavam água para as casas particulares eram os principais agentes das desordens. (Soares, 2001, p. 183). Este comentário merece atenção. Ao contrário do que se pode pensar, não eram os escravos de ganho, principalmente os que exerciam ofício de mascates e viviam longe de seus senhores, os principais clientes da capoeiragem, mais cativos relativamente desclassificados na hierarquia ocupacional negra da cidade. Estes cativos tinham as tabernas como locais de descanso da extenuante rotina de carregadores e de reabastecimento de suas experiências de socialização. A geografia das maltas Novamente tenho que voltar ao estudioso radicado no Rio: Adolfo Morales de Los Rios Filho. Este grande autor deixou opiniões sobre os mais diversos assuntos da história da cidade, da qual ele confessava ser um apaixonado. Adolfo defendia, como um nacionalista extremado (apesar de ter nascido na Argentina), a incorporação da capoeira como genuíno “esporte nacional”, uma questão bastante polêmica, para a década de 20 do século passado. Em 31 de agosto, do mesmo ano, saiu no jornal um sugestivo artigo, dentro da série que ele escrevia regularmente. (Soares, 2001, p. 165). O título era “O berço da sociedade carioca e da capoeiragem”. Como naturalista, Rios Filho descreve seus métodos para encontrar o “habitat” original da capoeiragem carioca. Conhecida uma espécie zoológica, procuram os naturalistas achar o seu habitat e pesquisar-lhe os costumes, características e, da mesma maneira, tratarei de empregar um método semelhante para conhecimento da sua residência habitual como no domínio da antropologia, da morfologia, da indumentária pessoal e dos hábitos peculiares do “capoeira”. (Soares, 2001, p. 165). O pesquisador Rios Filho encontra finalmente seu objeto: a Piaçava, ponto histórico da fundação da cidade do Rio de Janeiro e também da capoeiragem carioca. Essa região foi vital para a cidade colonial, pois, segundo o autor, durante décadas ali desembarcavam e embarcavam os produtos necessários para a incipiente economia colonial. (Soares, 2001, p. 166). Para o autor, criou-se uma natural competição entre os escravos negros para determinar o mais habilidoso dentre eles, e esta disputa se traduzia em naturais habilidades de corpo, nem sempre bem vistas pelos fiscais de seu trabalho. Porém era fora dos afazeres que a capoeira se transformava em cultura, nas palavras do autor uma “escola” que fez época nas classes populares do Rio de Janeiro. Nas horas de descanso comentavam-se estas habilidades, repetindo-as pelas praias à maneira de simulacros: criaram-se assim hierarquias acatadas dos melhores estivadores; disputavam alguns destes a primazia, e apareceu a luta; de primeiro, em grande brincadeira; depois, em verdadeiras pelejas: os homens incultos costumam cumprimentar-se nos encontros amigáveis com acenos de força e simulação de godês, envolvidos com sorrisos, até que costumam entrar em lutas reais, as quais a morte de um deles acaba com a luta, depois de uma irritação momentânea e cega. (Soares, 2001, p. 167). Fonte: http://www.pedagogiaemfoco.pro http://www.portalventrelivre.com/?pagina=doc.ver&vr1=131