Boletim Mensal * Ano VI * Agosto de 2008 * Número 62

           

Fado... também é cultura (20)

Alfredo Antunes

 


   

Compadres! Estamos na Mouraria, nos começos do Séc. XIX. Que vemos nós por ali? Uma população marginal, onde mouros, ciganos, criminosos fugidos, negros e mulatos, desempregados de toda a espécie, prostitutas, bêbados e arruaceiros, segregados da sorte e da sociedade, “marialvas” boêmios, e alguns poucos artesãos e pequenos comerciantes, mais ou menos dignos. Tão grande era o descalabro moral por aquele, e outros bairros periféricos, que a piadosíssima Rainha D. Maria I, chegou a lamentar ter perdido o controle moral sobre a sua Lisboa. E por que esta concentração da marginalidade por aquelas paragens? Tudo tem uma história e uma razão. Alguns fatos podemos invocar. Os bairros espalhados pelas “sete colinas” de Lisboa sempre foram, históricamente, ocupados pelos devalidos da sorte.         

            Esta segregação agravou-se quando o Marquês de Pombal reconstruiu Lisboa, após o terramoto (1755), redimensionando totalmente a cidade. Onde é hoje a “baixa pombalina” moravam, à época, as populações mais pobres, em arruamentos medievais, precaríssimos.  Esses espaços fétidos deram lugar às novas avenidas e ruas amplas, onde o “iluminista” Pombal instalou a classe média burguesa e os artesão de elite (manipuladores de ouro,  prata , cobre, couros,  cordas etc.). Quem, dos Compadres, não passeou já pelas Ruas do Ouro, da Prata, dos Caldeireiros, dos Sapateiros, dos Cordoeiros...) na bela “Baixa” de Lisboa, entre o Rossio e o Terreiro do Paço? Pois é! Para que nós pudéssemos, hoje, “fazer turismo” em linhas retas, foram removidos para a Mouraria, e para outros bairros periféricos, dezenas de milhares de pobres infelizes!Outro dado importante. Quando foi abolida a escravatura em Portugal(1761), mais de 20 mil negros, libertos ou alforriados, saíram das casas de seus senhores, e foram também, arranchar-se, sem trabalho e sem arrimo, lá pela Moraria, Alfama e Bairro Alto, somando desgraça sobre desgraça! Sem contar que, com a volta da Família Real do Brasil (1821), vieram, com ela, não só os 4 mil nobres,funcionários públicos e altos burgueses, mas também uma chusma de escravos e serviçais negros, além de uma infinidade de gente desqualificada que parasitava em torno de tão numerosa fidalguia. Uma vez em Portugal, as coisas começaram a desandar. O país estava um caos, social e político. Com os novos ideais libertários, começou a decadência da nobreza e, com ela, mais uma parcela de desocupados e malandros sobe as “colinas” de Lisboa.

            E é nesse “caldeirão” étnico, e nesses ambientes canalhas e degradados, sobretudo da Mouraria,  que o nosso belo Fado vai surgindo:  como “flor machucada”, nos  começos, mas como canção-arte, depois. Sim,  meus Compadres! O Fado (já o dissemos muitas vezes) foi sempre o mesmo enquanto tema, mas sempre diferente, enquanto expressão. E, com a expressão que tem hoje, esse Fado , embora não tenha nascido lá, foi, sobretudo, na Mouraria da Severa e do Vimioso, que ele adquiriu formas novas. Analisarei, no entanto, o fenômeno do Fado, no Séc.XIX, em duas etapas. A primeira, que vai, desde os começos do século, até mais ou menos 1870; a segunda, de 1870 até aos nossos dias.Não interessa muito detalhe. Apenas uma mão colega, guiando os Compadres a melhor conhecerem como é que uma herança, que é da nossa ancestralidade, foi evoluindo e adquirindo novas feições, com a História.

            Há outro elemento importante a considerar. É que estamos em pleno Romantismo e Ultra-romantismo em Portugal. Ou seja, para além de já ser o Fado um “cantar da desgraça”, é ainda agravado pela expressividade romântica duma época em que  o “homem fatal”, desgrenhado, sombrio e predestinado para o trágico, ganha ares de “herói”. Herói este que pode assumir, também, a vertente contrária: a do sedutor diabólico que leva à desdita e à desonra qualquer mulher que o ame. Este “herói” da literatura romântica, assume,  no Fado, a figura do chamado “Fadista” – que passa a ser sinônimo de malandro, violento, canalha e sedutor. Este “herói canalha” é descrito pelos nossos grandes autores do Séc. XIX, entre eles: Fialho, Camilo, Eça de Queirós, Luis Palmeirim, Conde de Sabugosa e muitos outros. Mas escolho Ramalho Ortigão que, em “As Farpas”, traça, do fadista, o mais terrível perfil:

Vive dos expedientes da exploração do seu próximo. Faz-se sustentar, de ordinário, por uma mulher pública que ele espanca sistematicamente. Não tem domicílio certo. Habita sucessivamente na taberna, no chinquilho, no bordel ou na esquadra da polícia. Está inteiramente atrofiado pela ociosidade, pelas noitadas, pelo abuso do tabaco e do álcool. É um anêmico, um cobarde e um estúpido. A ferramenta do seu ofício consiste de uma guitarra e de uma grande navalha de ponta com tríplice calço na mola...”.

Paralelamente aos temas e tipos recorrentes nas literaturas românticas da época (a virgem,  sempre frágil e doente,  a prostituta, vítima da sociedade, os amores fatais e impossíveis, os bandoleiros, os fora-da-lei, as tragédias do amor e do ciúme, a desonra da mulher amante, a saudade, a bravura, o patriotismo e, ainda a morbosa “vaidade de ser triste”), os temas dos  fados da época passam, praticamente, a refletir os mesmos conceitos de vida e de sociedade.

Basta citar, ao calha, o conhecido

“Tudo isto é Fado”:

“Almas vencidas/ Noites perdidas/ Sombras bizarras/ Na Mouraria/ Canta um ‘rufia’/ Choram guitarras/ Amor, ciúme,/ Cinzas e lume/ Dor e pecado/ Tudo isto existe/ Tudo isto é triste/ Tudo isto é Fado”.

            Compadres e Amigos continuaremos na próxima! Até lá!

 

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