Boletim Mensal * Ano VI * Janeiro de 2008 * Número 58

     

 

FADO TAMBÉM É CULTURA  (16)                

 

Alfredo Antunes

 

 

            Comadres e Compadres. Depois de 15 meses de crônicas, penso que chegamos ao ponto mais profundo de nossa viagem: a identificação do Fado com nossa própria identidade Lusíada. Ou seja: o Fado nos acompanha há dois mil e quinhentos anos, e é parte de nossa natureza de portugueses. Pode parecer exagero ou atrevimento. Mas, antes isto, do que falsear a História e embarcar em hipóteses insustentáveis. Sabemos que a Saudade é uma claríssima herança celta. Hoje em dia, praticamente todos os autores são concordes nisso. (Inclusive, eu mesmo, que defendi minha tese de Doutoramento, em Portugal, sobre esta temática: 1979-1983). Ora, a Saudade, mais do que um mero sentimento, é uma palavra-conceito; é uma definição dialética e antinômica, onde o bem e o mal se harmonizam, a tristeza e a alegria se fundem, a presença e a ausência coincidem. Ela é o “gosto amargo” de Garrett, ou  o “Mal de que se gosta e    o bem que se padece”, na definição de D. Francisco Manuel de Melo, (1637). Pois bem, se o sentimento da Saudade tem fincadas suas raízes milenares na melancolia céltica; e se essa mesma Saudade não podia jamais manifestar-se se  não tivesse suportes líricos visíveis (artes, poesia, música...), impõe-se-nos aceitar que desde que a Saudade é Saudade teve que existir um correspondente musical que a expressasse. O Fado, cremos nós, (igualmente com sua dupla vertente de tristeza e de alegria, fatais) foi sempre essa misteriosa componente musical que somou as demais manifestações líricas da própria Saudade. Com esta, “nasceu” e com ela, vem “namorando” há milênios... Ela faz parte, repito, da essência daquilo que somos. É a manifestação musical de uma das dimensões arquetípicas do nosso ser lusíada.

            Mas, assim como a Saudade não é a síntese de todos os sentimentos humanos, também o Fado não representa toda a expressão musical do homem português. Temos as marchas, os viras, os malhões, os cantares regionais, os  folclores, os cantos de lavradores e marinheiros, as toadas de embalar, a música religiosa e a  elaborada por compositores. Tudo isto, e muito mais, são formas de expressão musical de um Povo. Mas nenhuma delas é constitutiva. Nenhuma delas define, pela raiz, o ser desse Povo. Só o Fado é capaz disso. Só ele é esse algo único, específico e intraduzível, como intraduzível é a Saudade. ”Saudades, só portugueses/ Conseguem senti-las bem” - diz Fernando Pessoa. E é verdade.

            Poucos são os autores que se atrevem a levar o Fado tão longe. O que tem acontecido é que quase todos se movimentam dentro das mesmas escassas fontes existentes, as quais insistem em situar o Fado no Séc. XIX, ou pouco antes. Uns copiam dos outros; e lá vão descrevendo o fenômeno conforme sua própria ideologia ou interesse. Como se não reparassem que o que estão fazendo, e repetindo é, apenas, descrever o Fado dos tempos do Romantismo e ultra Romantismo Português, que se situavam nesse século XIX. Como se o Fado fosse um gênero de canção, que nasceu acabado e pronto, como que por encanto... Mas ainda há, felizmente, um ou outro nome sério que, por uma espécie de intuição, parece apontar para essas longínquas raízes rácicas, a que me tenho reportado. Para citar apenas um exemplo de peso, ouçamos o que, já nos idos de 1800, escrevia o grande Oliveira Martins: “As toadas plangentes que, ao som da guitarra, se ouvem por toda a costa do ocidente, essas cantigas monótonas como o ruído do mar, tristes como a vida dos nautas, desferidas à noite sobre o Mondego, sobre o Tejo e sobre o Sado, traduzirão lembranças inconscientes de alguma antiga raça que, demorando-se na nossa costa, pusesse em nós as vagas esperanças de um futuro mundo a descobrir, de perdidas terras a conquistar”. Quem não vê aqui, meus Compadres, um pouco daquela céltica “cobiça do longe”, a que me referia na crônica passada?!

Pois é, meus Amigos. O Fado não é um estilo de música a mais. O Fado é um estado de alma; um confronto, por vezes inconsciente, do homem português diante de seu Destino. Esta crença, meio que vaga, na existência de uma força Superior, traçando as nossas “linhas da vida”, aparece em muitas culturas e civilizações. Aparece nos gregos, nos romanos, nos árabes e... até  no cristianismo. Aqui, é a crença de que Deus já tem as nossas horas marcadas para tudo, e de que a Providência divina nos conduz. (E onde fica a nossa vontade livre, que nos constitui moralmente responsáveis? Ora aqui está um ponto de difícil solução... Ou seja: como conciliar a onipotência de Deus com a vontade livre do homem? Mas deixemos isto para o Padre João, das Graças, resolver!).

            Voltando ao nosso Fado, eu diria que ele foi, e é, na constituição da nossa raça, como um rio musical que, há milênios, vem correndo, sempre diferente, conforme diferentes são os homens, os lugares, os tempos e as culturas por onde passa. Mas é sempre o mesmo: a expressão, em música, dos traços fatalistas do Português. Sendo assim, ele pode ter elementos primitivos nos “Cantares ritualistas pagãos e, posteriormente, litúrgicos”. Pode ter elementos de inspiração luso-galaica e árabe, nas “Cantigas de Amigo e Cantigas de Escárnio e Mal-dizer”, dos séculos XI ao XIV. Pode ter elementos árabes e provençais nas “Cantigas de Amor”, dos séculos XII ao XIV. Pode ter elementos de inspiração marítima nas “Esparsas e Cantigas Quatrocentistas”, dos séculos XV e XVI. Pode ter elementos de inspiração ultramarina nos chamados “fados primitivos”, dos séculos XVI e XVII. Pode, enfim, ter elementos de inspiração tauromáquica, social, política e, sobretudo, dos conceitos românticos, nos “Fados musicalmente definitivos”, dos séculos XIX e XX. Atualmente já se notam “direções”novas quanto à temática, acompanhamento e expressividade no canto. Mas é sempre, e será sempre, o mesmo Fado. Será sempre esse rio milenar que vem entoando, com garra e com tristeza, a condição de quem canta um Destino que lhe impuseram. Impuseram, mas que tenta enfrentar como guerreiro. É que o Fado,  repito com Fernando Pessoa, “É a canção dos fortes!”.Resumindo, diria: o Fado somos nós. Começou, do mesmo modo que a Saudade, quando nos erguemos como Raça e como Povo, há milênios. E sempre o fomos cantando conforme a vida, as toadas da época, o tempo, o lugar e as culturas que  fizeram a História de cada um e a História do nossa Raça Lusíada. O que se tem feito, nos últimos cem anos, tem sido descrever o Fado romântico, do Séc. XIX. Não o Fado, em si; na sua totalidade! E eu não quero embarcar nessa! Até à próxima, Compadres!.

 

 

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