Cancioneiro



Os Symbolos

1 - Em todo o momento da atividade mental acontece em nós
um duplo fenomêno de percepção: ao mesmo tempo que temos
consciência dum estado de alma, temos diante de nós imprecionando
-nos os sentidos que estão virados para o exterior, uma paisagem
qualquer, entendendo por paisagem, para conveniência de frases,
tudo o que forma o mundo exterior num determinado momento da
nossa percepção.

2 - Todo o estado de alma é uma paisagem. Isto é, todo o
estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas ver-
dadeiramente uma paisagem. Há em nós espaço interior onde a
matéria de nossa vida física se agita. Assim uma tristeza é um lago
morto dentro de nós, uma alegria é um dia de sol no nosso espírito.
E - mesmo que não se queira admitir que todo o estado de alma
é uma paisagem - pode ao menos admitir-se que todo o estado de
alma se pode representar por uma paisagem. Se eu disser "Há sol
nos meus pensamentos", ninguém compreenderá que os meus pen-
samentos estão tristes.


3 - Assim tendo nós, ao mesmo tempo, conciência do exterior
e do nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, temos
ao mesmo tempo consciência de duas paisagens. Ora essas paisa-
gens fundem-se, interpenetram-se, de modo que o nosso estado de
alma, seja ele qual for, sofre um pouco da paisagem que estamos
vendo - num dia de sol uma alma triste não pode estar tão triste
como num dia de chuva - é de todos os tempos dizer-se, sobre tudo
em verso, coisas como que "na ausência da amada o sol não brilha"
e outras coisas assim. De maneira que a arte que queira representar
bem a realidade terá de a dar através duma representação simul-
tânea da paisagem interior e da paisagem exterior. Resulta que terá
de tentar dar uma interseção de duas paisagens. Têm de ser duas
paisagens, mas pode ser - não se querendo admitir que um estado
de alma é uma paisagem - que se queira simplesmente intersec-
cionar um estado de alma (puro e simples sentimento) com pai-
sagem exterior.


Apontamento solto de Fernando Pessoa; não assinado; publicado na abertura do livro CANCIONEIRO da obra poética em volume único, Rio de Janeiro, GB, companhia Aguilar Editora, 1965


Alguns poemas de [Cancioneiro], um dos personagens de Fernando Pessoa

Mar. Manhã ; Autopsicografia ; Não. não digas... ; Ameaçou chuva. E... ; Abdicação
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