O Diabo no Imaginário Colonial

Na caracterização do imaginário mágico-religioso do Brasil, o Diabo constitui uma das principais, se não a principal personagem. Paradigma na determinação de comportamentos e atitudes mentais, a sua relação com o obsceno está inserida no espaço do universo imaginário, e nas manifestações que reproduzem uma identificação desse obsceno, o que se opõe a moral divina dos cristãos.

Podemos dizer que esse Diabo representa a possibilidade de oposição, de contestação, para aqueles que são contra ou reprimidos pela ortodoxia dominante. Dessa forma, a entidade maligna, como determinada pela ideologia cristã européia, perde, dentro desta perspectiva, seu caráter de ameaça, tornando-se o produto de uma consciência possível, que refletia o nascimento de uma crise existencial que invade o universo imaginário, onde o "Mal" nem sempre põe em perigo a sobrevivência individual, mas surge como uma saída possível.

Sendo assim, o Diabo em sua caracterização de grande opositor, participa de duas esferas bem demarcadas, embora muitas vezes confundidas pelo discurso do poder. O malefício - o maligno - imagem produzida e cristalizada no ocidente cristão. E a malícia, que é uma perspectiva da cultura popular importante, e que fornece os meios para burlar e enfrentar o poder.

A compreensão de como se estrutura a figura do Demônio que é trazida pelo colonizador europeu e as mudanças que sofreram depois por causa do nosso universo mental, vem de um processo histórico : a afirmação do Diabo no ocidente cristão.

A formação do arquétipo do Demônio remonta à tradição hebraica, responsável pela gestação do Cristianismo. E a religiosidade hebraica foi a responsável pela construção do arquétipo de grande inimigo. Através de sua evolução histórica, traduziu na esfera religiosa todo um processo de expansionismo dos povos da antigüidade, levando à assimilação dos Deuses dos inimigos - os pagãos - como entidades malignas.

A esse caráter maligno latente, emprestado à divindade estrangeira, a expulsão do invasor agregará uma condição de inferioridade: a de divindade caída, do espirito do mal. E que convivia ao lado da ortodoxia dominante.

Bem, como o advento do cristianismo, chocam-se as tradições, que se misturam e se amoldam. O espírito do mal, assumindo progressivamente maior precisão e detalhamento, torna-se a fonte de todos os vícios e erros que pretendem extirpar do seio da comunidade cristã.

O que vai estabelecer em definitivo, o confronto permanente entre o Bem e o Mal, fundamental para a cristalização do Maligno na consciência cristã - ou você era servidor de Deus, ou servo do Demônio. E esse processo vai ser marcado pela tentativa de homogeneizar uma ortodoxia mental sobre a comunidade.

A princípio, o Cristianismo assumiu duas tendências: uma pacificadora e outra intransigente, coexistindo, em oposição, por muito tempo. A primeira tendia a aceitar elementos de crenças já incorporadas à cultura clássica e que impregnavam a mentalidade popular, reconfigurando-os ao Cristianismo. Ou seja, na busca de se superpor ao universo simbólico da antigüidade, o Cristianismo acabou assimilando divindades, ritos e festas já institucionalizadas pela Tradição, mas criando uma nova roupagem, que mal ocultava suas origens pagãs.

Em oposição, encontramos uma intransigência absoluta, motivada pela propagação de heresias. Mas, não podendo cancelar da memória do povo as tradições enraizadas do mundo antigo, o Cristianismo rebaixou essas tradições à categoria de crenças deformadas e culto aos demônios.

Contudo, o Diabo na mentalidade popular brasileira despiu-se da grandiosidade e onipotência do seu ascendente europeu. Tornou-se personagem inserida no cotidiano, um tentador medíocre, uma figura risível e , por diversas vezes, um auxílio na necessidade.

O nosso Diabo teme o homem valente, e perde, em terras brasileiras o seu aspecto aterrador - "Deus é bom, mas o Diabo não é ruim" ou, "Se Deus quiser e o Diabo permitir". Em fim, o nosso Satanás é um agente do mal desiludido com sua própria atribuição - a malícia -, podendo ser facilmente enganado, principalmente pela mulher, que também é sua vítima preferida.

Bem, acredito que alguns fatores contribuíram basicamente para a "mutação tropical" da personagem maligna. Em primeiro lugar, o próprio desenvolvimento da ortodoxia religiosa em Portugal, onde a ação repressiva teve como objeto o grupo "Cristão Novo" e, apenas secundariamente, a heresia luterana - que pelo seu caráter de perigo vinham enfrentar e colocar em risco a ortodoxia dominante - abstendo-se o Santo Ofício de medidas repressivas contra o Demônio e seus agentes.

Dessa forma, aqui no Brasil, as Bruxas assumem uma imprecisão conceitual, em oposição ao modelo precisamente determinado na Europa pelos teólogos cristãos. Ou seja, há uma mutação no referencial básico da bruxaria, vista por esses cristãos: a do Mestre do Mal.

A grande maioria das Bruxas que viviam na Colônia eram portuguesas ou descendentes de portugueses. E aliada a esta imprecisão demonológica - herdada da Metrópole -, a grande fusão de culturas estabelecida pelo processo de colonização desempenha importante papel na configuração da personagem.

Isso também porque a justaposição cultural, tomando por base a cultura dominante - portuguesa - não aboliu as crenças indígenas e africanas, mas reordenou-as formando um vasto quadro sincrético, onde se misturam crenças de variadas origens. Mas, o Demônio era figura ausente entre os indígenas e também nos cultos africanos, assim como na Bruxaria de origem céltica européia e druídica. Eles não têm entidade de oposição formal entre o Bem e o Mal. Então, em contato com essas crenças, o Diabo europeu se diluiu.

Outro fator que encontra sua resposta na ação da Igreja no Brasil, que, mesmo por meio da catequese, nem sempre conseguia impor uma norma de conduta; inspirada na complacência recomendada pelas autoridades papais, para garantir o povoamento do Novo Mundo, contemporizaram com o pecado, enfraquecendo assim, as atribuições do grande tentador - D. Pero Fernandes Sardinha: "...nos princípios muitas coisas se hão de dissimular que castigar, maiormente em terra nova como esta."

Dessa forma, o Diabo teológico, que assume ao final da Idade Média uma grandiosidade e uma publicidade jamais vistas, assume no Novo Mundo a característica da exterioridade. Aqui Satã é um estranho, aqui as crenças se misturam formando uma argamassa cultural na qual não se reconhecem mais as personagens pelo nome que lhes é emprestado. Ou seja, aqui não teve espaço no universo mental da coletividade para a construção e afirmação de um discurso demonológico, permanecendo o Demônio como estigma da alteridade, da sua feição estranha e estrangeira.

Em fim, na sua caracterização tropical, o Diabo fica longe do arquétipo europeu de Grande Tentador da teologia cristã, misto de justiceiro, velhaco e tentador, que faz as vezes de santo para uma coletividade que espera, com uma esperança que a miséria do viver constantemente nega, a chegada ao Reino dos Céus.


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