A Oficina do Diabo
Filipe Ferreira
 
 
         Vamos começar de novo. Tenho 25 anos e me chamo Percival.
     Percival, cala esta boca e vai dormir.
O problema é que não consigo dormir.
     Tem leite na geladeira, esquenta um pouco.
Fico parado, deixo a janela aberta para que entrem os sons da noite:
cães, buzinas, freadas, gritos, conversa. Sou uma pessoa muito lúcida. Quando alguém pisa em uma poça em um beco na Couto de Magalhães, eu ouço. Eu fico na frente da janela, teso que nem cão de guarda, as orelhas chegam a se mexer um pouco.
     Se não vai para a cama, ao menos pára de resmungar.
Eu odeio a Sandra. Ela tentou me criar como se fosse minha mãe e fez
tudo errado. É uma bêbada desempregada. E minha irmã de sangue. O Jorjão é mecânico, trampa drogas e vem duas vezes por semana no apartamento para tratá-la como uma fodida. Depois ele vai embora e leva junto um pouco das economias da casa, que obviamente sou eu quem faço.
     Percival, eu estou tentando dormir aqui! A parede é fina demais!
Vadia. Eu me fodo todo trabalhando dez horas por dia como advogado e
ela entrega minha grana pro mecânico. Eu chego em casa as onze da noite e obviamente não consigo dormir. Ligo a televisão e não tem nada, então saio para relaxar a cabeça. Sou uma pessoa muito lúcida, já disso isso. Sou também uma pessoa muito curiosa sobre as coisas que acontecem ao meu redor. Uma vez salvei a vida de um homem que tentava o suicídio. Até hoje sua família me liga para agradecer. Em contraponto, não tenho família fora uma irmã doida e um cachorro de raça, 50% labrador, que precisa ficar em casa para meu senhorio não ver. As regras do condomínio proíbem. O nome dele é Code. Code de codeína, que é uma droga que eu tomava quando morava no Botafogo.
         Quando eu não consigo dormir, que é coisa que acontece todo dia, eu saio para as ruas e viro parte delas. Sempre tem algo de bom lá fora. Pego minha Blazer verdinha e saio reluzindo, procurando alguma gata que dê sopa por aí. Para falar a verdade não precisa nem dar sopa, eu sou foda, eu arrebanho qualquer uma, rica ou pobre, loira ou morena, só depende da beleza. Coloco a jaqueta e saio. Segunda-Feira, 24 de março.
         O carro não pega de primeira, soco o painel com força, determinação, eu sou muito lúcido mas as vezes perco a paciência, soco de novo, dou uns ganidos e vou-me embora acelerando para não morrer. Páro logo adiante, na Nossa Senhora Aparecida, no bar da dona Matilde, que serve um sanduíche de mortadela bom mesmo, molhadinho. Enxergo o Jorjão de papo com uma negrinha, ambos rindo. Amanhã é dia dele passar lá em casa para raspar nossos cofres e hoje está lá, todo arreganhado.
         Continuo na minha sina. Ouço som de bailão vindo da José de Alencar e me dirijo para lá. Vem de um clube estranho, nunca tinha reparado, a porta aberta, como se fosse um puteiro. Estaciono e vou entrando, só que o povo vem saindo, parece uma procissão, gritam e xingam, uma menina corre acuada na frente como se fosse o anticristo. Ela esbarra em mim e cai no chão, não tô entendendo bulhufas, a menina começa a chorar baixinho e não me contenho, me abaixo e pergunto o que há. As pessoas que estavam em seu encalço vão parando à porta do lugar e ainda gritam, mandam-na embora, arremessam copos de plástico e de repente uma madame arremessa uma garrafa que vem e bate na minha cabeça. Puta merda, caio para trás e já penso em revidar, já estão todos entrando de novo, a garota ainda no chão e o calo na minha cabeça.
         — Você não olha por onde anda, menina? Que gente é esta? Que tu fez pra eles? Olha que merda, seus amigos me acertaram uma garrafa na cabeça e criou um calo, como é que vou chegar assim em casa? além do mais tá doendo, nem sei que lugar é este e nem quem é você e me acertam uma garrafa, está cidade está cada vez mais pirada. Levanta daí, por que tá chorando, deixa disso, vem cá menina, pega na minha mão, mas olha pra onde, ô, garota, te coordena, fala comigo? você é muda? quem você matou lá dentro?
         Ela finalmente se recolhe do chão. Enxuga as lágrimas. É magrinha e tem a bela pele parda e os olhos verdes mortos, um cabelão lisinho escorrendo pelas costas. Vira o rosto para o nada e fica paradinha, que nem dois de pau.
         — Você não fala, menina, tá catatônica? Tá me ouvindo ao menos, faz que sim com a cabeça. Olha aqui, já tá fazendo volume, este caroção duro na minha testa, gente fodida, não tem mais o que fazer senão dar garrafada nos passantes.
     Deixa eu ver. — Ela diz no repente, tem uma voz rouca e sumida.
     Olha só.— Jogo a testa para a frente mas ela continua olhando para
além de mim, me viro, só vejo meu carro, acho que ela gostou dele. Ela estica a mãozinha pequena e fica tateando o ar. Fico meio incomodado de ela olhar tanto para o meu carro, e só um chevetinho verde todo amassado.
         A mãozinha dela fica passeando no ar.
     Qualé que é? Vai ficar aí parada? Já viu o estrago na minha testa?
     Não.
Ela então desiste e baixa a mão.
     O que você faz da vida? — Pergunta do nada.
     Para que você quer saber, menina? Acha que só porque é gostosinha
eu vou sair contando toda a minha vida? Sou advogado, poxa. Dou um duro danado. Quer sair pra dar uma volta comigo?
     Tá bom. Quero sair deste lugar.
     Mas o que você aprontou aí? Que lugar é... ô, menina, você vai olhar
muito para o meu carro?
     Não posso ver seu carro, sou cega, que carro é?
     Cega? Puta merda, me desculpe. Não me dei conta. É uma Blazer.
Quer dar uma volta?
     Tá bom.
     Como é teu nome?
     Cerise.
     Eu sou o Percival. Me segue.
Ela gentilmente pousa a mão no meu ombro e vai atrás.
     Estou desempregada, Percival. – Ela murmura com sua voz rouca
quando ligo o carro.
     Minha irmã também.
     Como é o nome de sua irmã?
     Sandra, por quê?
     Por nada não.
     Que nome é Cerise?
     Não sei, minha mãe escolheu. É bom ser advogado?
     Claro, mas é puxado. Defendo uns marginais.
     Uma cega pode ser advogada?
     Só pode ser advogado quem for cego.
     Hum. Eu queria fazer alguma coisa.
Pego a Copacabana e dirijo em direção à Barra. Cerise tem perfume de
lírios, eu acho. Fica paradinha olhando para a frente, ou melhor, não olhando para a frente. As vezes coça o nariz como se fosse uma coelhinha.
     Você tem namorado, Cerise?
     Tem um garoto na minha rua que diz que é meu namorado. Mas não
sei não. Ele é bem mais novo que eu.
     Que idade você tem, Cerise?
     Dezesseis. E você, Percival?
     Vinte.
     Hum. Onde estamos indo?
     Tem uma festa lá na Barra de uns amigos meus, em uma casa
enorme, com piscina e tudo. Você vai comigo, certo? Tem outros planos?
     Não, eu estou desempregada. Quero ir.
Dirijo mais um pouco, passo por Ipanema o carro dá uma afogadinha e
fico com medo de parar e ter que sair para empurrar, a Cerise ia acordar de sua transe.
     Preciso de roupas novas.
     Como você ficou cega?
     Tive uma doença aos dez anos.
     Por que você não está em casa dormindo a esta hora, Cerise?
     Você tá fazendo muita pergunta! – Ela vira o rosto em minha direção
e pela primeira vez seus olhos batem contra os meus. Passa um frio na minha espinha, como se fosse o homem invisível com a guarda baixa.
     Você está olhando para mim, Cerise!
     Não. Na sua direção. Como você é?
     Sou loiro, tenho os olhos azuis.
     Parece bonito.
Continuamos lentamente para os lados da Tijuca. Reparo em seu corpo
esbelto apoiado contra o banco. Ela usa uma camiseta branca surrada com propaganda da Coca-Cola e uma calça colant preta com um rasguinho na altura do joelho.
     Não consigo dormir de noite.
     O quê? — A observo com o canto de olho enquanto ela vira o rosto
para a janela e fecha os olhos para a brisa da noite.
     Você me perguntou por que eu não estava em casa dormindo. Não
consigo. E você?
     Hum, gosto de passear.
A verdade é que eu dormia a maior parte do dia mesmo. Na outra parte
via televisão. Quando anoitecia, ia passear. Com o dinheiro da faculdade, que o meu pai mandava todo mês, eu pagava o álcool do carro e o álcool na garrafa.
         Parei o carro nos fundos da mansão.
     Cerise, fique paradinha e quietinha que vou ver se é aqui o endereço
da festa e já venho buscá-la.
     Liga o som para mim. Enquanto espero.
Eu ligo o radinho e coloco um pouco de funk pra ela.
Saio caminhando até a porta de serviço do casarão e dou um grito pelo
Pedrão. Pedrão filha da puta, tem que me ouvir.
         Espero uns instantes, grito de novo e então finalmente o Pedrão dá as caras. Vem limpando as mãos no avental, apressado.
     Poxa, Macaco, eu não te disse para não dar as caras mais aqui?
     Estou com uma gatinha no carro, uma gatinha cega. Quero fazer um
grau. Põe a gente pra dentro. A esta altura já deve estar todo mundo louco nesta festa, ninguém vai se dar conta que tem uns fodidos. Vão até nos tratar de igual para igual.
     Eu sei disso. Tá legal. Busca ela. Mas entra por aqui. E não te atraca
em nada, deixa te oferecerem qualquer coisa.
     Tá legal, Paulão. Vou lá.
Volto no carro. Cerise está cantarolando. A puxo e nós entramos pelos
fundos do casarão. Está tocando rock pauleira muito alto e Cerise elogia o som, diz que adora som alto assim. Ela ensaia sair dançando. Peço que se contenha um pouco.
         Vamos entrando e já vejo os convidados atirados por todos os cantos. É uma festa de granfas viciados em cocaína e sexo casual. Modinha de gente vazia, que nem precisa trabalhar, tem que arrumar alguma coisa com o que se preocupar. Perco Cerise de vista por um momento e no meio de uma multidão que dança abraçada, vou me distanciando. Quando me dou por si estou sozinho em uma sacada, e então, uma garota em um vestido transparente vem rebolando, quebrando, em minha direção. Têm de se apoiar em mim para continuar de pé. Diz que me acha muito sexy e que tenho cara de bandido e que ela adora o perigo. Digo que eu sou um matador, perigoso pra caralho e que se ela não desgrudar vou cortar o pescoço dela com a minha faca. Ela passa a mão no meu peito, tem um pouco de baba escorrendo no canto da boca, diz que quer me levar para um quarto. Agarro ela e procuro um quarto disponível mas há gente trepando em todos eles. Encontro um banheiro e coloco ela dentro da banheira. Ela oferece um pouco de pó para mim e digo que não curto mais estas coisas. Ela pergunta o que tenho na cabeça e digo que fui atingido por um martelo em uma briga de gangues mas que o filho da mãe que fez aquilo está mofando no inferno. Tiro suas roupas e mando ver.
         Quando abandono o banheiro e a mulher, vou atrás de Cerise.
         Bando de granfas desocupados. O que se passa pela cabeça deles? Acho que nada. Olha só, não tem preocupação nenhuma, ficam jogados nos sofás ou no chão, uns desacordados, os outros sorrindo, como se a vida fosse isto, safadeza e vadiagem. E depois eu, que só ando por aí, pela cidade, que sou um pulha. Que vergonha para o país. Amanhã eles estão todos na coluna social.
         Então vejo Cerise. Ela já está atirada no carpete, do lado de outros três bacanas; um deles meio morto. Ela, convulsionando. Que merda, penso com meus botões. Que merda. Pelo menos não fiz feio até agora. Vou tentar me aproximar, chamar ela pelo nome, ver no que vai dar.
Mas assim que o faço, os novos amigos dela começam a rugir como cães incomodados. Apreciaram os dotes da bela e inculta Cerise. Coloco as mãos no bolso, dou uma olhada ao redor e então um prisco atinge o meu olho – é um pequeno brilho marfim. Aproximo-me de uma mesinha e há um cinzeiro alabastrino sobre ele, uma peça de misteriosa beleza. Está cheio de cinzas, o que noto em seguida, mas nada que desvirtue sua beleza etérea. Não há ninguém olhando, ele parece tão solitário ali. Estico a mão e o agarro, viro suas cinzas sobre o tapete e no momento em que aprumo-o confortavelmente sob minha axila direita, uma dona agarra-me pelo braço.
     Vi o que fez, garoto.— Ela diz, com uma voz arrastada, nojenta. Me
viro, a encaro, é uma mulher alta e magra, por volta de seus sessenta anos.
         Faço cara de inocente, vou tirando o cinzeiro, pronto para restitui-lo ao seu habitat, mas ela me interrompe.
         — Guarde isso. Mas é uma coisa muito feia de se fazer com a Marília. Você sabe quem é Marília?
         Maneio a cabeça em não.
         — Marília é a dona da casa, a dona da festa, logo, proprietário da peça que você estava furtando. Mas guarde isso, vou deixar você levar sem problemas, mesmo Marília sendo minha melhor amiga, pois agora você vai ser bonzinho e vai subir comigo para um quarto e vamos fazer uma festinha particular.
         Tento evitar mas não consigo disfarçar a expressão de asco. O que a faz completar sua ofensiva:
    Além do mais você é um penetra aqui, garotão. Vem! — Ela agarra
minha mão e começa a me puxar como se eu fosse seu prisioneiro agora. Olho para trás e os três cães estão escalando o corpo convulso de Cerise. Aquela imagem grotesca vai se distanciando cada vez mais a medida que sou carregado. Tento resistir e arranco minha mão de sua mão.
         — O que está pensando em fazer, garotão? Prefere ser escurraçado daqui como penetra e darem queixa de furto na delegacia? Sabe quanto vale esta peça que você pegou?
         Arremesso o cinzeiro no chão, na beira da escada. Ele não tem valor nenhum para mim. É só um descargo de serotonina. Não preciso desta quinquilharia. Não sou nem mesmo um rato colecionador. Antes tomasse meu Prozac como o doutor indicou e não estaria agora prestes a ser violado por uma velha vil e aproveitadora.
         Subo com ela. Ela encontra um quarto. Entramos. Há uma grande cama de casal onde ela se atira e sai a rolar, em devaneios. Diz que vou possuí-la agora, que sou seu garotão safado. Dou um segundo para me olhar no espelho. O calo deve ter parado de crescer. Olho mais de perto. É estranho. É estranho a forma da marca que ficou em minha testa. Há um T arredondado que serve como logotipo àquela marca de pratarias domésticas. O que me atingiu não foi uma garrafa. O que me leva a pensar novamente em por que Cerise foi expulsa daquele lugar... Seria uma festa particular? E ela penetra? Não sei, mas é realmente incógnito. E isso me dá uma puta saudade da garota cega.
A velha aproxima-se pelas minhas costas como um vampiro e começa a massagear meus ombros. Convido ela para irmos tomar um banho juntos. Ela acha uma idéia maravilhosa, está realmente excitada. Empurro-a no box, ela sai patinando, bato a porta, tranco por fora.
Em passo apressado, desço novamente as escadarias (de condessa) em direção ao lugar onde os três lobos apoderavam-se do viço da doce Cerise. Páro frente ao grande espaço dos bacanais, o tapete apeluciado mas, eles se foram. E carregaram Cerise junto.
Passo a mão sobre o calo. Sinto o “T”. Por que tenho esta bizarra impressão que Cerise, apesar da escuridão em que vive, guardava em seu sangue algo que uniria nossos destinos? Quer saber? Que se foda. É tudo culpa da serotonina. Vou pegar meu carro e dar o fora daqui antes que descubram a velha no banheiro. Vou esquecer Cerise. Não ia poder salvar a vida dela, nem torná-la melhor. Como se algum dia tivesse salvado a vida de alguém...
           
 
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